quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Dentes Alvos

 
Dentes Alvos
 
Eu acho que há sempre um sinal, um pormenor, um detalhe ou mesmo uma conversa que guardamos na memória primeira que temos de uma pessoa, de um acontecimento ou de qualquer coisa.
 
Deve haver, penso eu, no nosso cérebro e na nossa organização das memórias assim como que um elo de ligação escondido que desperta espontaneamente quando se fala de alguém, de um caso, de uma coisa ou quando não se pensa em nada, mesmo. E é quando essa memória, esse indício, aparece por acaso, não sendo nunca um acaso.
 
E esse sinal ou esses sinais aparecem, no nosso entendimento, como se não devessem estar ali. Mas estão ali, connosco, e vêm não se sabe como nem donde.
 
Tenho sempre dito que o nosso sistema mental funciona assim um pouco por cábulas, por indícios, por pequenos detalhes, por pequenas coisas que abrem a porta ou a gaveta onde está guardado o grosso da nossa memória de cada caso, caso a caso.
 
Só que essas cábulas, esses indícios que despoletam o resto daquilo que vamos pensar a seguir são assim como que um segredo da nossa mente, um mistério que só ela, a nossa mente, sabe interpretar. Nós não, não sabemos isso, conscientemente nem damos por nada e tudo se passa por um processo que nos ultrapassa.
 
Acho que é bom referir isto antes que comece a contar esta minha história, e é bom que saibam também que aquilo que acontece com todos nós é isso, uma coisa assim.
 
Por isso me lembro que me lembrei da Aline por causa dos seus dentes brancos, dos seus dentes extraordinariamente alvos e lembro-me que senti logo em seguida a ideia de que ela fumava. Via-a aliás, vi a Aline ali ao pé de mim a fumar.
 
Era a imagem nítida de uma pessoa que não estava ali mas foi quase como se estivesse e digo este «quase» para que não pensem que tenho visões de coisas que não existem. Era mesmo ela, ali sentada, repito, a Aline, com os seus dentes muito brancos e a fumar.
 
E eu estava numa esplanada de um café e mesmo procurando agora uma razão, ténue que seja, para me ter lembrado dos dentes alvos da Aline e do facto de ela fumar não consigo encontrar essa razão nem sei como a vi e porque a vi. Sei apenas que ela não estava de facto ali, para os outros, e estava ali para mim. Por breves segundos, acrescento, foi só por breves segundos.
 
Depois, a Aline, da mesma forma que me apareceu foi-se embora, quer dizer a minha imagem nítida dela desapareceu.
 
Acho que estes pequenos mistérios fazem também parte da nossa vida, que estes pequenos mistérios ficam connosco até que encontremos uma razão que satisfaça a nossa dúvida.
 
Mas essa razão não é nunca a razão que esteve verdadeiramente na origem daquilo que nos levou a pensar ou a ver dada coisa, penso eu.
 
O nosso cérebro é muito inteligente, mesmo quando nós não somos inteligentes e não desvenda o seu segredo, não nos diz como chegámos àquela memória. E é assim a forma de proceder do nosso cérebro: diz-nos o que nos faz falta para que fiquemos satisfeitos e tranquilizemos os nossos pensamentos mas no fundo não nos dá uma resposta verdadeira.
 
Dá-nos uma resposta que nos convenha, que achemos pelo menos possível, uma resposta que nos tranquilize e nos faça deixar de pensar naquilo que nunca vamos conseguir encontrar. E ele sabe isso, sabe que nós, por nós mesmos, racionalmente, racionalizando, não vamos chegar lá porque o que procuramos não é do reino da razão.
 
E o meu cérebro disse-me depois que eu pensei na Aline que isso era porque eu estava com saudades dela, o que é uma resposta aceitável, mas não me disse porque pensei eu na Aline e porque a vi nitidamente num dia igual aos outros e depois de já ter passado quase um mês sem ter pensado uma só vez nela.
 
Eu tinha mudado de mundo, estava em Portugal e ela estava em França e eu não tinha tido nunca sequer a ideia de voltar para lá ou dela vir encontrar-se comigo cá.
 
Foi tudo bem, a nossa despedida, ficámos amigos na mesma mas cada um tinha um caminho a percorrer e o meu era aqui, em Portugal e o caminho da Aline era em França.
 
E a Aline com os seus dentes alvos era maravilhosa, digo-vos. Os meus dentes estão ligeiramente escurecidos pelo tabaco, pela bebida. Estão sempre limpos mas têm aquele tom tenuemente amarelado. Os dela não, eram impecavelmente alvos. Nunca vi dentes assim, confesso, e mesmo que isto não fosse importante para esta história eu teria sempre presente na minha ideia a brancura dos dentes dela desde que me lembrasse dela como aconteceu naquele dia em que a vi ali na esplanada.
 
Eu nunca estive propriamente obcecado com a ideia dela ter uns dentes tão alvos mas reparava sempre nos dentes dos nossos amigos, homens e mulheres, jovens em larga maioria e nunca vi dentes tão alvos como os da Aline.
 
