domingo, 15 de dezembro de 2013

Explicação sobre a Elsa e eu - Conto de Daniel Teixeira

 
Explicação sobre a Elsa e eu - Conto de Daniel Teixeira
 
Depois de um muito longo período em que nada tenho escrito, em que não tenho escrito de facto, como estou a fazer aqui e como se costuma entender o que é escrever, hoje resolvi escrever-vos.

E hoje posso fazê-lo desta forma assim porque a Elsa vai estar fora uns dias. Ou talvez vá estar ausente para sempre. Na verdade eu nem sei para onde ela foi. Acho que ela me disse onde ia mas eu não me lembro bem.
 
Certo é que ela vai ficar fora pelo menos uns dias, a Elsa, isso eu sei porque ela arrumou as suas coisas numa mala e num saco e isso só se faz quando se está fora uns dias, pelo menos uns dias ou quando as pessoas se vão embora para sempre.

Talvez a Elsa tenha partido mesmo para sempre, mas como já disse isso eu não sei, e é para mim agora uma possibilidade como outra qualquer: ela ter partido por uns dias ou por semanas ou para sempre. Neste momento isso não é muito importante ou é pouco importante.

Talvez tenha ido ver a mãe ou tenha ido para casa da mãe, ela falou-me nisso há tempos, disse-me que talvez precisasse de um tempo para pensar sem eu estar por perto e que a casa da mãe dela era boa para isso, para ela pensar sem que eu estivesse perto.
 
Mas francamente não me lembro ao certo daquilo que ela me disse esta manhã logo cedo. Era mesmo muito cedo e talvez por ser muito cedo eu não tenha entendido porque estou acordado até muito tarde, escrevendo e não escrevendo, conforme vou explicar em seguida.
 
Escrevo não mostrando as letras e as palavras e não como agora estou a escrever escrevendo. E isto, o que estou agora a escrever e como estou a escrever a Elsa não vai nunca ler porque vou rasgar esta folha em mil bocados logo que acabe de vos dizer isto que estou a escrever agora. Vou-vos dar um tempo curto, talvez uma hora, talvez duas, não mais.
 
Talvez a Elsa não volte mesmo mas esta folha será na mesma rasgada em mil bocados porque eu já não me revejo nesta forma de escrita, mas dizer isto neste momento talvez não seja assim tão importante. O importante, o mais importante é aquilo que vos estou a dizer e que quero que leiam no tempo que vos dou.
 
Desde que a Elsa me disse aquilo deixei de escrever como sei que todas as outras pessoas escrevem. Mas sempre tenho escrito, quer dizer, tenho escrito não escrevendo no papel. E hoje resolvi ver desenhadas estas letras nesta pequena folha que vos mostro por ser esta a maneira, a única maneira que existe através da qual me podem ler.

Ora este texto é assim escrito por razões que não são fáceis de explicar e por razões que talvez eu mesmo não saiba ao certo. Talvez este texto exista assim porque eu sinta necessidade que me leiam ou talvez porque eu sinta necessidade de explicar às pessoas porque deixei de escrever de forma que elas pudessem ver e ler.

Isto mesmo que essas pessoas não se interessem por isso, não se interessem em saber estas minhas razões. Mas eu interesso-me, quer dizer, eu interesso-me em dizer isto que aqui vai escrito e que não sei se vai ser lido ou não. De qualquer forma fixo em duas horas o tempo de vida deste escrito.
 
Houve um tempo em que eu escrevia mesmo, e quando digo aqui «escrever» falo não só da forma como o estou a fazer agora mas também falo naquele sentido que eu considerava real, verdadeiro, genuíno, grande.
 
Para mim sempre foi grande, mesmo, lembro-me bem disso. Satisfazia-me, o que eu escrevia no papel, deixava-me satisfeito, muito contente, feliz. Era uma forma de escrever que sentia só ser conseguida se fosse mesmo escrita porque para mim não havia antes uma outra forma de escrever.
 
Agora há para mim uma outra forma de escrever que é escrever não escrevendo, uma forma que é diferente, uma forma em que o meu cérebro, a minha memória, guarda em si folhas preenchidas com letras que eu sinto mas não vejo.
 
Escrevo na minha cabeça, na minha mente e sinto-me agora e desde há um tempo sempre muito feliz também, quase como me sentia antes, quando escrevia escrevendo, mesmo não podendo agora ver exactamente aquilo que escrevo. Sinto-me, nessas alturas quase tão feliz como antes, foi o que eu disse, quase, e é verdade, mas não tanto como me sentia antes, há longo tempo.

Foi um tempo, esse, em que havia em mim quase que uma febre de escrever. Quando escrevia no papel, havia um aumento da minha tensão e agarrava o papel e o lápis e eu sorria muito, lembro-me bem, sorria e quase podia ver a minha cara toda ela sorrindo como se estivesse frente a um espelho.
 
E era, sim, um sorriso largo, era uma satisfação imensa, uma sensação de descoberta constante, permanente. A cada palavra eu descobria um fio de palavras e elas apareciam escritas como se nem fosse preciso eu pensar. Era uma coisa que agora não consigo explicar bem e que talvez não tenha mesmo forma de ser explicada nem escrevendo e não escrevendo nem desta forma que vos estou a mostrar agora.
 
Também desenhava, é verdade, eu também desenhava, não posso esquecer de dizer isso e sentia as palavras ou os traços escorrerem e construirem conteúdos e formas em que eu me revia revendo aquilo que fazia.

Hoje não sei se me revejo o tempo que julgaria necessário e suficiente naquilo que escrevo e naquilo que desenho. Acho mesmo que não, acho que o tempo em que mantenho na minha mente o escrito não escrito é curto, mas tudo isto é muito relativo também, tenho de convir, tenho de aceitar, porque escrever escrevendo também nem sempre permanece muito tempo.
 
Quer dizer as coisas escritas têm aquela perenidade material, ficam ali, estão como se costuma dizer impressas no papel para sempre só que de uma forma geral elas estão apenas ali e não são lidas, raramente eram lidas por mim de novo ou uma só vez que fosse por outras pessoas.
 
Por isso e em certo sentido estarem escritas ou não estarem escritas, desenhadas, acaba por ser a mesma coisa. E têm duas horas para me ler agora, não esqueçam.
 
Só que aí, neste caso e nos casos como este que eu escrevia, a gente sente o escrito como sendo duradouro, quase com o tempo de vida de um metal mesmo que saibamos que isso não é verdade. Nada que seja escrito dura assim tanto tempo e mesmo que durasse não serviria de nada porque ninguém lê. É mesmo  isso, um escrito é como uma rocha numa encosta, só existe enquanto olhamos para ela.
 
Nos meus escritos não escritos, antes de começar a escrever não escrevendo, não é como estou a fazer agora que estou a escrever encrevendo, sei desde logo que quase tudo aquilo que escrevo não escrevendo e aquilo que desenho não desenhando ficará depois perdido, e sei desde logo que tudo se vai perder por vezes aos poucos nas folhas da minha memória.
 
Mas sei isso desde logo porque sou eu e só eu quem intervém no processo, quer dizer, é o meu cérebro, é a minha memória, é a minha vontade que actuam. Faço o que quero e porque o quero.
 
Cheguei ao fim de longo tempo à conclusão que não vale a pena estar a escrever ou a desenhar, assim, dessa forma pensada ou mesmo desta forma em que as coisas ficam impressas, realmente desenhadas.
 
Contudo não consigo não o fazer, quer dizer, não consigo deixar de pensar que deito para fora de mim mesmo aquilo que penso, aquilo que idealizo, mesmo sabendo que tudo isso fique só para mim. E como já disse mesmo que eu o faça de uma forma ou outra vem tudo a resultar no mesmo, o escrito escrito e o escrito pensado.

Numa forma porque eu, com a minha vontade, os apago e noutra forma porque só eu os leio. E é isso, escrever de uma forma ou de outra acabam por ser iguais, acabam por ter o mesmo resultado. Um porque eu quero e o outro porque ninguém além de mim lê o que escrevo.
 
Acho que é melhor pensar assim, pensar que as coisas, essas coisas, essas palavras e essas imagens desaparecem para sempre. Por vezes também digo para mim mesmo que essas coisas nem sequer existiram, de facto.
 
Mas este escrito vai durar duas horas assim escrito, não mais como já disse, e tal como os escritos não escritos que eu apago este também depende da minha vontade. Vou deixá-lo existir por duas horas.
 
