domingo, 26 de abril de 2015

A importância na observação - Por Daniel Teixeira


A importância na observação

Por Daniel Teixeira

O termo voyeur é uma expressão normalmente vista numa perspectiva crítica ou depreciativa e é utilizado para definir, ou simplesmente episodicamente referir quem gosta de ver ou quem dá alguma primazia ou valor ao acto de observar outras pessoas ou coisas, entendendo-se aqui que essa observação do outro ou da coisa deverá ter implícita pelo menos alguma ligação com o observado.

Eu explico melhor esta última parte que pode aparecer como sujeita a confusão: em princípio não se observa apenas para observar; um astrónomo amador observa as estrelas, por exemplo, porque pretende compor a sua ideia sobre aquilo que é uma estrela, a sua forma, o seu brilho, a constelação onde se encontra, etc. Isto quer dizer que o observador deve ter um fim em vista e mesmo quando o faz por mera curiosidade diletante tal acto acaba por fazer suscitar em si um desejo por uma ou mais particularidades do ou dos objectos observados.

Claro que aqui interessa referir que deve haver alguma constância no acto de observar, até porque através da ocasionalidade será impossível detectar-se uma qualquer simpatia ou empatia para com o outro ou com a coisa observada. Jean Paul Sartre, nalguns desenvolvimentos que faz para definição do grupo pode dar-nos aqui uma pista comparativa até porque mais à frente voltaremos a falar dele.

Resumidamente, um conjunto de pessoas que apanha um autocarro no mesmo local com o mesmo destino não constitui um grupo, mas um conjunto de pessoas que participa numa deslocação programada, de autocarro, por exemplo, com partida e chegada ao mesmo local, embora se disperse de novo depois, antes durante e logo depois do decorrer da viagem é um grupo. Ora uma observação para o ser tem de equivaler a esta ideia acima referida: ser constante ou continuada.

As conotações dadas ao termo «observar» parecem esquecer o platonismo, ou o vulgarmente chamado amor platónico presente no diálogo Simpósio (Banquete). Embora a temática desenvolvida neste diálogo possa ser entendida como menos própria, trata este velho filósofo de destrinçar entre amor e (um pouco forçado) amor sem amor, sem apego, sem afeição.

Platão parece simpatizar com a segunda fórmula, até porque esta não distrai o observador dos verdadeiros interesses do saber e do conhecimento aos quais dá a primazia, que são do domínio do cérebro (pensamento) e não do domínio do corpo ou da paixão amputadora da racionalidade, como o primeiro. No seu entender é claro.

Assim, e voltando a Sartre acima, teremos que de forma grosseira Platão tenderia para a ocasionalidade e não para o grupo (ou agrupamento) definido acima. Assim, platonicamente, sem querermos ser muito rigorosos, observar (de forma correta, para ele) seria não se envolver com o observado. Refiro que se trata de analogias lógicas e não propriamente de análises consubstanciadas caso a caso.

Ora, observar, todos gostamos, penso eu. Aliás penso até que é uma das actividades à qual nos dedicamos por uma maior fracção do nosso tempo de vida. Na verdade, com excepção dos invisuais, somos dotados de visão e seria pouco compreensível que não exercêssemos essa actividade. O mundo à nossa volta está pleno de movimento, de seres e não-seres, de cores, de luz e sombra, breve, acho que é impossível escapar ao acto de observar.

Observar é um fenómeno que tem sido referido ao longo da literatura e mesmo na filosofia: Jean Paul Sartre por exemplo utilizou o termo para dizer que não se pode ser espectador e actor ao mesmo tempo, questão que eu acho discutível mas que não vou aqui discutir, porque na realidade o actor observa ainda que o faça de acordo com o interesse que tem na pessoa ou nos objectos com os quais interage.

Na verdade, Sartre distingue quase o mesmo que Platão acima: o envolvimento torna-nos actores e não podemos observar, pelo menos de forma «limpa / imparcial» aquilo em que estamos envolvidos. Vamos passar à frente a questão da subjectividade empregue ou não no envolvimento para lembrar o ditado de que não se pode ser juiz / julgar em causa própria.

Por sua vez e num outro paradigma de pensamento, um escritor americano (salvo erro Erskine Caldwell) relata num dos seus romances a luta entre dois indivíduos pela «posse» de um buraco na parede de um armazém naqueles ambientes um pouco surrealistas do campesinato americano dos anos 20 ou 30, com homens de calças de presilhas à jardineiro e ausência de banho anual.

Pois o dito buraco dava para a apreciação não de qualquer coisa extremamente escandalosa, não para a visão intromissora em algo de íntimo e pessoal, para algo em movimento que despertasse um desejo de seguir a sua continuidade, mas sim para uma extensa pradaria, vazia e sem qualquer significado se fosse vista da porta do dito armazém.

O importante era, pois, o buraco, a visão que era proporcionada pelo filtro do buraco, o facto de haver algo a separar o espectador da paisagem, a sensação diferente que era ter de mexer o corpo, e o olho, para olhar para a esquerda ou para a direita, enfim...se seguíssemos o raciocínio tratava-se de ver através daquele buraco na parede do armazém ... nada diferente, em sentido rigoroso. Mas o que interessou ao escritor foi descrever que é possível ver diferente vendo a mesma coisa de duas maneiras: através da porta e através do buraco na parede.

Quando se trata de obras, sobretudo as públicas, é frequente ver-se nos taipais pequenos furos, apenas suficientemente largos para que uma ou mais pessoas possam espreitar e não sei se por piada se por filosofia empresarial aparecem por vezes os dizeres, acompanhados de seta a feltro :«Espreite por aqui.»

Ora, estes elementos todos e mais alguns que fui recolhendo ao longo dos anos, de forma desinteressada e sem objectivo desde logo definido, levam-me hoje a fazer a reflexão que se impõe sobre a «magia» do buraco.
 
Há de facto algo de solene espreitar pelo buraco mesmo que aquilo que se vê seja precisamente aquilo que se pode ver de forma «livre» e aberta. O buraco soleniza as coisas, faz aquela separação que Nietzsche chama de separação entre actor e público, nas suas Origens da Tragédia. Aquela sensação de não estar por dentro soleniza aquilo que está por fora e a prova está nas referências literárias que fiz acima.

Mas, mais que isso, o pessoal que trabalha numa obra, e isto é importante, mesmo muito importante, não é objecto de crítica se por acaso estiver encostado à bananeira a deixar passar o tempo até ao apito de saída. Se perguntarmos a um «espreitante» usual ou não o que acha disso ele dirá que não tem nada com isso, está ali para espreitar e nada mais, o andamento da obra não lhe interessa: basta que do outro lado haja gente em movimento, máquinas, paredes e valas abertas.

Ora, e como vimos isso acontece a quem ou à coisa que está para além do buraco. Acontece com aquele que tem uma separação nítida e impeditiva de marchar à sua frente, aquele que não se pode fundir com o observado, aquele que não faz parte do mesmo «ambiente» funcional. Opta então essa pessoa pela ausência da crítica.

Não sendo esta uma questão transcendente é quanto a mim no entanto significativa sobretudo porque se aplica em diversos domínios da nossa forma de pensar e ver as coisas embora nem sempre lhe demos a devida importância, nomeadamente e como exemplo quando frequentamos redes sociais.