sexta-feira, 19 de junho de 2015

Joaquim de Fiore e August Comte


Joaquim de Fiore e August Comte

 Por: Daniel Teixeira

August Comte, foi um filósofo francês, e tendo em conta que a sua filosofia teve grande propagação e se transformou quase numa religião na América do Sul, este trabalho destina-se a oferecer mais uma possibilidade de se verificarem alguns pontos de convergência entre diversas concepções do mundo e do ser humano existentes entre a ontologia de Comte e a sua visão culta do acontecimento histórico, e, neste caso, as ideias do abade Joaquim de Fiore (c.1135-1202) e o seu pensamento messianista que se acredita ter sido o principal fundamentador da teoria sebastianista portuguesa.

A apresentação do messianismo, como manifestação de uma esperança em algo que resulta não do nosso esforço mas de algo que tem de acontecer, é feita simultaneamente e intercaladamente com a Teoria dos Três Estados de August Comte, cujos pontos de convergência com Fiore achamos importante realçar neste trabalho.

Não nos debruçamos sobre o Sebastianismo em si, que é uma sub - divisão localizada do messianismo mas deixamos algumas pistas para outros trabalhos sobre esta questão messiânica que desenvolveremos noutras oportunidades.

Joaquim de Fiore foi abade de um convento cisterciense na Calábria. Dividia a história em três fases sucessivas, ou, para falarmos na terminologia do autor, em três estados (status): o do Pai, o do Filho e o do Espírito Santo.

Para Fiore o estado do Pai iniciou-se com Adão, começou a frutificar em Abraão e terminou em Zacarias, o pai de S. João Batista. Caracteriza-se pela imposição rigorosa de mandamentos exteriores, à qual corresponde, da parte dos homens, o temor.

Em Comte, o seu Primeiro Estado, ou Estado Teológico é descrito assim: No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente as suas investigações para a natureza intima dos seres, para as causas primeiras e finais de todos os efeitos que o afectam, numa palavra, para os conhecimentos absolutos, imagina os fenómenos como um produto da acção directa e contínua de agentes sobrenaturais mais ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as anomalias aparentes do universo.

Para Joaquim de Fiore o estado do filho iniciou-se com Osias, rei de Judá (Sec.VII A.C.), começou a frutificar com Jesus e deverá terminar (deverá ter terminado) por volta de 1260. Caracteriza-se pela humildade do verbo encarnado, à qual corresponde, da parte dos homens, a obediência confiante a leis ainda não completamente interiorizadas.

Ou seja, o homem entrega-se ao seu «destino» e segue confiante as leis da natureza (e as suas) que não compreende mas atribui-lhes um valor ontológico e de verdade ou certeza.

Para Comte, o seu segundo (cronologicamente) Estado é o Estado metafísico: No estado metafísico, que, no fundo, não é mais do que uma simples modificação geral do primeiro, os agentes naturais são substituídos por forças abstractas, verdadeiras entidades (isto é, abstracções personificadas) inerentes aos diversos seres do mundo, e concebidos como capazes de engendrar por eles mesmos todos os fenómenos observados, cuja explicação consiste, então, em atribuir a cada um a entidade correspondente.

Para Fiore o seu Terceiro Estado é o estado do Espírito Santo: iniciou-se em S. Bento, começará a frutificar (terá começado a frutificar) por volta de 1260, e deverá terminar com a consumação dos séculos.

Caracteriza-se pelo amor e pela liberdade espiritual e as leis já não são impostas nem propostas, mas livremente aceites, amadas e vividas. Ou seja, e por outras palavras o homem interioriza as leis, assume-as como necessárias, mas como se depreende pelo termo «aceites» não as faz.

Em Comte o seu Terceiro Estado é o Estado positivo: No estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do universo e a conhecer as causas íntimas dos fenómenos, para se consagrar unicamente á descoberta, pelo uso bem combinado do raciocínio e da observação, das suas leis efectivas, i.é., das suas relações invariáveis de sucessão e de semelhança.

A explicação dos factos, reduzida então aos seus limites reais, nada mais é, doravante, que a ligação estabelecida entre os diversos fenómenos particulares e alguns factos gerais cujo número tende, cada vez mais, a ser reduzido.