Lembro sempre, a cada dia, a cada minuto daquilo que a Elsa me disse. Ela disse-me que aquilo que eu escrevia só me ocupava o tempo e que aquilo que eu escrevia não tinha qualquer valor, era uma pura perda de tempo. E a Elsa disse-me também que eu devia deixar de escrever, para sempre, ela disse mesmo para sempre.
 
E eu disse-lhe que sim, lembro-me disso, disse-lhe sim das duas vezes em que ela me disse isso.
 
Eu gosto muito da Elsa e nunca quis perdê-la e ela dizia-me que assim a ia perder, quer dizer, que eu se não deixasse de escrever que eu a ia perder, que eu perderia a Elsa e por isso eu disse-lhe que sim, que podia deixar de escrever muito bem, com grande facilidade.

Por isso eu tenho escrito não escrevendo, quer dizer, escrevo na minha mente, na minha alma e tenho a Elsa comigo. Menos hoje, e talvez mais dias e talvez para sempre, não sei, mas certo é que vou continuar a escrever não escrevendo porque não posso deixar de o fazer.

Daniel Teixeira
 
 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A visita - Conto de Daniel Teixeira

 
A visita - Conto de Daniel Teixeira
 
O homem que eu procurava era muito magro, disse-me a Ana quando me indicou a casa dele, e parecia estar muito doente, acrescentou. Sim, devia estar, foi só o que disse à Ana mas a Helena quando me falou que eu devia ir visitá-lo tinha referido em voz muito baixa e comovida que ele devia estar muito doente, em final de vida, pensava ela.
 
Exilara-se para ali para estar em paz consigo mesmo e a sós consigo mesmo e quando ela lhe telefonara ele dissera-lhe que não queria que ela, a Helena, fosse lá a sua casa. Talvez não quisesse que a filha o visse assim, acho eu mas a mim recebeu-me bem quando lhe disse que ia a mandado da Helena. 
 
Talvez fosse por isso que eu via ali nele, perante mim, um alheamento, uma indiferença, um  olhar vago, um olhar que queria dizer que agora tanto se lhe dava que o visitassem ou não.
 
A Helena devia ter percebido que ele lhe tinha dito para não o visitar querendo que ela fosse lá vê-lo, porque é assim que as coisas se passam muitas vezes, ele não queria que ela o visse mas queria vê-la a ela, queria despedir-se dela, dizer-lhe adeus ou para sempre ou até um dia.
 
Depois foi pouco mais que um minuto o tempo que esteve comigo, nem sei ao certo mas foi tudo muito rápido.Talvez tivesse  muita coisa em que pensar, pensei eu, as pessoas quando estão a morrer vêm todo o seu passado e um passado com muitos anos tem de ser repensado em muito menos tempo. Só há aquele tempo que resta para repensar tudo, ou as coisas mais importantes, talvez seja só isso, só se deve pensar nas coisas mais importantes.
 
Eu não sabia quanto tempo ele teria de vida, nem a Helena sabia, acho que ninguém podia saber nem mesmo ele, o homem que ia morrer brevemente.
 
A vida quando acaba, acaba mesmo, pode levar algum tempo a acabar, minutos, horas ou mesmo dias, mas nunca dá tempo a que se saiba antes, nunca há tempo para que se saiba quando se entra no caminho sem regresso e quando se está no caminho sem regresso e quanto tempo leva a percorrer todo o caminho sem regresso.
 
Eu não sabia se o homem magro e doente queria viver mais, isso também não sabia, nem na curta conversa que tive com ele pude aperceber-me disso, não deu mesmo tempo, nem essas coisas se mostram logo ao primeiro encontro nem provavelmente numa sucessão de encontros e de conversas.
 
Querer ou não querer morrer é uma coisa que não se mostra, acho eu, é uma coisa íntima. E o homem que estava a morrer nem quis que eu o ajudasse se precisasse de alguma coisa, tal como eu lhe perguntei.
 
Respondeu-me que não precisava de nada e eu vi nos seus lábios quase desaparecidos um sorriso que talvez fosse de agradecimento pela minha lembrança mas era um sorriso triste, um sorriso que talvez quisesse dizer que uma ajuda minha por grande que fosse não ia resolver nada.
 
Acho que as pessoas pensam assim, por vezes, juntam as coisas e uma pequena ajuda que se oferece conta como a tal grande ajuda de fazer recomeçar a vida noutro ponto, de retomar o caminho dela anos ou meses atrás e isso é uma coisa que ninguém pode fazer.
 
Isto se ele gostava de viver, se ele queria viver mais, há pessoas que se cansam  de viver e podia muito bem ser o caso dele e isso eu não sabia, só ele o podia saber ou talvez nem ele soubesse ao certo o que queria.
 
Saí dali com intenção de voltar no dia seguinte, foi o homem muito magro e doente que me disse para fazer isso, para voltar no dia seguinte, logo de manhã, acrescentou, e disse-me que gostaria de falar comigo, acho que ele precisava mesmo de falar com alguém, foi o que eu pensei.
 
E no dia seguinte, logo pela manhã conforme ele dissera lá estava eu e ele, com a pele escurecida, sentado numa cadeira, morto. Estava morto e tinha um sorriso ligeiro na face.
 
Afinal ele queria mesmo morrer ou não queria morrer e morreu, assim, não sei como, nem procurei saber depois.
 
Afinal eu tinha ido visitá-lo e não cheguei a conhecê-lo, quase nada, ou nada mesmo. Não fiquei a saber se ele tinha falecido porque chegara a sua hora ou se tinha morrido porque quisera.
 
Não me dizia respeito, isso, e nem procurei perguntar ao médico como se tinham passado as coisas, porque morrer é mesmo uma coisa íntima, foi uma coisa que se passou só com ele e eu nada tinha a ver com isso.
 
Daniel Teixeira
 

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

A Renata e eu - Conto de Daniel Teixeira



 
A Renata e eu - Conto de Daniel Teixeira
 
Quando comecei a pensar falar com a Renata eu sabia muito bem que o tema seria delicado e que havia riscos que eu teria de correr, incluindo aquele que seria para mim mais desastroso que era o de perder a Renata.
 
Mas era muito importante para mim ter essa conversa com a Renata, posso mesmo dizer que sem passar essa fase, sem termos essa nossa conversa, a nossa relação, no meu entender, não seria límpida e entendia que sem ela, sem essa conversa, haveria sempre fantasmas a ensombrar a nossa relação.
 
Mas eu explico porque entendia assim, porque se colocava em mim a imperiosidade de ter essa conversa com a Renata e espero que entendam que ter essa conversa era assim como fazer a ultrapassagem de um fosso, era saltar de uma margem para outra sem pena e dentro de mim havia ainda a convicção plena que para me libertar do fantasma ainda presente da Françoise essa conversa com a Renata era quase tudo ou mesmo tudo o que faltava.
 
Havia sim o risco enorme, um risco demasiado grande, que eu sentia talvez não conseguir depois ultrapassar, que era perder também a Renata tal como tinha perdido a Françoise. Mas estava numa encruzilhada mental e tomar opções não é fácil em situações extremas, tal como era extrema aquela situação que vivia.
 
Como ideia inicial eu estava convencido, sabia mesmo que era assim, que algumas pessoas têm dificuldade em entender que a causa imediata de muitos traumas de que sofrem resultam, por vezes, de uma única causa: o convencimento de que se errou numa análise que se faz de uma dada pessoa ou de uma situação com ela relacionada quando esse erro era pelo menos semi
evidente.
 
Partindo daí e se se envereda por uma perpectiva lógica em seguimento do ainda não percebido erro de análise, há consequências que podem ser graves dependendo a sua gravidade da capacidade de encaixe psicológico daquela pessoa que sofre com o antes evitável erro de análise.
 
De facto, e isto é muito importante que se entenda, o erro é mesmo isso, um erro. Quando se erra sabe-se que se erra e quando não se sabe que se errou, quer dizer quando não se sabe que a «culpa» daquilo que acontece é do nosso erro de análise, tudo se passa como se nada fosse originalmente connosco, como se tivesse havido um acidente, uma coisa exterior a nós que tenha agido sobre nós, algo que não dominamos. Ora o erro pode dominar-se, quer dizer pode ser dominado e é essa a grande diferença entre o erro e a «intervenção» do acaso.
 
Quando a  pessoa erra e toma consciência de que podia ter passado sem errar, quer dizer, quando fica a saber que aquilo ou aquela coisa que lhe acontece, não é fruto do acaso, essa constatação da possibilidade do não erro é uma das causas importantes de um profundo desconforto psicológico, de estados pelo menos mediamente depressivos, de um martelar constante do arrependimento, de uma auto culpabilização que nem com o passar do tempo abranda, mesmo que esteja em nós cada vez menos presente. E é assim mesmo que as coisas se passam.
 
