sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Um leve sonho pesado - Conto de Daniel Teixeira


Um leve sonho pesado - Conto de Daniel Teixeira

Lembro-me, lembro-me sempre - e mais ainda me lembro disso de cada vez que conto esta história - que as pessoas dividem os sonhos em sonhos que são sonhos e em pesadelos. Está combinado que seja assim, a sociedade, os homens, o hábito, combinaram isto tudo desta forma mas todos sabemos que um e outro são sonhos, um que se considera bom ou agradável, e que 
se chama de sonho e o sonho pesado, que se considera como sendo um pesadelo.

Não existe, contudo, que eu saiba, saída para o pesadelo senão o acordar abrupto. Ora neste sonho que eu tive e que tem uma parte grande de pesadelo, eu não acordei, no pesadelo. Houve o cuidado inconsciente, é claro, de me libertar dele, de adoçar o seu final transformando o pesadelo em sonho tal como se entende ser o sonho. 

Foi um trabalho árduo da minha mente, para o qual eu não terei 
contribuído como é certo e para o qual ela, a minha mente dentro do meu eu consciente adormecido arranjou uma solução ou um seguimento narrativo quase coerente, passe o surrealismo próprio das coisas que são sonhadas.

Por isso, hoje, ao escrever aqui aquilo que foi este meu sonho, entre tantos que tenho tido, deixo à minha mente liberta do consciente as minhas mais sinceras homenagens. Ela merece! 

Quanto ao sonho...nele, dentro dele,primeiro havia um grande pássaro, um pássaro enorme, de asas negras e peito acinzentado que rodava, rodava e rodava à minha volta como se estivesse preso num mastro pelas pernas, fazendo círculos quase perfeitos e largando pios profundos, que me soavam como gritos de criança e que pareciam começar nas suas entranhas, como se fossem expirados por um sopro ainda maior que elas. Era, o piar, maior que os pulmões donde advinha, foi o que pensei.

Um Haiaiaiai! prolongado que durava minutos, muitos minutos, ou então era impressão minha, e acabava num som rouco, como se o ar sorvido antes se não tivesse ainda esgotado dentro do peito do pássaro grande. Assim mesmo. E era um roncar em cordas agudas, forte, ensurdecedor, como se os ruídos da própria terra e o ar à sua volta nada fossem comparados com ele, com o gritado pelo pássaro negro.

Depois havia um índio que era um índio com uma só pena presa tombada da cabeça por uma fita que parecia de couro, pintada com uma enormidade de cores em pequenos quadrados e um rosto que parecia cavado na pedra, sem expressão, de olhos fechados e cabeça tombada, cantando e rezando, como se estivesse a invocar aquela terra muito vermelho acastanhada, seca, batida pelo sol que passava pelos meus olhos à frente e atrás das asas do enorme pássaro.

Durou tudo muito tempo, não sei bem quanto tempo demorou até que o animal, que estava preso no seu circulo de voo, parecendo estar preso pelas pernas, começou a alargar os círculos que fazia, como se o elástico do seu arco se fosse esticando e sempre gritando passou rente a mim uma vez e outra vez e por fim lá partiu em direcção ao sol que se encostava já ao longe numa montanha.

Eu tinha os meus olhos protegidos com os braços e a partir de certa 
altura preferi não olhar para o pássaro e cruzava ainda com mais força os dedos, entrelaçando-os junto aos olhos, como se isso para mim fosse a esperança, aquilo que me restava, a melhor arma que o meu medo arranjara: não ver para evitar sofrer.

Eram dois mundos, duas realidades ao mesmo tempo contando como se fossem tempos diferentes e a minha recolhia-se por tempo infindo e abria-se por segundos, apenas pelo tempo suficiente para eu ver o pássaro, a sua sombra e o índio e a terra onde eu estava deitado.

E o índio lá continuava sempre, de pernas dobradas junto ao solo, de quando em vez fazendo pequenos movimentos como se procurasse assentar melhor as pernas dobradas a cada voo e a cada passagem do pássaro. Mas não saía praticamente do mesmo lugar, estava sempre ali, esteve sempre ali mesmo depois que o pássaro partiu. 

Procurava precaver-se do seu regresso, do regresso do pássaro enorme, de asas negras e peito acinzentado, pensei eu, tal como se tinha protegido do voo do pássaro enquanto ele durara, cantando e rezando sempre numa lenga lenga da qual eu não entendia nem o começo nem o fim.

Havia várias lendas sobre aqueles pássaros, tinham-mas contado na aldeia e todas elas apontavam para a destruição certa de quem fosse cercado pelo «bicho negro». Que havia olhos arrancados primeiro, braços decepados e por fim o pouso triunfal do animal sobre o peito da sua vítima arrancando com o seu enorme bico a carne do peito, ficando apenas o esqueleto e o coração.

