terça-feira, 30 de abril de 2013

Pacatez

 
 
Pacatez
 
O suspense, ah, o suspense, aquela certeza incerta ou aquela incerteza certa de que algo vai ter lugar, que alguma coisa vai acontecer, seja como for e da forma que for é seguramente um atributo da mente humana que não tem nem pode ter explicação racional. Mas esteve ali comigo, naquele dia, naquela hora, naquele local.
 
Segundos antes eu era apenas uma pessoa sentada num banco de jardim, uma pessoa qualquer, alguém que procurava fazer passar o tempo, ou deixá-lo passar por mim, tanto me fazia.
 
Segundos antes : ouvia os pássaros a chilrear, o ruído das ramagens das árvores bandeando ao vento, as buzinas de carros e comboios lá ao longe, o chapinhar da água de encontro aos muros da doca, os gritos agudos das gaivotas e tudo, mas mesmo tudo,  parecia normal.
 
Depois veio aquela sensação estranha, aquele incómodo, aquele aperto no estômago, aquele acelerar da pulsação, aquela sensação incerta e mista de medo e de expectativa, e mais nada ficou normal dentro do meu pensamento: ia acontecer alguma coisa, eu sabia, sabia isso. Mas não sabia o que seria.
 
Contudo não demorou muito até tudo acontecer, poderia dizer felizmente porque para mim foi libertador, ou seja, libertei-me de uma sensação de indefinição para passar a viver uma situação que podia definir mas ainda hoje estou sem saber se na altura senti que uma situação foi melhor que a outra.
 
Ouvi o grito, um grito longo, um grito de socorro, estridente, talvez a cinquenta metros de mim, para trás de mim e virei-me quase instintivamente. Não vi nada. As ramagens que bordejavam a álea não me deixavam ver, ramagens espessas, recortadas. E era dali que tinha vindo o grito, aquele grito longo. Tentei levantar-me e correr, senti vontade de intervir, tentei, estou absolutamente certo de que tentei, mas as pernas não me deixaram.
 
Ouvi o grito de socorro de novo, e de novo, e de novo, estridentes, prolongados e depois apercebi-me que enquanto os gritos, aqueles gritos, iam durando o seu volume baixava e se ouvia como que um debater quase silencioso nos silvados e que finalmente quase tudo desaparecia como que num soluço para voltar a aparecer de novo, para voltar a ouvir-se de novo e para voltar a silenciar-se aos poucos.
 
Confesso, hoje posso confessar, agora que já passou algum tempo que foram as minhas pernas que não me deixaram sair do banco onde estava sentado e correr em direcção ao grito porque era isso que eu queria mas foi isso que eu não consegui.
 
Desde esse dia, quando me sento naquele banco de jardim lembro-me daqueles gritos de socorro sobre a origem ou a causa dos quais nunca ninguém disse nada. Eu vivo numa cidade pacata, as pessoas são pacatas, se alguma coisa aconteceu ali ninguém iria falar nisso.
 
Mas nunca mais senti aquela sensação de intranquilidade, aquela sensação estranha, aquele incómodo, aquele aperto no estômago, aquela sensação incerta e mista de medo e de expectativa e isso é bom, para mim é bom.
 
O que quer que fossem aqueles gritos, viessem donde viessem e fossem pelas razões que fossem, em cada um dos dias que lá me sento, logo que são passados os primeiros minutos sei que nada vai acontecer. Sinto isso.
 
Série Contos Impopulares
 
 
 

terça-feira, 23 de abril de 2013

Jornal Raizonline nº 184 de 20 de Agosto de 2012 - COLUNA UM - Daniel Teixeira - As minhas memórias mais próximas (V) - Os bolos da Dª Maria Teresa

 
 
Jornal Raizonline nº 184 de 20 de Agosto de 2012 - COLUNA UM - Daniel Teixeira - As minhas memórias mais próximas (V) - Os bolos da Dª Maria Teresa

Por vezes fico com um ar de surpresa em relação a mim mesmo no que se refere a recordações e ao processo de selecção que a minha mente vai buscar como elemento que ela considera relevante e despoletador da recordação de um dado facto ou conjunto de factos.
 
Acho, usando um pouco do meu raciocínio (nada disto pretende ser  válido em termos científicos e nunca li isto em lado nenhum que me lembre) que a mente usa cábulas, daquelas que se usavam na escola (quem era cábula é claro) que dão início ao desenrolar consequente da mensagem arquivada na nossa mente.