Quando comecei a tentar solidificar a relação com a Renata senti-me na obrigação de esclarecer desde logo aquilo que era o meu entendimento sobre as coisas que ela devia assim também saber, de mim, da minha vida em geral, da minha forma de ser e sobre aquilo que podia ou não esperar de mim e da nossa relação.
 
De um lado eu resguardava a potencialidade de erro de análise dela e esclarecia também a possibilidade de existência ou não existência de erro meu na análise do nosso iniciado relacionamento.
 
Ela, a Renata, sentou-se então no sofá e ouviu-me, tendo plena consciência de que aquilo que eu lhe ia dizer era de extrema importância.
 
A Renata tinha as pernas cruzadas quando começou a ouvir-me e eu vi perfeitamente as suas coxas libertas pela saia que subira ao sentar-se. E mais uma vez, entre tantas outras vezes que já pensara e lhe dissera a ela mesma disse então várias vezes para mim mesmo que havia muito mais que beleza nela.
 
Havia na Renata aquela sensualidade que os corpos despertam, que as posições desses corpos sugerem e havia ainda uma cada vez sempre mais forte emanação dela dentro de mim que não é racionalizável nem descritível. Não há palavras que consigam falar sobre aquilo que é de um outro reino, talvez do reino dos sentidos, acho eu, e não do reino da razão.
 
E estas coisas, as que resultam ou são manifestação do tal reino não racionalizável, vão tendo lugar espontaneamente, ou vão acontecendo porque vai despertando e crescendo em nós essa capacidade, não sei bem, e vemos as  coisas e as pessoas acima daquilo que elas expõem ou expressam. Vemos quase metafisicamente ou mesmo metafisicamente, acho eu.  
 
E eu disse então à Renata que há muitas pessoas que não entendem sobre as coisas, sobre dadas coisas e mesmo sobre todas as coisas, aquilo que nós entendemos sobre essas mesmas coisas e que eu estava ali para lhe dizer qual a minha linguagem, qual o meu pensamento, e estava ali para ouvir a sua linguagem e o seu pensamento. E foi assim mesmo que eu disse no começo.
 
E a Renata ouviu atentamente esta minha introdução, vi que os seus olhos estavam atentos, pareceram-me mesmo curiosos a notei nela alguma ansiedade para saber aquilo que se ia seguir. A Renata esboçou ainda um ligeiro sorriso de compreensão que me tranquilizou.
 
Na verdade eu sabia perfeitamente e já dei a entender alguma coisa sobre isto mais acima neste texto que grande parte da minha conversa com ela teria como ponto central a Françoise e que uma grande parte dessa minha conversa teria como vértice e referência a minha frustrada relação com a Françoise.
 
E isso não era bom, eu sabia, não era bom estar a tomar a Françoise como exemplo estando a dialogar com a Renata.
 
Mas depois de ver o seu olhar compreensivo e o seu sorriso eu disse-lhe que o meu relacionamento anterior com a Françoise tinha acabado de uma forma inesperada para mim, porque eu pensava que as coisas entre nós eram diferentes e demonstraram depois que o não eram.
 
E a Renata mexeu o corpo no sofá, estendendo os braços e colocando as mãos cruzadas atrás da cabeça. Quem a visse para além de mim diria que ela estava atenta e suspensa. E eu senti que sim, que era mesmo esse o estado dela: atenta e suspensa sobre aquilo que eu ia acrescentar e quando utilizei o nome da Françoise ela não me pareceu surpreendida nem desagradada e isso era muito bom, para mim era muito bom.
 
Disse à Renata que enquanto fui conhecendo a Françoise eu sempre pensei e que agora sabia que tinha pensado muito mal, que era possível haver um ponto de encontro entre os nossos dois pensamentos e que aquelas coisas que cada um de nós pensava diferente do outro sobre dadas coisas ou sobre todas as coisas tinha pelo menos uma plataforma onde tudo se cruzava, onde tudo se encontrava e onde tudo ficava claro para um e para o outro.
 
Nada mais errado, reconheço e disse isso mesmo à Renata. Não deveria ter partido desse pressuposto mas também sei que não serve de quase nada ter agora consciência desse meu erro passado. Mas não o queria repetir com a Renata e por isso estava ali a falar com ela e acrescentei que a Françoise era já uma recordação mesmo tendo passado pouco tempo sobre a sua partida, como passou, pouco tempo mesmo, talvez uma semana ou mesmo um pouco mais.
 
Na minha opinião, o problema maior neste emaranhado de entendimentos diferentes sobre as coisas estava no facto de eu e ela desconhecermos, ou de ser para nós dificil saber, onde se encontrava esse ponto de encontro e de clarificação, qual a sua qualidade, qual a sua espécie, qual a sua potencialidade.
 
A Renata manteve-se quase inexpressiva mas eu vi perfeitamente que ela seguia com atenção as minhas palavras.
 
Para mim, e agora que a Françoise já está longe, penso eu que ela tenha ido para longe, ou pelo menos eu não a vejo nos sítios que frequentávamos, o mal nas situações menos boas que vivemos não resultou do facto de termos opiniões diferentes mas sim de cada um de nós não encontrar nunca ou quase nunca aquele tal ponto de entendimento comum a um e outro. E foi isso que criou as tais situações menos boas entre nós, coisa que eu queria evitar que acontecesse com ela, com a Renata.
 
Conhecemo-nos, eu e a Françoise, numa altura em que cada um de nós vivia com companheiros diferentes e, por estranho que eu ache agora, ao fim de uns tempos curtos, menos de um mês pelo que me lembro, descobrimos em nós um ponto de entendimento, quer dizer, eu acho que lhe devo chamar isso, um ponto de entendimento, mas agora e depois do que sei e do que já disse acima acho que esse tal ponto de entendimento nunca existiu de facto, pelo menos naquele sentido de plenitude que eu agora julgo indispensável numa relação e na relação que queria manter com a Renata.
 
Para mim o que se passou foi simplesmente um cruzar de vontades que não tinham como conteúdo coisas palpáveis, quer dizer, coisas com substância. Falámos nisso há pouco tempo, antes dela partir, lembro-me bem, num dos tais momentos menos bons entre nós.
 
E a Françoise disse-me sumariamente que as nossas vidas se tinham juntado devido a um conjunto de circunstâncias e acrescentou logo que ela estava no tempo em que me conheceu em vias de deixar de viver com o João e que depois disso efectuado precisava muito de ter alguém e que talvez isso, esse facto, tenha pesado um pouco ou mesmo muito no futuro imediato da nossa relação.
 
E esse alguém, a pessoa que ela nessa conversa entendeu referir como tendo talvez pesado em demasia neste seu hiato relacional seria eu, como me pareceu então e agora claro. Mais nada. Em suma o que ela disse é que não tinha havido aquilo que eu pensava que tinha havido na altura entre nós, o tal ponto de entendimento que eu julgava ter havido logo no início da nossa
relação.
 
Fiquei surpreso, francamente surpreendido, asseguro, mas acho que a maior parte da minha estranheza se deveu ao facto de ter constatado que me tinha enganado, quer dizer, por ficar a saber, ali, preto no branco, como se diz, que eu mesmo tinha visto mal as coisas e que aquilo que eu tinha visto na Françoise nessa altura não era o mesmo que aquilo que a Françoise tinha visto em mim.
 
Fiquei com muita pena de mim, confesso. Não propriamente por ter visto partir a Françoise mas por achar que tinha visto as coisas mal e que não as tinha visto como ela as via mas antes como eu pensava que ela as via.
 
E foi esta a conversa que eu tive com a Renata, dizendo-lhe desta forma descritiva o que entendia ter-se passado com a Françoise e que não queria ver repetido com ela, situação esta que não queria voltar a viver. Não queria sentir de novo aquela horrível sensação de me ter enganado na minha análise das coisas.
 
Só isso, quer dizer, para mim o mais importante era não ter de sofrer de novo aquela sensação de ter errado na minha análise das coisas, porque foi uma sensação que me consumiu muito até ali. Vivi uma semana ou mais com um desgosto enorme, auto-culpabilizando-me, irritando-me comigo mesmo e posso garantir que não é nada bom estarmos muito tempo zangados connosco mesmos.
 
Não é nada bom, não senhor.
 