Perguntei à Marie Agnés se ela não achava que os dentes da Aline eram extraordinariamente alvos, sabia que ela não ficaria triste por eu lhe perguntar isso e sabia que ela nunca pensaria que lhe perguntava isso dizendo ao mesmo tempo que os dentes da Maria Agnés não eram tão brancos como os da Aline.
 
Eu sabia isso porque ela sempre foi muito boa moça a Marie Agnés. A sua face, extraordinariamente bonita, de traços perfeitos, abriu-se então num sorriso e ela respondeu-me que sim, que de facto os dentes da Aline eram mesmo muito brancos, que talvez fosse genético, disse ela. E disse-me então também que os dentes dela não eram tão alvos como os da Aline.
 
A Marie Agnés para além de ter uma face linda, simplesmente linda, tem um corpo perfeito, quase sempre escondido pelas saias compridas de seda.
 
Morava fora da cidade, e por vezes, e para não ter de ir a casa, tomava banho na nossa casa e despia-se e vestia-se mesmo ali na sala. Depois colocava-se numa posição de ballet, de braço levantado como se segurasse o facho da liberdade e eu via-lhe o corpo todo.
 
E era mesmo perfeito o corpo dela e ficava bem aquele momento e a Marie Agnés fazia-nos rir muito com aquela coisa de partir para o banho andando na ponta dos dedos dos pés.
 
Talvez fosse um pouco infantil, pensava eu , mas bastante culta. A Aline também era culta mas eu achava-a um pouco fechada dentro do cofre que era a sua personalidade. Uma personalidade forte, diga-se, bem forte. Tinha uma forma de ser que preservava mostrando só o essencial a cada momento e não expondo mais do
que aquilo que era necessário.
 
Vivemos juntos até que eu cheguei à conclusão que era melhor voltar para a minha terra. Foram três anos, talvez um pouco mais, não estou bem certo.
 
Quando quis partir perguntei-lhe se ela queria vir comigo, achei que talvez ela quisesse mas não quis.
 
Tinha a sua vida lá, a sua família, os seus estudos e juntou mais alguns argumentos que agora não me lembro. Ficou tudo bem entre nós, muito bem mesmo.
 
A Marie Agnés, essa quis vir: sem compromisso, acrescentou, sem compromisso entre nós. Nunca tinha havido nada entre nós e nem era para haver. Eu vivia com a Aline e éramos três bons amigos, só isso, ou tudo isso.
 
Mas aqui passou a haver algo entre nós e não vou dizer agora aquilo que se sabe desde logo ao ler estas linhas.
 
O que mais lamento é que não consigo ser tão feliz com a Marie Agnés como fui com a Aline, isso lamento mesmo e acho que ela sabe isso.
 
Acho uma pena. A Marie Agnés é muito boa moça, uma companheira excelente. Por vezes desejo desejar a Marie Agnés tal como desejava a Aline mas não consigo.
 
E quando tento com mais força gostar tanto dela como gostava da Aline aquilo que me vem à mente é o seu passo na ponta dos dedos caminhando para o banho e eu e a Aline sentados no sofá a rirmos muito.
 
Daniel Teixeira

Tão linda que é a Paula

 
Tão linda que é a Paula
 
E é assim como vou dizer que as coisas se passam e devo logo dizer que há muito tempo que não escrevo, assim como estou a escrever agora e que não sei se vou conseguir dizer tudo o que quero, mas vou tentar, vou tentar ser claro, vou tentar fazê-los compreender como as coisas se passaram, todas as coisas, desde que conheci a Paula.
 
É linda, ela, muito linda e ainda hoje acho que ela é linda mesmo que não a possa ver lá onde ela está todos os sábados, precisamente às dez horas da manhã, quando vou vê-la. Quer dizer eu posso vê-la, posso olhar para ela, posso ver se a sua face se alterou e posso saber até que ela hoje é ainda mais linda, sempre mais linda, porque isso é possível, é possível que uma pessoa linda seja cada vez mais linda, mas isso não posso descrever aqui porque embora a veja não posso vê-la como me vejo a mim mesmo e nem sei se ela me pode ver a mim.
 
Tenho que imaginar a Paula e só posso imaginá-la assim, cada vez mais linda sem a ver vendo-a na mesma. Não me explicaram isso e deviam explicar como é que aquele vidro grosso que nos separa todos os sábados, às dez horas, infalivelmente às dez horas, porque é que aquele vidro grosso não me deixa vê-la mesmo, assim como me vejo a mim.
 
Deviam explicar isso às pessoas, acho eu, deviam dizer quem vê quem através daquele vidro grosso e se nenhum dos dois pode ver o outro. Deviam explicar isso muito bem, deveriam dizer-me a mim e eu não sei se eles não me disseram a mim e não explicaram também à Paula. Por isso acho que eles não devem ter explicado a nenhum de nós como as coisas se passam.
 