Pois, (nunca cabulei, asseguro) há dias, estava eu em conversa com pessoas do meu bairro e veio à tona da conversa a Dª Maria Teresa. Fiquei surpreso, como já dei a entender acima, pelo que acho preocupante a rapidez da minha resposta no seu conteúdo: «Verdade, era uma excelente senhora...e sabia fazer bolos muito bem.»: acho que deveria ter  referido antes aquilo que mais choca nesta história, é que morreu praticamente no anonimato.
 
A D. Maria Teresa quase que terá nascido para a doçaria caseira e como tinha pouco ou quase nada que fazer dedicou-se a fundo sendo uma verdadeira e nossa muito solidária expert desde que começámos a conhecê-la: fomos vizinhos, casas lado a lado, e praticamente tinha uma fabricação continuada para consumo próprio e das amigas e vizinhas, o que muito nos alegrava, sobretudo a nós crianças e jovens.

Solteirona, coisa que não se dizia, em princípio deveria ser «Menina Maria Teresa» como é uso, mas foi nominalmente sempre «dona». A história tem aspectos bons e aspectos menos bons: ficou a cuidar da mãe, que enviuvou cedo e a Dona Maria Teresa também não deve ter feito grandes esforços para constituir família mesmo anos depois após o falecimento da mãe. Talvez considerasse que já que era tarde, talvez estivesse solidificada na vida a sós, enfim...também ninguém é obrigado a casar e a constituir família.

Beata, tal como se dizia também, passava uma parte substancial do seu tempo na Igreja e em conversas com amigas igualmente «beatas»: um irmão dela, comerciante, apoiou-a sempre financeiramente e embora nunca me tenha preocupado em saber isso, o seu comércio teria sido familiar com o falecido pai, sendo o contributo dele também uma parte daquilo que supostamente seria também propriedade dela.
 
O irmão faleceu muitos anos depois, teria ela já cerca de 60 anos e a D. Maria Teresa ficou resumida em termos financeiros a uma reforma curta: os bolos começaram a rarear nessa altura.
 
O processo de queda financeira não acabou só com os bolos, praticamente acabou com tudo, acabou com ela também muito mais que o percurso normal da idade. Afundou-se, mais em termos anímicos do que em termos físicos...

Havia um sistema de comunicação entre as nossas casas: subir até à altura do muro de divisão nos quintais geminados e um outro composto de pancadas na parede, na zona da cozinha e no corredor, em que se procurava saber se ela estava bem ou não: se respondesse aos chamamentos ou ao sistema de toques nas paredes estava tudo certo, quando isso não acontecia tínhamos uma chave da casa dela: primeiro ia a minha mãe, nestes casos; a D. Maria Teresa era extremamente pudica e mesmo quando a encontrava caída sem se conseguir levantar e não tinha forças para o fazer, primeiro compunha-lhe a roupa e só depois vinha buscar ajuda.
 
Durou talvez cinco anos esta situação: depois acamou e foi para um lar. Fomos informados do seu falecimento por acaso, no dia em que lha íamos fazer a visita semanal, já tinham passado vários dias...
  
 Daniel Teixeira
 
 

Crónicas e ficções soltas - Alcoutim - Recordações XXXIV - Por Daniel Teixeira - A nossa piscina

 
 
Crónicas e ficções soltas - Alcoutim - Recordações XXXIV - Por Daniel Teixeira - A nossa piscina

Falar em piscina em Alcaria Alta, pelo menos na altura em que andei por lá jovem ou criança, seria introduzir um neologismo no vocabulário local e depois do que vou escrever em seguida seguramente ainda hoje será considerado exagerado o termo.

Numa primeira vista, esclareça-se, porque piscina advém de peixes e muito pouco tem a ver com o actual sentido que lhe é dado maioritariamente. Por isso eu dizer que tínhamos uma piscina (várias, até) em Alcaria Alta não é totalmente um absurdo: não davam, na sua grande parte, para nadar (salvo alguns pegos mais resistentes à seca do verão já na Ribeira da Foupana ou mesmo no Ribeirão) mas até os poucos que sabiam nadar, nós, os da cidade, não tínhamos assim uma tão grande apetência para a braçada.