A Renata entendeu tudo o que eu disse e tudo o que eu pretendia: não queres sentir essa frustração, foi o que ela me disse enquanto se levantava do sofá. E confesso que naquele instante não fosse o olhar tranquilo e sorridente dela eu teria pensado que com a Renata tudo tinha acabado antes de começar mesmo.
 
Mas não foi isso que aconteceu...a Renata é muito paciente e gosta muito de mim, penso eu. À medida que o tempo vai passando vou-me convencendo cada vez mais que as coisas são claras entre nós embora este receio de estar errado na minha análise sobre a Renata, de me ter enganado, de ter errado de novo tal como errei com a Françoise me consuma cada vez mais um pouco cada dia que passa.
 
E esta dor, este medo, esta intranquilidade, é diferente mas é ainda mais forte do que aquela dor que tinha antes de ter tido aquela conversa com a Renata.
 
Daniel Teixeira

Nadine Gordimer e James Amado, convergências em duas obras.

 
Nadine Gordimer e James Amado, convergências em duas obras.
 
Análise de Daniel Teixeira
 
Estive a ler, recentemente, James Amado e Nadine Gordimer. Em primeiro lugar devo acrescentar que não conhecia nada sobre a obra de James Amado e que sobre Nadine Gordimer também pouco conhecia, embora a minha atenção sobre ela tenha sido despertada pelo Prémio Nobel da Literatura de recebeu em 1991.
 
Em segundo lugar, e ainda sobre James Amado, soube que faleceu por estes dias, o que lamento e me faz perguntar também porque razão eu, aqui em Portugal, não sabia nada sobre James Amado, embora a contra capa da edição da Europa América (1977) nos possa revelar alguma coisa sobre este escritor e sobre o romance ao qual só agora tive acesso.
 
Claro que o problema podia ser meu, posso não estar ao corrente mas dificilmente este argumento será suficiente porque mesmo no Brasil as referências a James Amado não são abundantes, se excluirmos a edição das Obras de Gregório de Matos que preparou e deu a conhecer ao público de língua portuguesa. A obra de James Amado a que tive acesso é «O Chamado do Mar», aquele que foi o seu primeiro romance.
 
Sobre Nadine Gordimer o volume que li é «O Conservador», que obteve em 1974 o Booker Prize (inglês) e em 1975 o prémio francês Grand Aigle D'Or.
 
Ora um e outro romance, de dois autores colocados geograficamente distantes  têm, na minha opinião muitos pontos de análise que lhes são comuns, daí ter-se despertado também em mim esta vontade de escrever sobre ambos de uma forma que não pretende funcionar (nem podia) como análise literária no sentido estilístico e valoração artística.
 
Sempre se pode dizer contudo que a escrita de Nadine Gordimer é mais escorreita, facto comparativo que pode também ser atribuído ao facto de no caso da autora se tratar de uma tradução (de fio a pavio - Ana Luísa Faria) enquanto que na obra de James Amado as expressões dialectais do Nordeste Brasileiro se mantêm em muitos casos intactas o que dificulta a leitura a um leitor do português europeu, dificuldade essa que está presente em muitas obras editadas no Brasil.
 
Sobre esta questão, da escrita original das expressões e particularidades regionais do Brasil não quero ir muito longe porque é um fenómeno para o qual ainda não encontrei resposta satisfatória. De um lado sou adepto da expressão da especificidade local mas ao mesmo tempo confronto-me com a dificuldade em entendê-la num contexto de leitura universalista.
 
Entrando então nos dois volumes em referência tanto no caso de James Amado como no caso de Nadine Gordimer as personagens principais, fulcro à volta das quais giram as histórias romanceadas, são dois fazendeiros, todos eles vindos de meios diferentes da actividade rural. Em James Amado, José Alves é um ex-vendedor, balconista e negociante e no caso de Gordimer, Mehring é um industrial/negociante de Aço.
 
Ambos adoptam, de forma diferenciada a actividade agrícola e cada um deles age por razões e formas bem diferenciadas. Alves dentro de um contexto de poder e violência típica dos famosos coronéis vai construindo um pequeno império e Mehring compra uma fazenda por razões de um lado sentimentais e por outro lado também relacionadas com o cansaço e a exigência da vida citadina e da sua vida profissional.
 
Enquanto que a mulher de José Alves é por ele reconhecida pelo trabalho desenvolvido em apoio do marido quando ele dele precisou , no caso de Mehring esta sua mulher, uma ex-mulher, aparece episodicamente em recordações e algumas acções indirectas que percorrem todo o romance.
 
Um e outro, Alves e Mehring estão desadaptados aos meios onde vivem, o primeiro talvez porque adquiriu ao longo dos anos uma rotina deambulatória da qual tem dificuldade em desligar-se, o segundo, primeiro por viver num país que sente não ser o seu (não pertence à maioria branca Böer) e por mostrar um comportamento desligado das realidades envolventes.
 
Em certo sentido, no caso de Mehring, encontramos um pouco de descrição Camusiana, onde não existem objectivos primários e no fundo se trata, conforme o título, de resistir passivamente o que equivale a conservar-se.
 
Alves luta, de forma suja muitas vezes, para manter e aumentar o seu poder, poder esse que estranhamente parece ser um objectivo essencial na sua vida quando já no seu declínio acaba por se desinteressar por ele.
 
Num caso e noutro ambas as personagens têm filhos, Mehring um e Alves três, estudantes semi ausentes e ausentes, respectivamente e cuja intervenção no romance é desligada no primeiro caso e quase nula no segundo. A presença desta progenitura nos dois romances serve bem para mostrar a descontinuidade das actividades e até das pessoas, ou seja, serve para nos dizer que num e noutro romance as vidas dos protagonistas e da sua forma de vida está no fio da navalha e que não existem perspectivas de continuidade geracional, tal como não existe princípio geracional. Assim, e em qualquer dos casos, mesmo noutros aspectos, não se retrata a sociologia das pessoas e dos ambientes envolventes mas sim casos específicos e particulares. 
 
Não tão extenso no espaço de vida de Mehring o romance de Gordimer deixa em aberto o que ainda restará, tudo apontando contudo para uma continuidade da duplicidade de actividades do protagonista, semelhante ao transporte da pedra de Sísifo.
 
Alves acaba por se evadir para uma vivência onde os espíritos e as visões sobrenaturais tomam lugar, numa forma de «morte» delicada, tão recorrente na literatura brasileira.
 
Os universos descritos, num caso e noutro, não são desenvolvidos em extensão: Alves tem um extenso território do qual só se vem a conhecer no romance a casa, um capataz, uma criada entregue pelos pais para ser cuidada, imagem típica de uma forma de servidão escravizante em uso na altura.
 
Mehring tem também um espaço de terreno que pelas descrições colaterais se entende ser de alguma monta mas apenas se fica a saber sobre a casa, uma mística parcela de plantação, uma ou duas vacas reprodutoras e um capataz, negro, neste caso.
 
São dois universos que acabam por se assemelhar mais pela força das descrições dos autores do que propriamente pelas linhas condutoras gerais, o que faz aconselhar a sua leitura para que seja absorvida a maior parte das semelhanças.
 
Assim, em dois locais distantes do mundo (Àfrica do Sul e apartheid e interior do Brasil e coronelato) se passam dois romances, cada um deles interessante à sua maneira, vivendo, se assim se pode dizer da arte dos dois escritores e da sua escrita.
Daniel Teixeira

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A tempestade - Conto de Daniel Teixeira

 
A tempestade - Conto de Daniel Teixeira
 
Naquela noite houve uma forte tempestade e logo depois houve uma mulher nua sentada no sofá à minha frente.
 
O dia teve uma temperatura normal e um céu relativamente limpo e nada augurara tamanha fúria da natureza mas o facto é que cerca da meia noite rebentou uma tempestade como eu pouco tinha visto e as coisas aconteceram como vou contando.
 
Quando a tempestade rebentou, eu que moro no topo de um pequeno prédio de dois andares recebi em visão quase aberta o relampejar consecutivo que se emaranhava no céu e ouvi em todo o som o troar dos trovões. Em certo sentido não tendo propriamente medo lembrei-me que morava no topo de um edifício e que havia antenas de televisão desactivadas por todo o lado nos telhados à volta e mesmo algumas destroçadas parabólicas pontuando aqui e ali.
 
De nada servia ficar preocupado, pensei, e disse a mim mesmo que Deus estava zangado e que eu talvez não estivesse num sítio ideal para tamanhas fúrias. Logo em seguida ouvi o toque da campaínha. 
 