Já perguntei à Paula se ela me vê mas não tive resposta, por isso acho que não há som que passe aquele vidro grosso onde estive há poucos minutos. São dez e vinte agora e deixaram-me lá ficar só quinze minutos. Quinze pequenos minutos para que duas pessoas estejam próximas quando estiveram juntas toda a sua vida, até aqui. Agora estamos divididos: eu para cá do vidro grosso e ela para lá do vidro grosso. Acho que deviam explicar o porquê disso tudo mas não explicam.
 
E deviam dizer porque me dizem para entrar naquela sala todos os sábados aqueles quinze minutos se eu não posso ver a Paula e não sei se ela me pode ver a mim. Sei que ela não me responde, isso sei porque eu falo sempre com ela, falo muito, pergunto como está a passar, pergunto se ela me ama muito (ela gostava muito que eu lhe perguntasse isso sempre, todos os dias, muitas vezes por dia). Mas talvez não achem isso importante, acho eu, explicar estas coisas.
 
Eu escrevia muito, muito mesmo, estava quase sempre a escrever e agora tenho de lhes pedir que me desculpem se eu não me fizer entender, porque acho que não escrevo claro. A minha escrita era até muito clara, foi o que a Paula me disse logo no início, quando nos conhecemos. Foi bom e agora ainda é bom mesmo assim como estou, sem ver a Paula tal como me vejo a mim, mas sei que ela continua linda, sempre foi linda. Acho que não deve haver pessoa mais linda que a Paula.
 
Estou mesmo apaixonado por ela e ela está apaixonada por mim e quando podíamos falar os dois ela dizia-me que eu escrevia muito bem, mesmo muito bem. Não tenho a certeza, estes tempos assim, tempos de felicidade, não se contam, mas acho que foi durante dois anos, pelo menos que ela achou que eu escrevia bem e me dizia isso sempre. E dizia-me que me amava.
 
Depois, bem, depois talvez passados esses dois anos as coisas foram mudando um pouco, mas a gente amava-se sempre. O que mudou foi uma coisa simples que era importante para mim e para ela mas que não era importante para as nossas vidas. Foi quando ela começou a dizer-me que eu escrevia muitas vezes a mesma mensagem, e eu perguntava como e ela dizia-me para ver a linha dez e a doze e a quinze, acho que primeiro foram essas e eu lia e via que estava lá escrito «ela deve morrer».
 
No princípio ainda lhe disse que as palavras eram para ser lidas no contexto em que estavam e que nós não devíamos estipular os nossos próprios contextos, mas ela insistia e encontrava sempre as mesmas palavras em três linhas, sempre separadas, sublinhava-as e estava lá sempre «ela deve morrer».
 
Bem tentei que aquela conjunção de palavras não aparecesse nunca, primeiro deixei de escrever morrer, mas a Paula encontrava «morte» e «merece» e dizia-me que era a mesma coisa, que eu escrevia a mesma mensagem com outras palavras. E não encontrei maneira de continuar a escrever sem que as palavras que a Paula encontrasse não dissessem quase sempre o mesmo, de muitas formas, e ela entendia que era uma mensagem para ela, que era aquilo que eu queria, que era aquilo que eu desejava, que ela morresse.
 
Eu amo a Paula, nunca pensaria uma coisa dessas, ela é a minha companheira e tínhamos tudo o que precisávamos, mas eu também tinha de escrever, era isso. Eu não conseguia deixar de escrever e comecei a esconder os meus escritos e foi pior ainda quando fiz isso.
 
A Paula descobriu-os um dia e foi então que ela me disse, depois de ler todas as páginas, e eram muitas as páginas que eu tinha escrito que «se era isso que eu queria, que ela morresse, então ela ia morrer mesmo», foi o que ela me disse.
 
Depois não me lembro mesmo daquilo que se passou em seguida naquela dia. Não me lembro mesmo, dou-vos a minha palavra. Só me lembro de ver pessoas na rua a afastarem-se de mim enquanto eu caminhava não sei para onde. Depois um polícia, daqueles que estão fardados, disse-me que eu tinha a minha roupa cheia de sangue.
 
Ele achou que eu estava ferido, acho que ele pensou isso mas depois viu que eu não tinha ferida nenhuma e perguntou-e onde eu morava. E as pessoas sabiam, as pessoas que se juntaram à minha volta e à volta do polícia sabiam isso porque eu nem me lembrava onde morava mesmo. Era para ali, certamente, mas eu não sabia onde.
 
Agora, neste momento, sei que estive naquela sala onde vou todos os sábados, às dez horas em ponto e dizem-me que é para ver a Paula que eu não vejo. Penso que ela me vê e ajeito sempre o meu cabelo, componho a minha camisa e sorrio, sorriu muito, tento dizer-lhe coisas mesmo sabendo que ela pode não me ouvir mas pode ler os meus lábios, isso ela sabe, sempre soube ler nos lábios, nos meus lábios.
 