Habituados à água salgada, mais «pesada» como dizíamos, era uma trabalheira enorme para nos mantermos à tona da água doce (levezinha) pelo que utilizando a sempre presente em qualquer idade lei do menor esforço ficávamos pelo «molho» a meia altura com mergulhos só da cabeça para alisar o penteado. Aliás ainda bem que não nos lembrámos de andar a saltar das rochas porque os fundos eram bastante irregulares e surpreendentes.

Mas a nossa piscina, a piscina do dia a dia era um poço numa horta: dava-nos a água aí pelos ombros, sensivelmente, era extraordinariamente límpida antes da primeira entrada e descíamos e subíamos com a força dos braços. Juntávamo-nos três e quatro num espaço que acabava por se tornar exíguo e tínhamos direito a banho de lama de borla ao fim de dois minutos de termos entrado.

Estava este poço situado numa horta que ficava a seguir ao poço de baixo numa zona ainda sem denominação específica que me lembre mas que ficava próximo das Almargens : era só descer mais vinte metros e estávamos lá, na zona das  Almargens que ficava perto do Almarginho, este seguramente com este nome diminuido por relação de proximidade e de semelhança e continuidade.
 
Numa direcção oposta e distante, já no caminho que fazíamos a butes para Martinlongo fora da estrada porque era mais muito mais curto o percurso, e virado para o outro lado do Monte e a uma distância dali onde estávamos de pelo menos um quilómetro ficava o Almarjão, onde cultivávamos uma horta.
 
Nunca percebi muito bem a lógica destas denominações mas que não era sempre por relação de proximidade me parece ser certo: talvez fosse pela forma, pela localização em dado tipo de terreno, pelo contorno que os cursos de água davam às hortas, pelo desenho que a erosão das elevações ia plantando no sopé dos montes: deveria saber mais sobre isto e estudar um pouco estas coisas, é um facto.

Havia um sítio que era merecidamente chamado da «Areia fina», logo à saída do Monte, porque, por estranho que nos parecesse a areia era mesmo fina, quase tipo praia: já teria havido ali um curso de água com dimensão grande mas já não havia na altura e há centenas de anos provavelmente: nunca ninguém, me falou em ter visto água ali a não ser a das enxurradas do Inverno que desciam do bairro do Além.
 
O processo do nosso banho perto das Almargens era demorado mesmo: bastava meia hora de banho para termos quinze minutos de segunda lavagem a balde num outro poço e enxaguamento ao sol. Desincrustar a areia, a lama e toda a sujeira natural que os bordos do poço iam debitando e que se colavam sobretudo na parte mais visível,  que era o cabelo,  era a segunda fase obrigatória no processo.

Mas era bom, fazia calor de rachar e tudo o que abrandasse a sensação de estarmos a torrar era bem aceite. Os montanheiros adultos não tomavam de facto muitos banhos porque não tinham as possibilidades que nós crianças tínhamos. Aproveitávamos  a hora de caçar (quase nada sempre) neste poço de baixo , hora esta que era mais farta de possibilidades na força do calor aproveitando a altura em que os pássaros iam beber nas pequenas poças de água que se formavam à volta do poço.
 
De esclarecer que era o poço das bestas e que resto de balde não bebido por um animal tinha de se deitar fora...e deitava-se logo ali, para voltar a ser filtrado pelo terreno e regressar donde tinha vindo, pelo menos assim se pensava. A sapiência dos povos é grande :  uma besta, seja ela asinina, muar ou cavalar, não bebe água já tocada pelos lábios (beiços) de um outro pelo que não dá para dar o resto a outro e voltar a jogá-la para dentro do poço também não dava, porque mesmo sendo um poço na altura exclusivamente para animais, nunca se sabe o dia de amanhã.
 
Quando me lembro destas coisas, e regressando agora às nossas piscinas, sei perfeitamente que era uma grande porcaria e que o poço só mantinha a água limpa se lá não entrássemos: logo uma coisa implicava outra; tomar banho (para nos limparmos por definição) implicava que nos sujássemos mas nada impedia aquela agradável sensação de frescura em plena força do verão.

Estas pequenas coisas, desaparecidas agora, são coisas e tempos que não voltam mesmo mais. Qualquer criança agora não fará nada disto, nem sequer se aconselha que o faça e nem terá condições para fazer o mesmo. Isso é que torna também as coisas de hoje por vezes tão urgentes e tão prementes e tão necessárias para serem usadas ou feitas mesmo: muitas das coisas que fazemos ou não fazemos hoje podemos nunca mais vir a fazê-las o que faz com que cada um de nós tenha condições e momentos que são mesmo únicos no sentido mais absoluto do termo. Não sabemos exactamente quais, é um facto e nunca saberemos o último segundo de cada coisa.