Não foi um toque qualquer, um toque normal. Para além de ser pouco esperável ter visitas àquela hora quem tocava mantinha o dedo no botão e não o retirou até que eu abri a porta.
 
E eu vi então a mulher nua, que verdadeiramente aterrorizada e balbuciante me foi dizendo que tinha acabado de tomar duche quando a tempestade rebentou e tendo entrado rapidamente e fechado ela mesma a porta atrás de si, já sentada no sofá foi-me dizendo que só tinha tido tempo de vestir aquele casaco e subir em direcção à minha casa iluminada.
 
Quando já tinha passado algum tempo ela perguntou-me se podia ficar ali a noite caso a tempestade não parasse ou mesmo que parasse porque ela tinha medo, muito medo e não sentia coragem para voltar para sua casa e depois a tempestade voltar, caso ela entretanto parasse.
 
Disse-lhe que sim, que podia ficar, que podia até dormir na minha cama e que eu estaria ali mesmo, no sofá longo onde ela se sentava em frente a mim, nua, completamente nua, se é que existe outra forma de se estar nu sem se estar completamente nu.
 
A mulher, cujo nome só vim a saber mais tarde, chamava-se Catarina, tinha talvez trinta anos. Pediu-me desculpa por me incomodar e voltou a falar no casaco, que era azul e que eu via que ela não trazia e acrescentou que tinha terror das tempestades.
 
Deveria ter-lhe dito que não havia casaco azul nenhum, acho que deveria ter dito isso, mas ao mesmo tempo achei que talvez ela se sentisse mal se eu lho dissesse abertamente.
 
Ela acreditava ou queria fazer-me acreditar que tinha um casaco azul vestido, estava verdadeiramente aterrorizada e a mim só me restava rodear o seu pudor comprometido e sugeri-lhe que talvez fosse melhor eu trazer um cobertor para que ela se sentisse mais confortável e aquecida.
 
Disse-me que não, que aquele casaco era bem quente, era reforçado a feltro por dentro, e que tinha aquela gola de malha grossa que me mostrou não  mostrando esticando duas imaginárias abas junto ao pescoço e disse-me que estava bem assim mas que aceitava de bom grado um chá para tentar acalmar-se um pouco. Com a caneca com chá na mão foi-me então dizendo que tinha um terror grande das tempestades e começou a explicar-me as razões de tão elevado terror.
 
Depois da morte da sua mãe, ela era ainda miúda, fora viver com uma tia cujo marido tinha morrido fulminado por um raio e a tia não se cansava de referir isso em lamentos saudosos que preenchiam parte de todos os serões que passavam juntas e isto durante muitos anos.
 
Para além do mais, levara anos a acompanhá-la de vela na mão a rezar pelos quartos e pelos corredores da casa, fazendo o sinal da cruz a cada relâmpago e a cada trovão. Era um exorcismo disse-me a Catarina e no qual a tia parecia acreditar piamente.
 
Ela disse-me que embora não tenha nunca acreditado na possível eficácia do exorcismo acabara por interiorizar cada vez mais o terror pelas tempestades e agora ali estava, na minha casa, um pouco menos assustada porque eu estava ali mas agarrando sempre a gola do seu imaginário casaco azul para tapar os olhos cada vez que a luz dos relâmpagos penetrava pelos frestas das portas e pelo que restava em aberto nos vidros das janelas dado eu ter corrido todos os estores.
 
E a mulher nua, a Catarina, continuava a falar, quase ininterruptamente como se quisesse abafar em si o ruído que vinha lá de fora. Era relativamente bem feita, de seios médios e uma face bem bonita e de quando em vez parecia puxar as abas do imaginário casaco para cobrir os joelhos. Mantinha as pernas cruzadas e mostrava umas coxas bem torneadas e só muito amiúde descruzava as pernas mostrando então a púbis.
 
Embora eu começasse a acreditar cada vez mais que ela se agarrava à ideia de ter o tal casaco azul vestido, sabendo interiormente que o não tinha de todo acabei por mudar de ideia logo em seguida e ficar a pensar que de facto ela nem tinha consciência de estar ou não vestida.
 
Em rigor talvez ela mesma não soubesse completamente sequer onde estava embora soubesse fortemente porque estava num local qualquer. Por causa da tempestade, isso sabia ela, certamente, ou talvez a tempestade tivesse despoletado nela um terror que ultrapassava em grandeza o próprio terror da tempestade.
 
Os fusíveis rebentaram e a Catarina soltou um grito e sabendo quanto  aterrorizada ela estava pensei que no silêncio que se seguiu na escuridão ela tivesse desmaiado. Mas não, quando acendi uma vela, vi-a de pé, de mãos postas recitando baixinho uma lenga lenga imperceptível para mim.
 
Quando fui em direcção ao quadro electrico para tentar repor a ligação ela seguiu-me passo a passo, sempre rezando e rezando e num passo cadenciado fazia o sinal da cruz a cada trovão ou relâmpago que estalava na noite enquanto exclamava um mais sonoro «Deus nos salve, tia!».
Acabei por repor a electricidade e a casa iluminada de novo mostrou-me então o seu corpo esbelto dobrado às preces e ao terror que o varria, fazendo-a tremer de forma descontrolada. 
 
Eu antes tinha achado pouco possível que alguém estivesse sinceramente convencido que tinha uma dada roupa vestida e no caso tinha pensado que ela se tinha realmente precipitado escadas acima empurrada pelo terror e que só muito tarde, já depois de eu lhe abrir a porta tinha reparado que tinha feito o percurso completamente nua e que ali estava perante um desconhecido como Deus a trouxera ao mundo, nesta sua idade já acrescentada dos atributos próprios que os anos vão construindo.
 
Perante o embaraço não me pareceu a mim muito conveniente estar a desfazer-lhe a ilusão que ela criara para se proteger e restava-me levar aquela involuntária representação pelo mesmo tom.
 
Quando lhe ofereci o cobertor para se aquecer ela tinha rejeitado uma boa oportunidade de pelo menos atenuar a ilusão que criara, tinha pensado, mas como a mente humana é mesmo muito complexa achei que talvez ela pudesse ter interpretado isso como uma aceitação do desmascaramento de uma situação que já estava criada e que achava já estar ali consolidada havia algum tempo.
 
Por outro lado eu por vezes achava que ela acreditava mesmo que estava vestida, mas não notava qualquer traço de um possível distúrbio mental na sua conversa que fundamentasse a ideia e para além do desmesurado terror que mostrava cada vez que ribombava um trovão ou relampejava um relâmpago a Catarina parecia-me absolutamente normal nestas circunstâncias anormais.
 
Quando ela se acalmou um pouco perguntei-lhe o que fazia noutros dias em que havia tempestades e ela respondeu-me que vivia com uma colega e que entre as duas conseguiam equilibrar a situação, mas que a sua colega tinha ido visitar os pais e que aquela era a primeira vez que era apanhada por uma tempestade sozinha em casa.
 
Voltou a referir a tia, a quem apelidou de paranóica e que tinha tornado a ela também paranóica e acrescentou que estava a tentar vencer o medo e rindo nervosamente rematou com um pelos vistos ainda lhe faltava muito para vencer realmente aquele terror. E faltava mesmo, acrescentei eu dizendo-lhe que havia que continuar a esforçar-se.
 
Já iamos pelas três da manhã quando ela adormeceu. Achei melhor não a acordar e deixá-la ficar ali no sofá. Fui então buscar um edredon e tapei-a convenientemente e confesso que antes de o fazer, por segundos, por poucos segundos mesmo, tentei imaginá-la com um casaco azul vestido, ou seja, tentei ver o seu casaco azul.
 
Como nada a minha imaginação construíu e como nada vi acabei por pousar e aconchegar-lhe o edredon. Depois ri-me um pouco de mim mesmo porque achei que lá no fundo eu tinha pelo menos uma pequena dúvida sobre a existência real do tal casaco azul.
 
Pensei isso mas acho que foi um pensamento que resultava do meu cansaço já àquelas horas. E hoje ainda penso porque pensei nisso, na possibilidade de imaginar ou ver um casaco azul na então adormecida Catarina.
 
Quando acordei no dia seguinte já a Catarina tinha saído.
 
Até hoje, passado mais de um mês, nunca mais a vi tal como nunca a tinha visto antes daquela noite. A minha ainda curta vida naquela vivenda criaram tudo o que se passou antes e os horários seguramente desencontrados o que se foi passando depois.
 