Lembro-me que um dia me disseram que a Paula morreu, e disseram-me isso naquela sala onde me levam todos os sábados às dez horas mas não me disseram nunca porque há aquele vidro grosso naquela sala. Aquele vidro que eu toco e sinto ser muito grosso. Por vezes dou pancadas no vidro para chamar a atenção da Paula que está do outro lado do vidro. A Paula pode não me ver logo, penso, mas nem sei se ela me vê mesmo.
 
Talvez um dia me expliquem tudo isso, porque vou ali todos os sábados às dez horas para ver a Paula e não a vejo como me vejo a mim mesmo. Tenho esperança que um dia me digam tudo isso, me expliquem mesmo. Têm de explicar acho eu. Não podemos perder a esperança, não é(?).
 
E isso de me dizerem que a Paula morreu eu não acredito, nunca acreditei e sei que vou ver a Paula um dia, que vou tocar-lhe de novo e que vamos rir muito como fazíamos antes e que eu vou ver a face linda da Paula como me vejo a mim mesmo...
Tão linda que é a Paula.
 
 

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

O Leão, o meu amigo e eu

 
O Leão, o meu amigo e eu
 
-Eu acerto pá. Podes crer que ele não mexe mais.
-Acertas uma ova, fostes atirador especial mas isso foi no tempo da Maria Cachucha, tinham as armas de carregar pela boca acabado de sair de circulação.
-És um brincalhão...não são armas muito modernas hoje mas eram fiáveis, a gente fazia tiro a mosquitos e tudo...
-Ah, Ah! Isso é que era bom de ver, os mosquitos a partirem-se todos mas de rir. Deixa-te disso, eu não nasci ontem...já cá contam setenta e tal e a esta distância nem num elefante tu acertavas.
 
Depois se fazes o barulho com a espingarda então é que ele repara em nós e a gente já não tem pernas para fugir...estás nos oitenta, tu, não!?
-Setenta e nove, meu caro, ainda não cheguei aos oitenta.
 
O leão estava de facto logo ali, quer dizer a cerca de cem metros, com a sua calma toda, deslocando-se de um lado para o outro e sacudindo as moscas. Não nos tinha visto ou se nos tinha visto, como tinha a barriga cheia tinha achado que nem valia a pena incomodar-se.
-O que será que o gajo comeu? Parece que anda pesado, estás a ver aquela barriga toda? E é um leão não é uma leoa, com aquela barrigona também, mas que grande barrigada ele teve com certeza.
 
- Pois, se calhar é melhor a gente passar-lhe logo ao lado, não temos outro caminho e se for preciso usas tu a tua excelente pontaria quando ele estiver para aí a cinco metros de nós. Aí deves acertar, de certeza.
- Daqui mesmo eu acerto. Devias ter um pouco mais de confiança em mim. Isto de fazer tiro é como andar de bicicleta, nunca se desaprende.
 
-Isso é válido só até aos setenta anos, a partir daí perde o prazo de validade...nunca ouviste dizer? Senilidade, meu caro, lentidão nos reflexos, plasticidade reduzida. Afinal fazes parte da Associação da Terceira Idade e não sabes isso?
 
- Sei sim, mas mesmo com rapidez muscular reduzida eu só tenho de apontar e mexer o dedo do gatilho. E tenho uma vista boa...fiz operação às cataratas há pouco tempo e vejo as letras todas do cartaz lá do consultório. O médico até me disse que eu via bem demais. Não me disse mas acho que ele queria dizer que mais um pouco de falta de vista me dava jeito.
 
- Sim, ele lá tinha as suas razões, certamente. É para não andares a ver o que não deves, a moça lá do café bem me disse que tu andas a espreitar-lhe para as pernas.
- A Lita? Ah, essa miúda calhava mesmo bem agora aqui a ver-me disparar. Era tiro e queda do leão e dela.
 
- A Lita, essa miúda, como tu dizes, tem quase sessenta anos e umas pernas que são uns tocos. E dizes tu que vês bem...
- Bem, estamos aqui para falar de mulheres ou para resolvermos o nosso problema? Temos de passar aquela clareira ou voltar para trás. Na clareira está um leão, tu não queres que eu dispare. Mesmo que aches que eu não acerto pelo menos posso assustá-lo e pô-lo a fugir daqui.
 
- Os leões não fogem, não percebes nada disto. Correm em direcção a ti a quase cinquenta quilómetros à hora, mesmo com a barriga cheia e nem terás tempo de fazer pontaria de novo. Tempo terias, aqui há uns anos, mas é preciso ter calma e não nos atrapalharmos.
- Qual o problema? É só puxar a culatra atrás e voltar a disparar.
 
-Essa arma tem culatra automática, caramba. Não precisas de puxá-la atrás, ela vai e vem sozinha. A idade está a dar-te cabo do raciocínio. Por este caminho ainda vou eu falar com o leão, digo-lhe que estou acompanhado de um nabo com uma arma na mão e que tu és perigoso. Acho que ele vai compreender e deixar-nos passar.
 
-Ok! Então faz lá isso...que eu dou-te cobertura.
 