E descontando esta parte desagradável da areia e do barro no corpo e no cabelo quantos de nós sentimos alguma vez ao tomar hoje um seguramente mais higiénico duche que provavelmente estaremos numa época de viragem e que talvez não amanhã mas um dia destes aparecerá outra coisa qualquer que faça com que esse nosso actual prazer de sentir correr a água pelo corpo seja daqui a muitos anos objecto de saudosa recordação tal como eu fiz agora?

Daí a aceitação neste plano, mas só neste plano e nos aspectos com ele relacionados dentro dos mesmos princípios lógicos, da frase de Virgílio na Eneida, carpe diem quam minimum credula postero, «aproveita o dia, confiando o mínimo possível no futuro». O mínimo possível do futuro não é todo o futuro, como é claro, é só o mínimo...
 
 

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Verdade ou mentira? - COLUNA UM - Daniel Teixeira

 
 
COLUNA UM - Daniel Teixeira -  Verdade ou mentira?
 
 Falar verdade segundo o nosso amigo Aristóteles é, sumariamente «dizer daquilo que é, que é e daquilo que não é que não é». Assim segundo este velho mas sempre actual filósofo, não se trata apenas de afirmar pela positiva mas também de afirmar pela negativa, ou seja, dizer também do que não é que não é.
 
Quando se fala a verdade, normalmente e no entendimento comum, é falar / dizer «apenas» a primeira parte do exigido, esquecendo-se muitas vezes, o «dever» de afirmar pela negativa.
 
Dizer o «Rei vai nu» não chega, portanto, também seria necessário dizer, caso fosse outro o caso, que o Rei não vai bem vestido, por exemplo, caso o dito rei trajasse um hábito que não fosse próprio da sua condição, por exemplo, isto entendendo, que a sua posição requeria um trajar diferente daquele que ele levasse.
 
Talvez 90% das verdades que se dizem, neste mundo, numas contas muito sumárias, sejam verdades ditas no primeiro sentido: a verdade afirmativa. Utilizam-se os outros 10% também normalmente para fazer critica política, esgotando-os quase sempre. Não fica margem para mais...
 
No entanto esta segunda forma de dizer a verdade, negando uma outra «verdade» ou dizendo simplesmente daquilo que não é que não é, seria, na minha opinião a forma mais interessante de dizer a verdade. Uma parte dos 90% de verdades ditas, uma parte grande, são cobertas pelas afirmação da evidência. Assim é como dizer verdades de nada...é como «encher pneus».
 
A nossa sociedade em qualquer parte do mundo precisa de mais verdades que contestem e de menos verdades que digam o evidente, aquilo que toda a gente sabe, aquilo que toda a gente vê. «O Rei vai nu», dito por uma criança, teve apenas o condão de dizer aquilo que todos viam.
 
A  piada da afirmação / constatação do miúdo é que a verdade «submetida» ao politicamente correcto ou à crença se libertou. Mais nada...
 
No caso da cultura e da arte também precisamos mais de afirmações pela negativa...dizer por exemplo que muita «poesia» que anda por aí por essa Net não é poesia, que muitos escritos são meros exercícios de lustração egocêntrica.
 
Enquanto a percentagem de verdades ditas pela forma da contestação não subir percentualmente de forma sensível não saímos mesmo da cepa torta.
 
Sejamos tolerantes com todos sim mas sejamos amigos  de todos também não enganando o próximo com a nossa «verdade» politicamente correcta...
 
  Daniel Teixeira
 
 

terça-feira, 9 de abril de 2013

Coluna Um - Há problemas na divulgação da ideia de comunidade de língua portuguesa?

 
 
Coluna Um
 
 
Há problemas na divulgação da ideia de comunidade de língua portuguesa?
 
Daniel Teixeira
 
A Comunidade dos países de língua portuguesa (CPLP) parte de uma ideia difusa que nem sempre e nem por todos é possível acompanhar: uns porque não chegam lá, à ideia, outros porque não podem (dada a sua formação) e outros porque não querem, chegar a essa ideia.
 