Mas neste tempo sempre pensei que mais dia menos dia ela viria tocar-me à campaínha e imaginei a possibilidade de ela trazer nas mãos um bolo de oferta e vestir um casaco azul.
 
E esperando sem esperar penso também que talvez quando trovejar e ela esteja sozinha em casa ela suba de novo as escadas e me bata à porta. As coisas por vezes são mesmo complexas e podemos esperar que tudo aconteça assim como podemos também esperar que nada aconteça.
 
        
 

Testemunho

 
Testemunho - Conto de Daniel Teixeira
 
 
Lembro-me bem, agora que são passados muitos anos, que neste espaço de terra batida, coberta de ervas mortas e estevas secas e donde a vida se ausentou para tão longe que se não vê, lembro-me tão bem como se pudesse ser hoje, mesmo sabendo que não seja agora, que aqui havia um prado.
 
E naquele tempo de que me quero lembrar, porque esta é a imagem que quero guardada e não aquela que vejo, havia em tempos um cavalo branco e também um velho magro que era o meu avô que o olhava sentado naquela pedra grande que daqui se vê.
 
E lembro-me ainda que quando o meu avô respirava fundo os gases que trouxera da guerra, que ele respirava muito fundo, tão fundo que se ouvia ali perto e mais longe, que nessas alturas então o cavalo resfolgava e parava de pastar. Levantava ele então a cabeça e com as crinas tombadas ficava de olhar parado e o que ele então via e pensava não pensando não sei porque eu era ainda uma criança e as crianças não sabem muitas coisas como eu não sabia.
 
E estava eu, o neto, e olhava o meu avô e o nosso cavalo, e o prado e o céu azul e os montes e as casas brancas e os cercados e os caminhos e os valados. Mas isso era tudo o que eu via.
 
O meu avô e o cavalo viam aquilo que havia e aquilo que ia haver porque eram crescidos e já tinham uma idade que eu não tinha. Viam ambos todas as coisas que eu via e aquelas que um dia poderia ver também. Foi isto que o meu avô me disse, que era assim mesmo que as coisas se passavam, que para além daquilo que se vê há mais coisas, umas que já existem e não se mostram aos nossos olhos e outras que vão acontecer.

Neste tempo que quero lembrar e enquanto escovava o pelo e as crinas do cavalo branco e conversava com ele, dizia-lhe o meu avô palavras que eu, criança, procurava entender e que ele e o cavalo entendiam. E o meu avô com os olhos feitos ainda mais pequenos e ainda mais tristes disse-me que o nosso cavalo branco estava de partida para o céu dos cavalos. 
 
E enquanto falava com o cavalo o meu avô dizia-lhe para que ele não tivesse medo, que tudo ficava bem, que tudo ficaria como estava, que o prado e o estábulo ficariam ali até ao seu regresso, porque ele, o cavalo branco ia regressar, um dia, ele não sabia quando, disse-me, o meu avô não sabia quando mas sabia que havia um regresso.
 
O que o meu avô não me disse porque eu era uma criança é que quando se cresce muito, mesmo muito, quando ficamos com a idade do meu avô e do cavalo branco há uma altura em que se vêem muito mais coisas e que quando já se viu tudo o que havia a ver, quando mais nada de novo há para ver, quando se sabe tudo o que aconteceu e o que vai acontecer, que nessa altura se fecham os olhos e que tudo aquilo fica ali, dentro dos olhos fechados, guardado para sempre.
 
Um dia talvez eu soubesse também quando os cavalos estão para ir para o céu dos cavalos, pensava. Mas eu era uma criança e não podia saber ainda.
 
Mas o meu avô sabia e o cavalo branco também sabia e hoje, aqui em frente a este prado morto, sei também tudo isso. E ali ficava eu, muito tempo, sempre, todos os dias. Talvez eu visse o cavalo galopar subindo em direcção às nuvens, pensava.
 
Foi isso que o meu avô me disse, que era assim que os cavalos partiam, iam e iam e iam galopando pelo azul e subiam sempre cada vez mais até ficarem do tamanho de uma estrela. Depois todas as noites se podia ver o nosso cavalo estrela.
 
E ensimesmado acrescentava murmurante que para além de mim e da família o cavalo branco era agora o único amigo verdadeiro que lhe restava. Muitos, todos os seus amigos tinham partido disse nesse tempo o meu avô e eram eles agora estrelas cintilando na noite entre outras estrelas amigas de outros amigos.
 
E eu perguntei então como sabia o avô quais eram as estrelas dos seus amigos e ele respondeu-me que todas as estrelas que havia no céu eram suas amigas e que não havia nenhuma que não fosse sua amiga. E foi assim mesmo, com estas palavras, que o meu avô me respondeu.
 
Agora aqui em frente a este desolador descampado que já teve em tempos erva verde, um cavalo branco e o meu velho avô lembro-me de tudo. Mas eu tive de partir e não vi o cavalo branco correr entre as nuvens nem vi o meu avô transformar-se numa estrela também, dias depois.
 
Agora que já tenho idade para ver aquilo que se vê e aquilo que se não vê, aquilo que acontece e o que não se vê acontecer sei que os dois foram para o céu e sei que entre o céu dos cavalos e o céu onde está o meu avô há um prado verde e um estábulo onde eles se encontram e onde o meu avô lhe acaricia e escova as crinas e o pelo e fala com ele como falava antes, dizendo-lhe que tudo aqui será como antes, o prado, o estábulo, tudo.
 
Quando ele e o cavalo voltarem, porque vão voltar porque é certo que há sempre um regresso, eu já terei plantado de novo aqui erva verde, já terei reerguido o estábulo, tirarei o musgo àquela pedra onde o meu velho se sentava e farei tudo para que tudo volte a ficar como era antes.
 
E é essa a minha missão aqui.
 
E é isto que te queria dizer, hoje, aqui, porque o que te digo é o testemunho daquilo que já foi e sempre será, meu querido neto.
 

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Dentes Alvos

 
Dentes Alvos
 
Eu acho que há sempre um sinal, um pormenor, um detalhe ou mesmo uma conversa que guardamos na memória primeira que temos de uma pessoa, de um acontecimento ou de qualquer coisa.
 
Deve haver, penso eu, no nosso cérebro e na nossa organização das memórias assim como que um elo de ligação escondido que desperta espontaneamente quando se fala de alguém, de um caso, de uma coisa ou quando não se pensa em nada, mesmo. E é quando essa memória, esse indício, aparece por acaso, não sendo nunca um acaso.
 
E esse sinal ou esses sinais aparecem, no nosso entendimento, como se não devessem estar ali. Mas estão ali, connosco, e vêm não se sabe como nem donde.
 
Tenho sempre dito que o nosso sistema mental funciona assim um pouco por cábulas, por indícios, por pequenos detalhes, por pequenas coisas que abrem a porta ou a gaveta onde está guardado o grosso da nossa memória de cada caso, caso a caso.
 
Só que essas cábulas, esses indícios que despoletam o resto daquilo que vamos pensar a seguir são assim como que um segredo da nossa mente, um mistério que só ela, a nossa mente, sabe interpretar. Nós não, não sabemos isso, conscientemente nem damos por nada e tudo se passa por um processo que nos ultrapassa.
 
Acho que é bom referir isto antes que comece a contar esta minha história, e é bom que saibam também que aquilo que acontece com todos nós é isso, uma coisa assim.
 
Por isso me lembro que me lembrei da Aline por causa dos seus dentes brancos, dos seus dentes extraordinariamente alvos e lembro-me que senti logo em seguida a ideia de que ela fumava. Via-a aliás, vi a Aline ali ao pé de mim a fumar.
 
Era a imagem nítida de uma pessoa que não estava ali mas foi quase como se estivesse e digo este «quase» para que não pensem que tenho visões de coisas que não existem. Era mesmo ela, ali sentada, repito, a Aline, com os seus dentes muito brancos e a fumar.
 
E eu estava numa esplanada de um café e mesmo procurando agora uma razão, ténue que seja, para me ter lembrado dos dentes alvos da Aline e do facto de ela fumar não consigo encontrar essa razão nem sei como a vi e porque a vi. Sei apenas que ela não estava de facto ali, para os outros, e estava ali para mim. Por breves segundos, acrescento, foi só por breves segundos.
 
Depois, a Aline, da mesma forma que me apareceu foi-se embora, quer dizer a minha imagem nítida dela desapareceu.
 
Acho que estes pequenos mistérios fazem também parte da nossa vida, que estes pequenos mistérios ficam connosco até que encontremos uma razão que satisfaça a nossa dúvida.
 