Daniel Teixeira (Série Humor Triste)
 
 

A garagem

 
A garagem
 
Ah! Como os carros eram bonitos, todos brilhantes, alinhadinhos, tão alinhados que pareciam ter sido ali metidos com as mãos como os carrinhos em miniatura das colecções, com os espaçamentos calculados quase ao milímetro e as riscas brancas cuidadosas a delimitar cada pneu, todas elas direitinhas, encostadas aos rodados todas à mesma distância, talvez vinte centímetros ou mesmo trinta para cada lado, e a realçarem do solo, quase como se tivessem espessura e não fossem antes um minucioso tracejado de tinta sem falhas.
 
Lindo, simplesmente lindo - repetiu para si mesmo. Estava contente, e tinha razões para isso. Ao fim de quase dois anos a penar no desemprego tinha-lhe surgido aquela oportunidade e era o seu primeiro dia naquele emprego.
 
Um amigo da Faculdade, daqueles amigos que não esquecem os amigos nunca, tinha-lhe falado de uma vaga na empresa onde trabalhava: era uma coisa para desenrascar- disse-lhe - ser vigilante na garagem era a mesma coisa que não fazer nada, era estar atento simplesmente, ser simpático com as pessoas e andar por ali...e ele andava ali, naquele primeiro dia e via os bonitos carros, via a geometria perfeita do lugar. Impecável, simplesmente impecável, tudo impecável.
 
O amigo era um quadro superior na empresa, tinham sido colegas na faculdade, tinham tirado o mesmo curso e tinham acabado no mesmo ano. Depois cada um foi para a vida dele. A vida do Quaresma tinha corrido bem, a dele não tanto ou quase nada, mas não interessava agora, tinha um emprego, tinha um salário e o Quaresma segredara-lhe que as pessoas costumavam dar gorjetas, por vezes, dependia dos dias, da disposição dessas pessoas: ele só tinha que se mostrar prestável para além de se mostrar simpático e de estar «sempre sorridente» - acrescentara o Quaresma - «sempre a sorrir, percebes? - é meio caminho andado para a gorja ».
 
E ele mostrava um belo sorriso, quase igual àquele que tinha nos tempos de Faculdade e que tanta miúda lhe garantiu...«mas lá tens de me tratar por Dr. Quaresma - e essa coisa de termos andado juntos na Faculdade não interessa andares a dizer, aliás não interessa sequer que digas que andaste na Faculdade.» - rematou. Tudo bem - respondera, o que lhe interessava é que aquele amigo, daqueles que nunca nos esquecem lhe tinha arranjado um emprego. Caramba, que sorte!
 
Na primeira conversa que tinham tido, dentro do carro dele, ainda antes de ter o emprego certo o Quaresma dissera-lhe uma coisa que o tranquilizara e da qual se lembrara logo quando o vira ao fim de tantos anos e quando começaram a conversar: Nada de ressentimentos por causa daquela miúda que ele tinha «gamado» ao Quaresma. Era linda, simplesmente linda, - disseram eles quase ao mesmo tempo - mas olha, estás a ver como eu estou, sem emprego e sem dinheiro e sem a tal miúda linda.Nem essa nem nenhuma...
 
Primeiro parecera-lhe que o Quaresma estava com dificuldade em lembrar-se dele, afinal tinham passado tantos anos sem se verem e estavam os dois diferentes. Ele também não andava com roupas muito boas, aliás tinha umas calças de ganga e uma t shirt enquanto que o Quaresma andava de fato e gravata - e caramba como estava calor mas o fato era daqueles de tecido leve, de marca é claro, nem podia ser de outra forma.
 
Pronto e agora ali estava ele admirando aquela beleza de garagem, talvez com uma centena de carros, ainda não tinha visto os registos no computador: só à noite é que se fazia a conferência: «carro entrado tem de sair ou ter uma justificação para cá estar depois das oito da noite» - dissera-lhe o encarregado que o tinha posto ao corrente do seu novo trabalho. Era prestável e simpático o senhor Barroso. Tudo bem, tudo numa boa...
 
Quando saiu à noite, já passava das oito, e apesar de ter levado um lanchinho para atamancar até à hora de jantar tinha apetite de novo, o apetite tinha-lhe voltado e sentiu-se grato: afinal o mundo não é assim tão mau como o pintam e como ele o pintou durante dias, semanas e meses a fio. Até nisso o Quaresma lhe tinha dado sorte, havia dias em que quase não conseguia comer e outros em que nada tinha para comer, mas aguentou sempre. Sabia que tinha de aguentar, que a moeda da vida um dia lhe mostraria a outra face.
 
Em casa, numa casa quase vazia de tudo, pensou em meter-se a pensar no que teria de comprar quando recebesse o primeiro ordenado para compor um pouco mais as coisas por ali mas acabou por comer e sentar-se na cama, simplesmente.
 
Viu mentalmente de novo os carros alinhadinhos na garagem, os riscos brancos no solo e num relance calhou a olhar para a Diploma ainda pendurado na parede em frente à cama. 16 valores era o que tinha lá sempre estado. Lembrou-se então dos parabéns dos colegas, fora o melhor do curso. Muita bebida lhe pagaram nesse dia, ainda se lembrava bem.
 