Contudo ela é simples, em si, como ideia mas vale a pena darmos aqui aquela ideia que nós temos dessa mesma ideia, pelo que comecemos pela história. Pessoalmente nunca fui um adepto muito convicto da ideologia que foi defendida em várias matizes de que existia, da parte dos portugueses, um dom especial que os levava a conseguir um relacionamento privilegiado com outras raças e culturas.
 
Povo com uma tradição cultural estreita, com sangue elitista (azul, terra tenente, e residualmente burguesmente industrial) eram de rejeitar desde logo as ideias peregrinas de que essa potencialidade de relacionamento privilegiado se encontrava em cada pessoa, em cada um de nós.
 
A conhecida Junta do Ultramar tem nos seus arquivos excelentes trabalhos teóricos (e práticos) de alguns cientistas sociais que, procurando justificações para o lançamento dessa ideia do «dom» relacional, procuravam, num arroubo que se queria de realista, encontrar a origem desse «dom» não no factor cultural, mas sim no factor acultural: ou seja, para esses teóricos (Jorge Dias à cabeça) a nossa vantagem no relacionamento com os outros povos advinha antes da nossa ignorância e do estado imberbe dos nossos sistemas de exploração económica, que, no seu conjunto, se constituíam como factores de convergência relacional perante os povos colonizados e logo igualmente - ou num outro grau próximo - pouco desenvolvidos.
 
A ideia teve o seu cheque mais notável em acontecimentos que muitos preferem esquecer, ao lançar-se uma colonização, nomeadamente em Angola, baseada nestes princípios: como os portugueses eram ignorantes e pouco formados em termos tecnológicos nada melhor que colocá-los na mesma situação dos povos indígenas onde alegadamente eles funcionariam como um elemento catalisador dado o diferencial, mesmo mínimo, entre estes e os locais.
 
O processo, que é sempre pouco referido, teve pelo menos o mérito - e que me perdoem os descendentes desta muito sofrida operação - de mostrar que afinal não eram os povos indígenas que exploravam inconvenientemente as suas parcelas agrícolas - que eram a base da sua economia - mas sim que o problema ia para além disso o que no fundo se pode traduzir no chavão mais conhecido da economia: falta de estruturas.
 
A chamada «inteligência» portuguesa estava mais interessada no acantonamento junto das Cortes do que em produzir ou fomentar a produção. A atracção pelo Estado protector (e pouco exigente em termos de retorno), alimentado bastamente antes pelas caravelas vivia ainda esse período em termos ideológicos e foi vivendo assim (e de certa forma vai ainda vivendo assim).

Resultado disso, mesmo nos tempos mais recentes, já nos finais do Sec. XX, a exploração de mão de obra foi sempre intensiva, o investimento em tecnologias quase nulo e compreende-se não se compreendendo a falta de visão estratégica do pelo menos imberbe empresariado: uma máquina custava mais que manter os trabalhadores que ela iria substituir, daí a manutenção de uma política de exploração da mão de obra barata.
 
Nestes termos, o colonialismo português não foi nem melhor nem pior que os outros, na sua prática diária, mas teve a seu favor - se quisermos considerar assim - o facto de, em termos numéricos de população colonizadora, nunca ter tido bases para se alicerçar numa autonomia solidária entre «iguais» bastando-se a si mesma.

A negociação com os autóctones (mão de obra ainda mais barata) impôs-se desde sempre e as potencialidades em termos militares nunca conseguiram implantar um colonialismo «puro e duro». Outras fossem as circunstâncias e outro galo não cantaria agora na CPLP.

Mas, e regressando ao presente, estas condições sociais acabaram por fomentar todo um conjunto de factores interligados entre os quais vamos agora referir a miscenização (termo ingrato, mas cientificamente correcto). Ora a miscenização por muito desagradável que possa parecer a afirmação, processa-se entre o povo e constrói laços de afinidade suficientemente distanciados das elites que lhe permitem um regime de vivência autónomo.

Assim, é nas bases da sociedade, quer dizer, nas classes menos favorecidas que se desenvolve o sentimento de igualdade (ou de desigualdade menor) apesar das exclamações à boleia das classes mais favorecidas.

A recente guerra do Alecrim e da Manjerona ortográfica é disso um exemplo claro (ao lado de outras com a mesma base): a chamada «intelectualidade» elitista comunga dos mesmos princípios que temos vindo a referir; não lhe restando, como factor de diferenciação interventiva senão a defesa da tradição que os alimentou e alimenta à sombra de uma ainda farta bananeira estatal e mecenária (não confundir com mercenária) estão contra a abolição do «p» e do «v» e contra o acrescento do «a» e do «b».