Mas essa razão não é nunca a razão que esteve verdadeiramente na origem daquilo que nos levou a pensar ou a ver dada coisa, penso eu.
 
O nosso cérebro é muito inteligente, mesmo quando nós não somos inteligentes e não desvenda o seu segredo, não nos diz como chegámos àquela memória. E é assim a forma de proceder do nosso cérebro: diz-nos o que nos faz falta para que fiquemos satisfeitos e tranquilizemos os nossos pensamentos mas no fundo não nos dá uma resposta verdadeira.
 
Dá-nos uma resposta que nos convenha, que achemos pelo menos possível, uma resposta que nos tranquilize e nos faça deixar de pensar naquilo que nunca vamos conseguir encontrar. E ele sabe isso, sabe que nós, por nós mesmos, racionalmente, racionalizando, não vamos chegar lá porque o que procuramos não é do reino da razão.
 
E o meu cérebro disse-me depois que eu pensei na Aline que isso era porque eu estava com saudades dela, o que é uma resposta aceitável, mas não me disse porque pensei eu na Aline e porque a vi nitidamente num dia igual aos outros e depois de já ter passado quase um mês sem ter pensado uma só vez nela.
 
Eu tinha mudado de mundo, estava em Portugal e ela estava em França e eu não tinha tido nunca sequer a ideia de voltar para lá ou dela vir encontrar-se comigo cá.
 
Foi tudo bem, a nossa despedida, ficámos amigos na mesma mas cada um tinha um caminho a percorrer e o meu era aqui, em Portugal e o caminho da Aline era em França.
 
E a Aline com os seus dentes alvos era maravilhosa, digo-vos. Os meus dentes estão ligeiramente escurecidos pelo tabaco, pela bebida. Estão sempre limpos mas têm aquele tom tenuemente amarelado. Os dela não, eram impecavelmente alvos. Nunca vi dentes assim, confesso, e mesmo que isto não fosse importante para esta história eu teria sempre presente na minha ideia a brancura dos dentes dela desde que me lembrasse dela como aconteceu naquele dia em que a vi ali na esplanada.
 
Eu nunca estive propriamente obcecado com a ideia dela ter uns dentes tão alvos mas reparava sempre nos dentes dos nossos amigos, homens e mulheres, jovens em larga maioria e nunca vi dentes tão alvos como os da Aline.
 
Perguntei à Marie Agnés se ela não achava que os dentes da Aline eram extraordinariamente alvos, sabia que ela não ficaria triste por eu lhe perguntar isso e sabia que ela nunca pensaria que lhe perguntava isso dizendo ao mesmo tempo que os dentes da Maria Agnés não eram tão brancos como os da Aline.
 
Eu sabia isso porque ela sempre foi muito boa moça a Marie Agnés. A sua face, extraordinariamente bonita, de traços perfeitos, abriu-se então num sorriso e ela respondeu-me que sim, que de facto os dentes da Aline eram mesmo muito brancos, que talvez fosse genético, disse ela. E disse-me então também que os dentes dela não eram tão alvos como os da Aline.
 
A Marie Agnés para além de ter uma face linda, simplesmente linda, tem um corpo perfeito, quase sempre escondido pelas saias compridas de seda.
 
Morava fora da cidade, e por vezes, e para não ter de ir a casa, tomava banho na nossa casa e despia-se e vestia-se mesmo ali na sala. Depois colocava-se numa posição de ballet, de braço levantado como se segurasse o facho da liberdade e eu via-lhe o corpo todo.
 
E era mesmo perfeito o corpo dela e ficava bem aquele momento e a Marie Agnés fazia-nos rir muito com aquela coisa de partir para o banho andando na ponta dos dedos dos pés.
 
Talvez fosse um pouco infantil, pensava eu , mas bastante culta. A Aline também era culta mas eu achava-a um pouco fechada dentro do cofre que era a sua personalidade. Uma personalidade forte, diga-se, bem forte. Tinha uma forma de ser que preservava mostrando só o essencial a cada momento e não expondo mais do
que aquilo que era necessário.
 
Vivemos juntos até que eu cheguei à conclusão que era melhor voltar para a minha terra. Foram três anos, talvez um pouco mais, não estou bem certo.
 
Quando quis partir perguntei-lhe se ela queria vir comigo, achei que talvez ela quisesse mas não quis.
 
Tinha a sua vida lá, a sua família, os seus estudos e juntou mais alguns argumentos que agora não me lembro. Ficou tudo bem entre nós, muito bem mesmo.
 
A Marie Agnés, essa quis vir: sem compromisso, acrescentou, sem compromisso entre nós. Nunca tinha havido nada entre nós e nem era para haver. Eu vivia com a Aline e éramos três bons amigos, só isso, ou tudo isso.
 
Mas aqui passou a haver algo entre nós e não vou dizer agora aquilo que se sabe desde logo ao ler estas linhas.
 
O que mais lamento é que não consigo ser tão feliz com a Marie Agnés como fui com a Aline, isso lamento mesmo e acho que ela sabe isso.
 
Acho uma pena. A Marie Agnés é muito boa moça, uma companheira excelente. Por vezes desejo desejar a Marie Agnés tal como desejava a Aline mas não consigo.
 
E quando tento com mais força gostar tanto dela como gostava da Aline aquilo que me vem à mente é o seu passo na ponta dos dedos caminhando para o banho e eu e a Aline sentados no sofá a rirmos muito.
 
Daniel Teixeira

Tão linda que é a Paula

 
Tão linda que é a Paula
 
E é assim como vou dizer que as coisas se passam e devo logo dizer que há muito tempo que não escrevo, assim como estou a escrever agora e que não sei se vou conseguir dizer tudo o que quero, mas vou tentar, vou tentar ser claro, vou tentar fazê-los compreender como as coisas se passaram, todas as coisas, desde que conheci a Paula.
 
É linda, ela, muito linda e ainda hoje acho que ela é linda mesmo que não a possa ver lá onde ela está todos os sábados, precisamente às dez horas da manhã, quando vou vê-la. Quer dizer eu posso vê-la, posso olhar para ela, posso ver se a sua face se alterou e posso saber até que ela hoje é ainda mais linda, sempre mais linda, porque isso é possível, é possível que uma pessoa linda seja cada vez mais linda, mas isso não posso descrever aqui porque embora a veja não posso vê-la como me vejo a mim mesmo e nem sei se ela me pode ver a mim.
 
Tenho que imaginar a Paula e só posso imaginá-la assim, cada vez mais linda sem a ver vendo-a na mesma. Não me explicaram isso e deviam explicar como é que aquele vidro grosso que nos separa todos os sábados, às dez horas, infalivelmente às dez horas, porque é que aquele vidro grosso não me deixa vê-la mesmo, assim como me vejo a mim.
 
Deviam explicar isso às pessoas, acho eu, deviam dizer quem vê quem através daquele vidro grosso e se nenhum dos dois pode ver o outro. Deviam explicar isso muito bem, deveriam dizer-me a mim e eu não sei se eles não me disseram a mim e não explicaram também à Paula. Por isso acho que eles não devem ter explicado a nenhum de nós como as coisas se passam.
 
Já perguntei à Paula se ela me vê mas não tive resposta, por isso acho que não há som que passe aquele vidro grosso onde estive há poucos minutos. São dez e vinte agora e deixaram-me lá ficar só quinze minutos. Quinze pequenos minutos para que duas pessoas estejam próximas quando estiveram juntas toda a sua vida, até aqui. Agora estamos divididos: eu para cá do vidro grosso e ela para lá do vidro grosso. Acho que deviam explicar o porquê disso tudo mas não explicam.
 
E deviam dizer porque me dizem para entrar naquela sala todos os sábados aqueles quinze minutos se eu não posso ver a Paula e não sei se ela me pode ver a mim. Sei que ela não me responde, isso sei porque eu falo sempre com ela, falo muito, pergunto como está a passar, pergunto se ela me ama muito (ela gostava muito que eu lhe perguntasse isso sempre, todos os dias, muitas vezes por dia). Mas talvez não achem isso importante, acho eu, explicar estas coisas.
 
Eu escrevia muito, muito mesmo, estava quase sempre a escrever e agora tenho de lhes pedir que me desculpem se eu não me fizer entender, porque acho que não escrevo claro. A minha escrita era até muito clara, foi o que a Paula me disse logo no início, quando nos conhecemos. Foi bom e agora ainda é bom mesmo assim como estou, sem ver a Paula tal como me vejo a mim, mas sei que ela continua linda, sempre foi linda. Acho que não deve haver pessoa mais linda que a Paula.
 
