quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Dentes Alvos

 
Dentes Alvos
 
Eu acho que há sempre um sinal, um pormenor, um detalhe ou mesmo uma conversa que guardamos na memória primeira que temos de uma pessoa, de um acontecimento ou de qualquer coisa.
 
Deve haver, penso eu, no nosso cérebro e na nossa organização das memórias assim como que um elo de ligação escondido que desperta espontaneamente quando se fala de alguém, de um caso, de uma coisa ou quando não se pensa em nada, mesmo. E é quando essa memória, esse indício, aparece por acaso, não sendo nunca um acaso.
 
E esse sinal ou esses sinais aparecem, no nosso entendimento, como se não devessem estar ali. Mas estão ali, connosco, e vêm não se sabe como nem donde.
 
Tenho sempre dito que o nosso sistema mental funciona assim um pouco por cábulas, por indícios, por pequenos detalhes, por pequenas coisas que abrem a porta ou a gaveta onde está guardado o grosso da nossa memória de cada caso, caso a caso.
 
Só que essas cábulas, esses indícios que despoletam o resto daquilo que vamos pensar a seguir são assim como que um segredo da nossa mente, um mistério que só ela, a nossa mente, sabe interpretar. Nós não, não sabemos isso, conscientemente nem damos por nada e tudo se passa por um processo que nos ultrapassa.
 
Acho que é bom referir isto antes que comece a contar esta minha história, e é bom que saibam também que aquilo que acontece com todos nós é isso, uma coisa assim.
 
Por isso me lembro que me lembrei da Aline por causa dos seus dentes brancos, dos seus dentes extraordinariamente alvos e lembro-me que senti logo em seguida a ideia de que ela fumava. Via-a aliás, vi a Aline ali ao pé de mim a fumar.
 
Era a imagem nítida de uma pessoa que não estava ali mas foi quase como se estivesse e digo este «quase» para que não pensem que tenho visões de coisas que não existem. Era mesmo ela, ali sentada, repito, a Aline, com os seus dentes muito brancos e a fumar.
 
E eu estava numa esplanada de um café e mesmo procurando agora uma razão, ténue que seja, para me ter lembrado dos dentes alvos da Aline e do facto de ela fumar não consigo encontrar essa razão nem sei como a vi e porque a vi. Sei apenas que ela não estava de facto ali, para os outros, e estava ali para mim. Por breves segundos, acrescento, foi só por breves segundos.
 
Depois, a Aline, da mesma forma que me apareceu foi-se embora, quer dizer a minha imagem nítida dela desapareceu.
 
Acho que estes pequenos mistérios fazem também parte da nossa vida, que estes pequenos mistérios ficam connosco até que encontremos uma razão que satisfaça a nossa dúvida.
 
Mas essa razão não é nunca a razão que esteve verdadeiramente na origem daquilo que nos levou a pensar ou a ver dada coisa, penso eu.
 
O nosso cérebro é muito inteligente, mesmo quando nós não somos inteligentes e não desvenda o seu segredo, não nos diz como chegámos àquela memória. E é assim a forma de proceder do nosso cérebro: diz-nos o que nos faz falta para que fiquemos satisfeitos e tranquilizemos os nossos pensamentos mas no fundo não nos dá uma resposta verdadeira.
 
Dá-nos uma resposta que nos convenha, que achemos pelo menos possível, uma resposta que nos tranquilize e nos faça deixar de pensar naquilo que nunca vamos conseguir encontrar. E ele sabe isso, sabe que nós, por nós mesmos, racionalmente, racionalizando, não vamos chegar lá porque o que procuramos não é do reino da razão.
 
E o meu cérebro disse-me depois que eu pensei na Aline que isso era porque eu estava com saudades dela, o que é uma resposta aceitável, mas não me disse porque pensei eu na Aline e porque a vi nitidamente num dia igual aos outros e depois de já ter passado quase um mês sem ter pensado uma só vez nela.
 
Eu tinha mudado de mundo, estava em Portugal e ela estava em França e eu não tinha tido nunca sequer a ideia de voltar para lá ou dela vir encontrar-se comigo cá.
 