Mas quem se preocupa com estas vozes ainda não sabe (infelizmente) que elas não chegam ao céu da realidade do dia a dia.
 
 
 

sexta-feira, 5 de abril de 2013

COLUNA UM - A violência nas escolas e os massacres

 
 
COLUNA UM -  A violência nas escolas e os massacres
 
 
Todos, ou quase todos, andámos na Escola e todos sabemos melhor ou pior aquilo que o tradicionalmente chamado de sadismo infantil pode produzir. O assunto anda muito mal estudado, e mesmo a nível da psicologia publicada a situação, sendo de alguma forma clara, acaba por ficar escondida dada a delicadeza do tema. Ninguém está interessado em mostrar a jovens em formação psíco - social aquilo que eles mesmos fazem (quando fazem) ou aquilo que eles mesmo não fazendo têm ou podem ter vontade de fazer .
 
A minha escola, contudo, foi antes da escola e depois da escola, como com toda a gente. A maior parte das pessoas não liga uma coisa à outra e até por comodismo psicológico prefere estabelecer a existência de dois ou diversos compartimentos estanques: antes da escola e depois da escola, vida familiar e vida escolar, vida na escola e vida fora da escola, etc.
 
A institucionalização que a Escola apresenta e fomenta sempre foi um problema muito mal digerido na sua compreensão: sejam elas instituições totais, quer dizer instituições onde as pessoas passam a esmagadora parte da sua vida ou uma parte substancial dela com contacto ou não com a sociedade á sua volta, seja ela a micro - sociedade local, seja ela a sociedade em geral, sejam elas ainda instituições às quais se adere voluntariamente ainda que com algum grau de obrigação, caso das escolas de escolaridade dita obrigatória, do serviço militar obrigatório, etc.
 
A utilização de uma lógica de grupo não espontaneamente constituída, a variedade dos graus de formação social e capacidades económicas e intelectuais diferenciadas, é tudo agrupado num conjunto de regras gerais, tipo lógica de código penal, em que sumariamente se diz, ainda que de forma indirecta, as sacramentais iniciais frases do penalismo:«Aquele que...fizer isto ou aquilo...incorre nisto ou naquilo».
 
Para uma criança, ou para um jovem, é, por vezes difícil entender muita coisa, nomeadamente quando se trata de regras com algum grau de preventivismo: por exemplo não se pode ir à casa de banho das meninas, mesmo que ela esteja vazia e se deixe um colega à porta prevenindo, estando a casa de banho dos meninos com enorme fila e apertando a fisiologia em extremo incontível.
 
Claro que a ideia é não romper o princípio, manter a privacidade de um sexo e outro, mas para quem tem de fazer o que quer que seja nas calças e sujeitar-se á chacota posteriormente a norma é nitidamente absurda, naquelas condições. São inúmeros os exemplos daquilo que se pode compreender metendo-nos agora dentro da nossa mente que também já foi infantil e juvenil. Ficamos com a ideia, para esta crónica, de que há coisas que se entendem numa leitura mas não se entendem (compreendem) numa outra leitura.
 
Os fenómenos actuais que se relacionam com a violência juvenil, seja ela nas escolas ou fora delas, nascem onde calha, ou seja, nascem consoante a ocasião, e muito pouco têm a ver com a escola em si senão pelo facto de aí poder haver uma maior regulamentação evidente e por aí se passar, de forma concentrada, socialmente, um largo tempo de vida, acrescido na sua potencialidade de captação pelas limitações do espaço, pela uniformidade relativa do ambiente, pelo número de potencialidades do acontecer.
 
Se alguma vez fossem feitas as contas, e hoje fazem-se estatísticas para quase tudo, seria interessante saber-se a quantidade de eventos diferenciados e uniformizados acontecidos em ambiente escolar em comparação com aqueles que têm lugar fora do ambiente escolar. Só como exemplo, e porque me veio à ideia, num estudo americano (são sempre os americanos) num outro campo, chegou-se à conclusão que os enfermeiros (os questionados, cerca de 900) são distraídos da actividade que executam entre 4 e 6 vezes em média e que o leque de distracções dessa sua actividade abrange 11 itens.
 