Este órgão, o coração, segundo as lendas que eu tinha ouvido na aldeia, ficava palpitando e se alguém chegasse após a partida do bicho e o arrancasse e o metesse numa ânfora de barro meio cheia de sangue de cabra - tinha de ser de cabra, o sangue, segundo as lendas - ficava vivo para sempre, latejando baixinho, tão levemente que só quem olhasse atentamente podia ver. Mas lá estaria ele, a mexer, sorvendo o sangue de cabra a expelindo-o de novo para a ânfora num compasso quase imperceptível.

Eu não conhecia o índio, não conhecia nem acreditava no pássaro, nem acreditava na imortalidade do tal coração deixado intacto pelas bicadas do pássaro negro. Era uma lenda, nada mais que isso, não significava nada. Agora penso que foi talvez por eu não acreditar, por eu não crer, que tive aquele sonho. Talvez tenha sido por isso mesmo... 

Então apareceu uma jovem, era mesmo uma jovem, uma jovem que não constava da lenda que me tinha sido contada e que dificilmente
encaixaria no episódio do voo do pássaro negro com peito acinzentado, nem sequer o velho com face petrificada que rezava ainda.

Mas fazia parte da história, a jovem e fazia parte da história o índio 
cantante da pena solitária na cabeça mesmo que não fizessem parte das lendas que tinha ouvido na aldeia. As lendas não contam nunca tudo, nunca se debruçam sobre os detalhes e no emaranhado das suas versões há sempre uma especial apetência pelo realce do horrível, pelo realce da provação. 

A jovem agarrou-me na mão esquerda que tal como a direita tapavam ainda os meus olhos receosos, fez um pouco de força para me erguer, sorriu e levantando os braços finos começou a içar-me, primeiro pondo-me de pé e depois elevando-me num voo que eu não entendia como podia ter lugar uma vez que ela não tinha asas. Talvez fosse um anjo e talvez nos sonhos os anjos não tenham asas, não sei, mas foi assim mesmo como conto que tudo se passou. 

Fez-me sobrevoar uma montanha, depois outra e ainda outra e depois, entre duas montanhas, e sobre um vale verdejante que contrastava com o vermelho acastanhado do resto que nos rodeava, deixou-me a mão e eu senti que também podia voar.

Estava aterrorizado embora voasse livremente sobre o vale verdejante, tinha medo que o impulso acabasse, que eu viesse a cair a pique da altura em que encontrava mas nada disso aconteceu e pousei os pés no solo, num espaço livre de arbustos. 

A jovem ficou lá pelo ar olhando-me e depois foi partindo na mesma 
direcção que tinha tomado o pássaro negro de peito acinzentado, lá onde o sol se punha, e foi-se fazendo cada vez mais pequena até que a perdi de vista.

Belisquei-me, não era sonho, tinha sido assim mesmo, era assim mesmo, tudo tinha sido real, desde o pássaro negro até ao índio cantante e à jovem que voava e eu que voara. E ali estava eu no meio do nada, verdejante, é certo, mas sem ter noção do caminho a seguir para regressar a casa.

Consegui divisar uma estrada logo ali no cimo do vale, uma estrada que era estrada para mim porque via nela passarem os topos de carros e camiões. Estava zonzo, mesmo zonzo, não percebia o que se passava, o que se tinha passado, não sabia nada e em certo sentido não queria saber. 

Só queria sair dali, abandonar aquele lugar, aquele sonho que não era bem um sonho, ou que talvez fosse, queria sair daquele mundo tão surreal, daquele mundo onde tanta coisa tinha acontecido em tão pouco do tempo de toda a minha vida.

Na estrada houve um carro que parou ao pé de mim com alguma chiadeira de pneus. A estrada era longa e direita e convidava à velocidade. O senhor que conduzia o carro abriu-me a porta sem uma palavra mas nada disso era para mim importante. Queria sair dali e saí.

Daniel Teixeira





O João e a Filó - Conto de Daniel Teixeira


O João e a Filó - Conto de Daniel Teixeira

Os dentes dele batiam de uma forma que o assustava, mas era sempre assim. Não era porque estivesse muito frio, de facto a sala estava sempre bem aquecida, naquela temperatura ideal para um dia de inverno,  tinha-o sentido quando se despira e quando a enfermeira abrindo a porta um pouco, sem olhar muito para ele, lhe tinha perguntado se já estava despido. 

Sim, estava! Disse com uma resposta rápida, como se tivesse receio que ela entrasse mesmo e visse o seu corpo, um pouco magro, mas de qualquer forma não excessivamente magro para a sua idade jovem. 

Tenho de comer mais dizia muitas vezes mas o apetite faltava-lhe e agora estava ali, numa consulta, porque a sua mãe tinha dito ao médico que não compreendia porque é que ele estava naquele estado como se o estado dele fosse alguma coisa de grave. 

Fui sempre assim, dizia ele tantas vezes à mãe, e ao pai que também lhe ralhava e que achava que havia coisas que ele não devia fazer porque era demasiado fraco. Deixa que eu levo – dizia-lhe o pai quando se tratava de carregar algo mais pesado na loja, pronunciando este deixa que eu levo como se ele fosse um inútil ou estivesse num processo pronunciado de decadência, ele que tinha quinze anos, mal feitos. 