Estou mesmo apaixonado por ela e ela está apaixonada por mim e quando podíamos falar os dois ela dizia-me que eu escrevia muito bem, mesmo muito bem. Não tenho a certeza, estes tempos assim, tempos de felicidade, não se contam, mas acho que foi durante dois anos, pelo menos que ela achou que eu escrevia bem e me dizia isso sempre. E dizia-me que me amava.
 
Depois, bem, depois talvez passados esses dois anos as coisas foram mudando um pouco, mas a gente amava-se sempre. O que mudou foi uma coisa simples que era importante para mim e para ela mas que não era importante para as nossas vidas. Foi quando ela começou a dizer-me que eu escrevia muitas vezes a mesma mensagem, e eu perguntava como e ela dizia-me para ver a linha dez e a doze e a quinze, acho que primeiro foram essas e eu lia e via que estava lá escrito «ela deve morrer».
 
No princípio ainda lhe disse que as palavras eram para ser lidas no contexto em que estavam e que nós não devíamos estipular os nossos próprios contextos, mas ela insistia e encontrava sempre as mesmas palavras em três linhas, sempre separadas, sublinhava-as e estava lá sempre «ela deve morrer».
 
Bem tentei que aquela conjunção de palavras não aparecesse nunca, primeiro deixei de escrever morrer, mas a Paula encontrava «morte» e «merece» e dizia-me que era a mesma coisa, que eu escrevia a mesma mensagem com outras palavras. E não encontrei maneira de continuar a escrever sem que as palavras que a Paula encontrasse não dissessem quase sempre o mesmo, de muitas formas, e ela entendia que era uma mensagem para ela, que era aquilo que eu queria, que era aquilo que eu desejava, que ela morresse.
 
Eu amo a Paula, nunca pensaria uma coisa dessas, ela é a minha companheira e tínhamos tudo o que precisávamos, mas eu também tinha de escrever, era isso. Eu não conseguia deixar de escrever e comecei a esconder os meus escritos e foi pior ainda quando fiz isso.
 
A Paula descobriu-os um dia e foi então que ela me disse, depois de ler todas as páginas, e eram muitas as páginas que eu tinha escrito que «se era isso que eu queria, que ela morresse, então ela ia morrer mesmo», foi o que ela me disse.
 
Depois não me lembro mesmo daquilo que se passou em seguida naquela dia. Não me lembro mesmo, dou-vos a minha palavra. Só me lembro de ver pessoas na rua a afastarem-se de mim enquanto eu caminhava não sei para onde. Depois um polícia, daqueles que estão fardados, disse-me que eu tinha a minha roupa cheia de sangue.
 
Ele achou que eu estava ferido, acho que ele pensou isso mas depois viu que eu não tinha ferida nenhuma e perguntou-e onde eu morava. E as pessoas sabiam, as pessoas que se juntaram à minha volta e à volta do polícia sabiam isso porque eu nem me lembrava onde morava mesmo. Era para ali, certamente, mas eu não sabia onde.
 
Agora, neste momento, sei que estive naquela sala onde vou todos os sábados, às dez horas em ponto e dizem-me que é para ver a Paula que eu não vejo. Penso que ela me vê e ajeito sempre o meu cabelo, componho a minha camisa e sorrio, sorriu muito, tento dizer-lhe coisas mesmo sabendo que ela pode não me ouvir mas pode ler os meus lábios, isso ela sabe, sempre soube ler nos lábios, nos meus lábios.
 
Lembro-me que um dia me disseram que a Paula morreu, e disseram-me isso naquela sala onde me levam todos os sábados às dez horas mas não me disseram nunca porque há aquele vidro grosso naquela sala. Aquele vidro que eu toco e sinto ser muito grosso. Por vezes dou pancadas no vidro para chamar a atenção da Paula que está do outro lado do vidro. A Paula pode não me ver logo, penso, mas nem sei se ela me vê mesmo.
 
Talvez um dia me expliquem tudo isso, porque vou ali todos os sábados às dez horas para ver a Paula e não a vejo como me vejo a mim mesmo. Tenho esperança que um dia me digam tudo isso, me expliquem mesmo. Têm de explicar acho eu. Não podemos perder a esperança, não é(?).
 
E isso de me dizerem que a Paula morreu eu não acredito, nunca acreditei e sei que vou ver a Paula um dia, que vou tocar-lhe de novo e que vamos rir muito como fazíamos antes e que eu vou ver a face linda da Paula como me vejo a mim mesmo...
Tão linda que é a Paula.
 
 

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O Leão, o meu amigo e eu

 
O Leão, o meu amigo e eu
 
-Eu acerto pá. Podes crer que ele não mexe mais.
-Acertas uma ova, fostes atirador especial mas isso foi no tempo da Maria Cachucha, tinham as armas de carregar pela boca acabado de sair de circulação.
-És um brincalhão...não são armas muito modernas hoje mas eram fiáveis, a gente fazia tiro a mosquitos e tudo...
-Ah, Ah! Isso é que era bom de ver, os mosquitos a partirem-se todos mas de rir. Deixa-te disso, eu não nasci ontem...já cá contam setenta e tal e a esta distância nem num elefante tu acertavas.
 
Depois se fazes o barulho com a espingarda então é que ele repara em nós e a gente já não tem pernas para fugir...estás nos oitenta, tu, não!?
-Setenta e nove, meu caro, ainda não cheguei aos oitenta.
 
O leão estava de facto logo ali, quer dizer a cerca de cem metros, com a sua calma toda, deslocando-se de um lado para o outro e sacudindo as moscas. Não nos tinha visto ou se nos tinha visto, como tinha a barriga cheia tinha achado que nem valia a pena incomodar-se.
-O que será que o gajo comeu? Parece que anda pesado, estás a ver aquela barriga toda? E é um leão não é uma leoa, com aquela barrigona também, mas que grande barrigada ele teve com certeza.
 
- Pois, se calhar é melhor a gente passar-lhe logo ao lado, não temos outro caminho e se for preciso usas tu a tua excelente pontaria quando ele estiver para aí a cinco metros de nós. Aí deves acertar, de certeza.
- Daqui mesmo eu acerto. Devias ter um pouco mais de confiança em mim. Isto de fazer tiro é como andar de bicicleta, nunca se desaprende.
 
-Isso é válido só até aos setenta anos, a partir daí perde o prazo de validade...nunca ouviste dizer? Senilidade, meu caro, lentidão nos reflexos, plasticidade reduzida. Afinal fazes parte da Associação da Terceira Idade e não sabes isso?
 
- Sei sim, mas mesmo com rapidez muscular reduzida eu só tenho de apontar e mexer o dedo do gatilho. E tenho uma vista boa...fiz operação às cataratas há pouco tempo e vejo as letras todas do cartaz lá do consultório. O médico até me disse que eu via bem demais. Não me disse mas acho que ele queria dizer que mais um pouco de falta de vista me dava jeito.
 
- Sim, ele lá tinha as suas razões, certamente. É para não andares a ver o que não deves, a moça lá do café bem me disse que tu andas a espreitar-lhe para as pernas.
- A Lita? Ah, essa miúda calhava mesmo bem agora aqui a ver-me disparar. Era tiro e queda do leão e dela.
 
- A Lita, essa miúda, como tu dizes, tem quase sessenta anos e umas pernas que são uns tocos. E dizes tu que vês bem...
- Bem, estamos aqui para falar de mulheres ou para resolvermos o nosso problema? Temos de passar aquela clareira ou voltar para trás. Na clareira está um leão, tu não queres que eu dispare. Mesmo que aches que eu não acerto pelo menos posso assustá-lo e pô-lo a fugir daqui.
 
- Os leões não fogem, não percebes nada disto. Correm em direcção a ti a quase cinquenta quilómetros à hora, mesmo com a barriga cheia e nem terás tempo de fazer pontaria de novo. Tempo terias, aqui há uns anos, mas é preciso ter calma e não nos atrapalharmos.
- Qual o problema? É só puxar a culatra atrás e voltar a disparar.
 
-Essa arma tem culatra automática, caramba. Não precisas de puxá-la atrás, ela vai e vem sozinha. A idade está a dar-te cabo do raciocínio. Por este caminho ainda vou eu falar com o leão, digo-lhe que estou acompanhado de um nabo com uma arma na mão e que tu és perigoso. Acho que ele vai compreender e deixar-nos passar.
 
-Ok! Então faz lá isso...que eu dou-te cobertura.
 
Daniel Teixeira (Série Humor Triste)