Ora, continhas destas nunca foram feitas nem nas escolas nem nos miúdos (sejam eles mesmo miúdos ou menos miúdos) e o curioso deste estudo que falei sobre os enfermeiros é que ele foi feito a partir da altura em que os enfermeiros começaram a estar sujeitos também ao conceito do erro médico (de enfermagem, neste caso). Ou seja, foi feito porque começaram a entrar em jogo indemnizações, entidades publicas e privadas, seguradoras, etc.
 
Quanto à violência nas escolas, nada estando feito e ninguém se interessando por isso, assistimos com alguma frequência a verdadeiros massacres incompreendidos, a chantagens (bullyng) entre alunos, a pressões das mais diversas ordens, a violência física, a violações, etc.
 
Ora o mundo parece que acorda para a novidade cada vez que uma destas coisas é conhecida ou mais tragicamente acontece, quando deveria procurar conhecer o que está por detrás dos fenómenos. Uma Universidade, todas as Universidades, reforçam as medidas de segurança depois que um trágico caso acontece, mas em termos de inteligência, quer dizer, de informação, o que fazem. Nada, que eu saiba...
 
São capazes até de ser injustos em procedimentos, penso que é o próximo passo dentro desta lógica que tem mais de repressiva do que de preventiva, ao ponto de construírem bases de dados de alunos - problema, fazerem circular entre si essa informação, quando nada garante que cesteiro que faz um cesto faça um cento, apesar do ditado popular, anexando assim ao sistema de informação geral (social) aquilo que se manifesta em ambiente escolar em circunstâncias bem específicas e por razões igualmente específicas quantas vezes.
 
Tenho lido sobre violência nas escolas desde há muitos anos, pelo menos dez, e tenho visto que as soluções apontadas para resolução de problemas não são razões estudadas: na maior parte dos casos fazem-se experiências, como é o caso do aluno moderador que não será difícil confundir com o aluno «bufo» em terminologia escolar.
 
Ir à fonte dos problemas, poucas pessoas querem, até mesmo os pais e suas associações muitas vezes primam pela envolvência emocional desviando desde logo a possibilidade de uma análise cuidada dos factos.
 
Não digo que a violência nas escolas (até mesmo contra professores) ou que os massacres escolares que vimos a saber periodicamente estejam inteiramente dependentes e sejam resolúveis na sua incidência através desses estudos que qualquer ser racional hoje sente a falta.
 
Mas era bom ter uma ideia, quanto mais não fosse uma ideia, daquilo que se passa realmente nestas mentes sem ser a tradicional resposta desculpa do ambiente familiar (quando é mesmo desculpa pilatiana), da sociedade (esse saco enorme), da Net, da televisão, dos jogos de computador ou de qualquer outra coisa.
 
Tal como estamos, nada feito!!
 
Daniel Teixeira 
 
Publicado pela primeira vez no Jornal Raizonline nº13 de Março de 2009
 

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Crónicas e ficções soltas - Alcoutim - Recordações IX - Por Daniel Teixeira - Inércia congénita

 
 
Crónicas e ficções soltas - Alcoutim - Recordações IX - Por Daniel Teixeira - Inércia congénita
 

Conforme tenho referido, penso que desde sempre, o Monte de Alcaria Alta e o pessoal que lá vivia (e vive ainda algum), de uma forma bem geral era possuidor de uma inércia confrangedora.

Em certo sentido acho que as pessoas trabalhavam porque era hábito trabalhar, em primeiro lugar, sabiam lamentar-se ou alegrar-se pela pobreza ou pela riqueza das colheitas mas tudo ficava no desgosto ou na alegria quase entre portas e tudo demorava muito pouco tempo. Sempre pensei isso em miúdo, fui pensando e as razões para pensar isso foram-se mantendo durante muitos anos.

Mais tarde, através da minha própria evolução pessoal, da experiência de vida que fui adquirindo, dos conhecimentos de ordem intelectual que fui coleccionando, acabei por verificar que talvez estivéssemos perante um caso de esgotamento, de uma convicção de que tudo tinha sido tentado já e que a minha ignorância do passado e das tentativas feitas antes de eu as saber, porque não tinha ainda nascido ou porque não tinha ainda idade para saber, era uma hipótese plausível.