O médico dissera que não devia ser nada mas que era melhor ver acrescentando um misterioso nunca se sabe…nunca se sabe como (?) ele não era Médico (?) deveria saber pois então (!!)…mas não sabia e tinha-o mandado tirar uma radiografia aos pulmões, outra radiografia, mais uma radiografia, que raio de coisa, dizia para si mesmo: eu não estou doente nada, só não tenho tanta fome assim e faria uma vida normal se não fosse a mãe estar sempre com o come rapaz ou o pai com aquelas tiradas parvas do deixa que eu levo até nos embrulhos pequenos porque estavam carregados de ferragens e isso era muito pesado para mim, pelo menos era o que o pai dizia.

Depois havia o se não vais à tropa não tens moça que te queira, elas fogem todas de ti não sabia bem porquê, mas se calhar as moças só casavam com moços que tivessem ido à tropa, ora bolas, ele que até estava desejando não andar com aquela farda verdosa, horrível, como via nos seus primos, e aquela boina toda mal posta que era como eles lá no exército queriam porque achavam melhor mas ele não achava e o boné dele estava sempre bem enterrado na cabeça, dava-lhe um ar de rufia, dizia para si mesmo quando se via ao espelho, daqueles rufias safos que a sabem toda. 

Dançaste João (!?) perguntava-lhe a mãe quando ele voltava dos bailes onde a mãe o obrigava a ir e lhe dava então algum dinheiro para ele gastar com os amigos e as moças, comprar um chocolate oferecer, à filha da ti Rosa, que é uma moça bonita e depois dizia e forte como um touro fazendo-o lembrar de novo que estava magro, que comia pouco e que se queria a Filomena que era a filha da Ti Rosa tinha de comer mais senão ela não o queria e se o pai estivesse por perto acrescentava logo pois se ele não for à tropa nem a a Filó nem nenhuma outra o quer e etc. etc. se de mais se lembrasse.

Veio a enfermeira de novo para o levar ao médico antes de fazer a radiografia, a porta era logo ali ao lado e ela puxou-o por um braço com força como se tivesse medo que ele se escapulisse. Caramba, dizia o João com os seus botões, tenho de andar neste vai vem que pareço um pássaro, levantar os braços para o médico me apalpar debaixo dos braços, dar duas ou três voltas para ele me ver o corpo todo, que raio deu a esta gente que nem sequer sabe que eu tenho vergonha de andar a mostrar o pirilau por aí e ainda com a enfermeira lá a mexer nos frascos, nas seringas de vidro, nas agulhas enormes como se estivesse ameaçando. 

Aqui não tens nada, mas tem de comer, pá, tens de comer, vamos a ver a radiografia, ver o que ela diz, mas eu acho que não é nada só que tens de comer pá, tens de comer e lá continuou ele a lengalenga do costume, desde o chouriço até às couves, mais o tomate, mais o toucinho, mais a carne, mais o pão, mais o leite, mais o queijo e dormir bem, tens de dormir bem. 

Ele até dormia bem, até dormia sim senhor e dormiria mais se não fosse ter de ir à Escola, andar cinco quilómetros até chegar à estrada e apanhar a camioneta que o levava para a vila onde ele e mais uns quantos andavam a acabar o 9º ano. Antes era melhor, havia 4 anos a Escola ela logo ali ao lado e vinha almoçar a casa e agora não: levava uma marmita, um bocado de pão, uma laranja ou outra fruta e à hora do almoço lá se sentavam todos numa sala onde a Contínua embirrava com ele para ele acabar a marmita, a marmita que mãe lhe arranjava, cheia de cozido, mais o pão e a fruta. 

Bem a radiografia está bem, parece bem, disse o médico, não tens nada, só precisas de comer melhor, tens de comer melhor, para a próxima quero-te com mais cinco quilos, ouviste? Ouviste? Ouviste? 

E a mãe dele à espera na rua com o então que disse o doutor (?) – que da radiografia já ela sabia - que precisas de comer mais, e que te quer com mais cinco quilos na próxima vez que cá vieres, eu sabia, eu sabia, tens cinco quilos para engordar nestes meses: quando cá voltares quero que faças uma surpresa ao médico, trazes mais seis quilos, o que achas, achas que consegues? 

Chegados a casa o pai com a tropa e com as moças que não me vão querer se eu não for à tropa e daqui a três meses a mesma história e todos os dias a mesma história deixa que eu levo o mais pesado e a Filó é muito boa moça, um brinco de rapariga e a Ti Rosa que é viúva e tem terrenos, hortas, amendoeiras, oliveiras, árvores de fruto e a Filó que é filha única e daquela fábrica já não sai mais nada porque ela é viúva. E agora vai lanchar que estiveste muito tempo sem comer.