Foi tudo bem, a nossa despedida, ficámos amigos na mesma mas cada um tinha um caminho a percorrer e o meu era aqui, em Portugal e o caminho da Aline era em França.
 
E a Aline com os seus dentes alvos era maravilhosa, digo-vos. Os meus dentes estão ligeiramente escurecidos pelo tabaco, pela bebida. Estão sempre limpos mas têm aquele tom tenuemente amarelado. Os dela não, eram impecavelmente alvos. Nunca vi dentes assim, confesso, e mesmo que isto não fosse importante para esta história eu teria sempre presente na minha ideia a brancura dos dentes dela desde que me lembrasse dela como aconteceu naquele dia em que a vi ali na esplanada.
 
Eu nunca estive propriamente obcecado com a ideia dela ter uns dentes tão alvos mas reparava sempre nos dentes dos nossos amigos, homens e mulheres, jovens em larga maioria e nunca vi dentes tão alvos como os da Aline.
 
Perguntei à Marie Agnés se ela não achava que os dentes da Aline eram extraordinariamente alvos, sabia que ela não ficaria triste por eu lhe perguntar isso e sabia que ela nunca pensaria que lhe perguntava isso dizendo ao mesmo tempo que os dentes da Maria Agnés não eram tão brancos como os da Aline.
 
Eu sabia isso porque ela sempre foi muito boa moça a Marie Agnés. A sua face, extraordinariamente bonita, de traços perfeitos, abriu-se então num sorriso e ela respondeu-me que sim, que de facto os dentes da Aline eram mesmo muito brancos, que talvez fosse genético, disse ela. E disse-me então também que os dentes dela não eram tão alvos como os da Aline.
 
A Marie Agnés para além de ter uma face linda, simplesmente linda, tem um corpo perfeito, quase sempre escondido pelas saias compridas de seda.
 
Morava fora da cidade, e por vezes, e para não ter de ir a casa, tomava banho na nossa casa e despia-se e vestia-se mesmo ali na sala. Depois colocava-se numa posição de ballet, de braço levantado como se segurasse o facho da liberdade e eu via-lhe o corpo todo.
 
E era mesmo perfeito o corpo dela e ficava bem aquele momento e a Marie Agnés fazia-nos rir muito com aquela coisa de partir para o banho andando na ponta dos dedos dos pés.
 
Talvez fosse um pouco infantil, pensava eu , mas bastante culta. A Aline também era culta mas eu achava-a um pouco fechada dentro do cofre que era a sua personalidade. Uma personalidade forte, diga-se, bem forte. Tinha uma forma de ser que preservava mostrando só o essencial a cada momento e não expondo mais do
que aquilo que era necessário.
 
Vivemos juntos até que eu cheguei à conclusão que era melhor voltar para a minha terra. Foram três anos, talvez um pouco mais, não estou bem certo.
 
Quando quis partir perguntei-lhe se ela queria vir comigo, achei que talvez ela quisesse mas não quis.
 
Tinha a sua vida lá, a sua família, os seus estudos e juntou mais alguns argumentos que agora não me lembro. Ficou tudo bem entre nós, muito bem mesmo.
 
A Marie Agnés, essa quis vir: sem compromisso, acrescentou, sem compromisso entre nós. Nunca tinha havido nada entre nós e nem era para haver. Eu vivia com a Aline e éramos três bons amigos, só isso, ou tudo isso.
 
Mas aqui passou a haver algo entre nós e não vou dizer agora aquilo que se sabe desde logo ao ler estas linhas.
 
O que mais lamento é que não consigo ser tão feliz com a Marie Agnés como fui com a Aline, isso lamento mesmo e acho que ela sabe isso.
 
Acho uma pena. A Marie Agnés é muito boa moça, uma companheira excelente. Por vezes desejo desejar a Marie Agnés tal como desejava a Aline mas não consigo.
 
E quando tento com mais força gostar tanto dela como gostava da Aline aquilo que me vem à mente é o seu passo na ponta dos dedos caminhando para o banho e eu e a Aline sentados no sofá a rirmos muito.
 
Daniel Teixeira

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