Calhou a ler, por acaso no Arquivo Distrital aqui de Faro, um livro e depois mais do Professor Gomes Guerreiro, primeiro Reitor da Universidade do Algarve, e conhecedor de mérito da realidade algarvia. Em 1945 já ele fazia medições pluviométrias e poucos anos depois debruçava-se sobre a erosão na serra de Tavira. O Rio Gilão é uma desgraça em termos de assoreamento, como todos sabem: pois ele em 1954 propunha já uma solução minimizadora do impacto das chuvas: que os regos da lavoura se fizessem na forma de barreira contra o arrastamento. Já não penso agora que a inércia seja exclusiva de Alcaria Alta e do Nordeste Algarvio pelo que em face do sabido em Tavira duvido também que muita gente tenha seguido o conselho.
 
Na verdade era para mim então impossível conceber que se trabalhasse sempre da mesma forma, ou com pequeníssimas alterações, que não se lutasse para modificar alguma coisa, enfim...que o correr dos dias fosse assim...trabalhar de sol a sol em troca sempre do mesmo deflacionado ganho.

Um dia ou dois, talvez com os meus dez anos, procurei ajudar a seu pedido o meu avô a aprofundar um poço rasteiro: tirámos pedras, algumas lajes bem pesadas, todas à mão é claro e sem ajuda de ferramentas. Nem um martelo daqueles grandes e um escopro, que bem poderiam servir para reduzir o tamanho das lajes o meu avô levou...era assim mesmo e ali ficámos, de manhã à noite, até sem uma pá, usando os baldes de zinco para arrastar pedras e água e fazer monte à entrada do poço, deixar escorrer o minguado liquido de regresso e depois afastar um pouco, não muito, as mesmas pedras.

As mais pequenas, e situando-se o poço no final de uma encosta e encostado a um barranco, logo que chovesse mais acabariam por regressar ao sítio donde as tínhamos tirado, isso parecia-me evidente, mas...
 
E não era por falta de conhecimento dos instrumentos que assim acontecia: o meu avô tinha trabalhado na construção de troços da via férrea no Algarve e na estrada de Castro Marim a Balurcos, quando era ainda jovem. Tinha uma vivência bem recheada, com uma episódica vida de contrabandista, era negociante de panelas a troco, enfim...não era propriamente alguém que não devesse saber que as coisas não são feitas assim mas fazia-as.

Logo abaixo, a cerca de 50 metros, uma irmã da minha avó tinha o seu quinhão de terra também, e antes dela havia uma faixa curta, também de alto a baixo, para aí com 20 / 30 metros de largura por 100/150 de altura / comprimento, esta sem qualquer poço, que era de uma outra irmã da minha avó que vivia em Santa Justa. O poço da Ti Zabelinha, quase paredes meias com o Ribeirão, era farto de água: o marido dela, GNR ainda na altura, tinha conseguido os meios para o aprofundar, talvez para aí uns 20 metros.

Tínhamos autorização para nos servirmos da água à vontade, mesmo que o meu Tio Afonso fosse um bocado «torcido» como se dizia por lá: nem um terreno, o da minha Tia Marianita nem o da minha Tia Zabelinha eram cultivados: havia umas parreiras que se alimentavam sozinhas do precioso líquido e o resto lá estava: era muito longe, de facto. Só não era longe para nós porque fazia mesmo falta para o remedeio da casa.

E ali estivemos nós, a escavar à mão um poço, com água em relativa abundância e sem utilização a 50 metros. Ali tínhamos nós de trabalhar regando as casolas parcimoniosamente e uma vez ou duas, por acaso, lá íamos buscar dois baldes de água cada um ao outro poço. Como «pagamento» deitávamos meia dúzia de baldes de água numa laranjeira que nem no ano 5 mil daria fruta de jeito.

Não há muito tempo um primo meu, herdeiro dessa faixa de terra que foi da minha Tia Zabelinha telefonou-me: queria comprar a «minha» parte para acrescentar na métrica da reserva de caça. Com a minha outra prima herdeira da tal faixa situada a seguir à nossa também já tinha falado: isso dava-lhe direito a não sei quantas cabeças de caça.

Dissemos-lhe ambos que sim, que até de borla poderia ficar com elas (isso não dissemos mesmo mas pensámos). Já passou um ano quase e nunca mais obtivemos resposta. A inércia por esgotamento foi substituída pela inércia por comodidade.

E tanta perdiz que lá havia, tanta perdiz que se levantava nas margens daquele ribeirão...tanta lebre e tanto coelho que por lá passavam em corrida distraídos quase à nossa frente.
 
Publicado pela primeira vez no Jornal Raizonline nº 130 de 25 de Julho de 2011.