Depois, e sem saber porquê, sem ter razões para isso, num dia tão feliz como aquele em que finalmente arranjara um emprego viu-se com as mãos entre os joelhos, primeiro a soluçar e depois a chorar abundantemente...bem repetia que não havia razões para isso, que estava tudo bem, que agora estava tudo certo, que as coisas tinham entrado nos carris e muito mais disse a si mesmo mas o choro não o abandonou senão quando o sono o venceu.
 
(Série - Urbanos)

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Conto sentido

 
Conto sentido
 
Era uma vez uma família pequena, só pai, mãe e dois filhos um dos quais ainda de peito. Viviam numa pequena quinta que era propriedade do senhor e pagavam pelo arrendamento um terço das suas colheitas. Pai e mãe trabalhavam muito.
 
O filho mais velho, com apenas cinco anos, ajudava no que podia com a sua idade, tratando do irmão quando a mãe tinha de ir trabalhar, indo buscar água ao poço, dando de comer às galinhas e a um porco que tinham num chiqueiro, que é assim como que um cercado que era só dele, porco, e onde ele chafurdava e tinha duas gamelas, uma para a água e outra para os restos dos alimentos que sobravam das parcas refeições em casa.
 
Andava um dia o porco a chafurdar na terra e o seu focinho sentiu uma coisa mais dura do que as pedras que encontrava quando ia mais fundo tentando desbravar as raízes das plantas. Não chamou ninguém para ir ver do que se tratava, porque não falava e nem sequer isso lhe viria à ideia caso falasse, e se tivesse ideia.
 
Mas ficou curioso como só os porcos sabem ficar: quer dizer, a maneira que os porcos têm de se mostrarem curiosos e intrigados é voltarem várias vezes ao mesmo sítio e insistirem - neste caso tentando por a descoberto - e ver e cheirar o que os intriga.
 
Foi, o porco, fazendo uma buraco cada vez mais fundo mas também cada vez mais largo e a tal coisa mais rija que as pedras que encontrava enterradas ia-se mostrando cada vez maior, mais larga e mantinha-se tão rija quanto antes.
 
Não pensava - se pensasse - o porco, em pedir ajuda para por a descoberto aquilo que o intrigava e pensava (se pensasse) em tudo o que era possível: uma caixa cheia de cenouras era o mais provável que ele pensasse se pensasse uma vez que gostava muito de cenouras e isto de falar aqui de cenouras como hipótese é o narrador a imaginar porque neste tempo já os animais tinham sido desprovidos do dom de falar tal como do dom de pensar como foi visto mais acima.
 
Eram tenrinhas, as cenouras, e davam-lhe descanso aos dentes para além de escorregarem facilmente para o seu estômago pois quase se desfaziam na boca.
 
Levou nisto bastantes dias, o porco, talvez três na vida dos homens e não se sabe quantos na vida dos porcos e enquanto resfolgava cansado deitado perto da sua casinhota ia sonhando (se sonhasse) com um rico manjar de cenouras rosadas, com rama, de preferência - fazia questão disso, de terem rama, as cenouras. Para ele cenouras sem rama eram tão raras que praticamente achava que eram frutos (não sabia o que eram tubérculos) defeituosos.
 
Ora aquele porco era um suíno que tinha uma grande consideração pelo miúdo, pela dona e pelo dono mas lastimava a falta de cuidado que eles tinham na comida que lhe davam: já tinha acontecido darem-lhe comida quase podre ou mesmo podre o que o ofendia sobremaneira. Sentia-se ultrajado, mesmo, mas pensava (se pensasse) que se tratava de descuidos pontuais e depressa esquecia.
 
Se falasse, e não falava a língua dos homens e falava certamente a língua dos suínos, pelo que aqui também o narrador pouco pode acrescentar, mas pode sim o narrador imaginar, que ele lavraria protesto quando se deparasse com mais frequência com casos desses da comida estragada. Não só era uma ofensa à dignidade (se os porcos tivessem aquilo a que os homens chamam de dignidade) mas também um perigo para a sua saúde e para a saúde dos seus donos.
 
Por isso era um suíno (porco) tolerante.
 
E era também um suíno compreensivo e solidário para com os humanos, sobretudo para o miúdo que lhe trazia a comida por vezes num balde tão grande e tão pesado quanto ele, miúdo.
Bem lhe queria dizer para ele dividir aquilo (o conteúdo do balde) em várias remessas, que ele não se importava de esperar, mas o miúdo tinha também outras preocupações e não podia perder muito tempo pois normalmente deixava o irmão a dormir e num saltinho ia dar de comer ao porco.
 
O porco era irracional, como todos os porcos aliás, e isto até ver nunca se sabe onde a ciência alcança, mas sabia perfeitamente que estava ali para engordar o mais possível e que passado um tempo acabaria por ir à faca.
 
Esta percepção dos porcos, segundo as informações (científicas), é genética, quer dizer, eles quando nascem trazem já o gene correspondente ao desenrolar deste destino e mais tarde sabem perfeitamente que vão morrer na ponta de uma faca, não desta forma tão elaborada, eles não sabem isso com tanto detalhe, mas vão somando (se se pode chamar isso, somar) dois mais dois e pelas conversas e pelos olhares cobiçosos dos donos vão-se apercebendo que a faca se vai afiando dia a dia.
 
Embora fosse vegetariana a maior parte da sua ementa diária sentia que os seus donos viam no corpo dele uns presuntos, chouriças, febras e banha que era o que eles usavam para fazer os fritos entre outras coisas. Pois bem e para encurtar a história o porco chegou finalmente ao ponto em que a sua descoberta que levara mesmo semanas no tempo dele a fossar se descobriu e mostrou-lhe então um génio sabichão, que sabia falar como os porcos e que lhe disse que lhe concedia três desejos.
 
Um deles era - na ideia do porco se tivesse ideia - o desejo de não morrer mas começou a pensar (se pensasse) que os seus donos passariam privações durante o ano caso não tivessem carne para comer pelo que colocou a ideia em segundo plano.
 
Uma vez que a arca donde saíra o génio estava cheia de moedas de ouro propôs ao génio a possibilidade, sujeita a discussão, de vir a falar como as pessoas de forma a poder assim dizer aos donos que estavam ricos e que não precisavam de o matar chegada a altura pois segundo pensava (se pensasse) aquele monte de moedas de ouro daria para eles comprarem tudo o que precisassem, incluindo um porco já partido em presuntos, chouriças e fatias.
 
Quando chegou aqui, e embora tivesse vivido sempre sozinho naquela pocilga lembrou-se da ninhada onde tinha vivido um curto tempo até ao desmame e desistiu logo da ideia. Se falasse com os donos eles teriam de lhe prometer que não comiam mais carne, que se tornariam vegetarianos. Ora isso era um tiro no escuro...
 
Entretanto o génio foi-lhe dizendo que ele se tinha de decidir depressa porque o seu tempo de estadia por ali era curto, não sabia precisar quanto tempo, mas normalmente era quase chegar e abalar. Pois bem, o porco - e nem todas as histórias acabam bem, e nem todas acabam mal - não conseguia decidir-se a tempo e o génio acabou por se ir embora. Desapareceu tal como tinha aparecido, fez-se em nada.
 
Mas logo voltou, o génio, desta vez munido de um calhamaço para aí com cinco mil páginas, ricamente encadernado e debruado a ouro fino e disse então ao porco: «Quando me fizeram génio supuseram que eu seria despertado por humanos e não tiveram em consideração o reino animal. Ora o animal pensa de forma diferente dos humanos e de forma mais lenta. Este livro, que é o livro das leis dos génios diz aqui (e abriu o livro para aí na metade) que os porcos têm dois dias para expressar os seus desejos. Por isso vou-me sentar aqui e vou esperar que decidas.»
 
Não vale a pena, disse o porco em língua de porco, só quero um saco de cenouras invisível aos humanos, cenouras com rama, e daqueles que a gente vai comendo e as cenouras vão ficando sempre em mesmo número.
 
Quanto aos outros desejos, como segundo quero que o baú donde saíste e que está cheio de moedas de ouro fique enterrado para sempre e como terceiro quero ficar a saber como se chora.
 
Daniel Teixeira
 
Série (Fábulas)

O meu romance

 
 
O meu romance
 
Ainda hoje me pergunto como foi que aquilo aconteceu, como foi possível que eu deixasse passar aquele romance, como foi possível que aquelas palavras não tivessem sido apresentadas por mim. Era o meu romance, asseguro e tenho provas escritas que já mostrei a vários amigos e amigas de que era o meu romance. Que fui eu que o fiz, linha por linha, palavra por palavra, quase.
 
Entre aquilo que eu escrevi e aquele romance que tinha tido nas mãos quase nada havia de diferente; talvez houvessem algumas palavras colocadas num outro contexto, talvez alguns momentos de emoção vividos de outra forma, mas no conjunto tudo dava certo, princípio, meio e fim eram precisamente iguais, as personagens apenas tinham nomes diferentes mas sentia-se que eram as mesmas, que diziam a mesma coisa, que se comportavam da mesma maneira.
 
E eu, por uma questão de dias, talvez menos de um mês, não estou bem certo, deixei escapar aquele romance para as mãos e para a ideia de uma outra pessoa. Pessoa essa que agora ali não estava, na apresentação do livro, numa sala repleta de gente e alguns críticos de orgãos importantes da cultura nacional.
 
Caramba, que azar o meu! Detive-me demasiado tempo a arranjar pontos e vírgulas, a reconstruir algumas frases, a fazer coisas que levam o seu tempo, a aprimorar o dicionário que nunca estava certo para mim mas finalmente acabei por dizer a mim mesmo «vai já assim» mas quando me disse isso a mim mesmo já era tarde, demasiado tarde.
 
O outro já tinha o livro feito, correra a entregar as provas, penso, deve ter corrido, ultrapassara-me e embora não seja muito próprio utilizar estes termos nestas questões culturais digo que ele chegou à meta que era a Editora primeiro que eu.
 
Não quero acreditar que ele tivesse adivinhado que eu estava a fazer um livro que era igual ou quase igual ao dele, isso é impossível, vivemos os dois relativamente perto, é certo, mas a distância que nos separa em termos físicos é enorme.
 
Entre a casa dele e a minha há um riacho lamacento que é práticamente inultrapassável no Inverno e dar a volta ao riacho implica andar a pé quase meio quilómetro, pelo menos. E posso sempre perguntar-me como e porque razão ele viria espiar o que eu escrevia, porque razão ele precisava da minha ideia para fazer um livro, que fosse - como era - quase igual ao meu.
 
Não cabe na minha cabeça, essa ideia, não cabe mesmo, há milhões de histórias para contar, podem-se inventar outros tantos milhões e logo comigo, comigo acontecia isto, haver um indivíduo que tinha escrito o meu romance, aquele romance que eu escrevia havia meses, todos os dias.
 
Todos os dias acrescentava qualquer coisa, por vezes eram só algumas palavras ou alguns pontos, burilava as frases, arredondava os sons repetindo em voz alta as alterações que fazia e tinha uma obra perfeita, a meu ver era perfeita, talvez ainda insuficientemente perfeita mas estava bem, estava mesmo boa.
 
No conjunto nunca precisei de mexer, quer dizer, na história em si, ela partia de alguns factos reais, e aquela realidade era só minha, pensava eu e a ficção que daí partia só podia ser igualmente minha, de mais ninguém.
 
E ali estava eu com o meu manuscrito na mão, sabendo que não o poderia nunca publicar, que me deixara ultrapassar por uma coincidência quase impossível que era haver duas pessoas a pensarem e a escreverem da mesma forma a mesma coisa.
 
Bem, quase da mesma forma, diga-se com algum ênfase. Nas poucas páginas do exemplar exposto, que tinha a foto dele na contracapa e que era motivo de tantos encómios da parte dos apresentadores e críticos que iam desfilando pelo microfone eu vira algumas diferenças, bastantes até, achava que havia coisas que eu teria escrito na mesma mas que faria de uma outra forma, quer dizer, o pensamento nesses casos era igual, a forma é que seria diferente da minha nalguns pontos, poucos, naquelas poucas páginas que eu li.
 
E eu sabia quem ele era, o autor do «meu» livro, descia duas paragens antes de mim no autocarro, um sujeitinho de óculos arredondos que lhe pousavam quase na ponta do nariz, baixote, gordinho, quase fisicamente o meu oposto. Não estava ali, talvez tivesse sabido que eu ia lá estar e temia um confronto, mas como, como saberia ele que eu tinha um livro igual ou quase igual ao dele?
 
Não podia mesmo saber...se ele não estava ali seria por uma outra razão qualquer. Talvez um achaque, uma constipação, uma dor de cabeça ou mesmo timidez. Caramba, eu também não lhe iria dizer nada, mesmo que ele ali estivesse, não lhe ia dizer que tinha um livro escrito igual ao dele, ou quase, mesmo quase, igual. Isso não lhe ia dizer, não.
 
Mas foi muito bem recebido o livro: o pessoal que lá estava, bastante gente mesmo, desfazia-se em encómios ao autor, elogiava a sua capacidade inovadora, a plástica do conteúdo, o lirismo, tudo, tudo era elogiado e eu ali a ouvir sem sentir qualquer ira ou raiva. Afinal era também o meu livro, pensei, mesmo que o não fosse. Tudo aquilo que era dito de bom sobre o livro dele era como se fosse dito sobre o meu impublicado.
 
Afinal eles eram quase iguais ou iguais mesmo, o autor é que era diferente, quer dizer, o nome escrito na capa e a pessoa que o tinha acabado antes de mim. Deixei chegar a sessão até ao fim e nos corredores ainda se falava naquela obra excelente, havia até quem falasse que era um livro marcante e que talvez destapasse uma nova forma de encarar a literatura, enfim, quase uma obra prima, houve quem dissesse.
 
Enquanto ia enrolando e enrugando nas mãos a pastinha que continha o meu manuscrito ia pensando que afinal talvez não fosse assim tão importante ter sido outro a publicar o «meu» livro. O que interessava é que ele estava publicado, fosse de quem fosse o nome no estampado da capa. 
 
Estava feliz e infeliz ao mesmo tempo e ainda nos corredores do salão acho que falei e ri um bocado alto demais. Algumas selectas pessoas estacaram e olharam para mim com um ar surpreso quando cantarolando repeti várias vezes uma lenga lenga que me veio à cabeça.
 
«Pardalito, pardalito...
o primeiro milho é para os pardais,
é para ti é
o primeiro milho,
come-o, come-o, ai iu é,
pardalito, pardalito!»