Ou seja, a descoberta, processando-se no campo fenoménico, naquilo que se reveste de realidade pela acção ou pelo acontecer, agrupa-se em leis gerais que se vão restringindo no número porque a «descoberta» se orienta, também (ou talvez só) para a simplificação do conhecer, liberto ainda à priori da necessidade de conhecer os princípios primeiros e no campo fenoménico liberto do conhecimento das causas que estão por detrás de cada fenómeno ou de vários fenómenos.

Tudo estaria bem se a amplitude do homem se não demonstrasse pelo abdicar de conhecer, o que em rigor levaria ao cultivo do desconhecer.

Como se vê (em Joaquim de Fiore) não se trata de uma sucessão de três estados rigorosamente demarcados, mas de três estados parcialmente coincidentes. O desenvolvimento da história é, em última análise, a obra de um único Deus Trino.

Fiore, exegeta, e de alguma forma cabalista, estabelece datações destinadas a encontrar coincidências ou estados anteriores e superiores em correlação, num sistema de plataformas numeradas.

Por sua vez os números de Fiore existem desde sempre (e serão para sempre) e fazem parte de uma organização da qual são meros elementos apontadores mas ao mesmo fazem parte da essência dos eventos. Quase que se pode dizer que sem eles não haverá evento dado que ao estabelecerem a datação a enquadram materialmente.

(...) Cada um destes três estados compõe-se de sete idades, analogamente aos seis dias da Criação seguidos do sábado, e aos sete dígitos sucessivamente abertos pelo Cordeiro do Apocalipse. A estrutura interna de cada uma das sete idades apresenta uma grande semelhança com a idade que lhe corresponde no estado anterior ou posterior. A cada personagem e a cada facto ocorrente no estado do Pai correspondem, nos dois estados seguintes, outra personagem e outro facto que representam o mesmo tipo.

A história repete-se, dentro de certo esquema cronológico, cada vez num plano superior. A repetição não é idêntica, como o imaginavam alguns pensadores da antiguidade, mas tipológica.

A figura de São Bento (480-547) não é idêntica á do Profeta Elias, (Sec. IX A.C.) mas a obra do abade de Monte Cassino (S. Bento) repete, num plano superior, a do ermitão do Monte Carmelo (Elias). Investigar essas analogias ou «concórdias» é, para Joaquim de Fiore, a grande incumbência do exegeta. Quem, munido desta chave, conseguir entrar na tipologia da Escritura Sagrada será também capaz de entender o profundo significado da história moderna.

Por outras palavras e através de um sistema previamente construído, ainda que não de todo conhecido (faltará a chave) o homem constata as coincidências temporais, resume estas e tem consciência que o «segredo» do conhecimento está numa hipotética chave ou combinação metodológica que doará o conhecimento da história moderna, entendida aqui como sendo o conhecimento absoluto de tudo o que irá acontecer, precisamente porque essa metodologia (chave) sendo a mesma que orientou o passado será a mesma que orientará o futuro, consciência que se tenha que o sistema funciona em plataformas que se repetem.

Breve, num e noutro caso, nos seus últimos estados, põe-se por exclusivo o problema do conhecimento e nunca o problema da acção (praxis) e a vida do homem, como ser componente da história.

Os dois Estados anteriores referem-se, de uma forma geral, à atitude do homem perante a natureza, a sua forma de compreensão dela e dos Deuses ou Deus que lhes está subjacente: no primeiro Estado desconhecido ou incompreendido, no segundo Estado personificado ou unificado numa ou em várias entidades e no terceiro Estado, predestinado em Fiore e resultante de uma impossibilidade de conhecimento constatada em Comte.

Enquanto que em Fiore o segredo do futuro pode ser conhecido (mas não transformado) em Comte o futuro pode apenas ser conhecido no campo restrito do acontecer, o que de alguma forma vem dar ao mesmo uma vez que um e outro sistemas não actuam sobre esse mesmo futuro.

Em qualquer um deles predomina pois o destino, o facto consumado desde o princípio dos tempos, e a margem de liberdade do ser humano restringe-se ao exercício de especulações inseridas em campos pré-delimitados (num caso por força das coisas e noutro caso por força de uma constatação dessa mesma força das coisas).

A acção humana, que pode existir dentro de um campo delimitado é de alguma forma serva dessa mesma condição.

Daniel Teixeira 





domingo, 14 de junho de 2015

Chama devoradora - John Steinbeck - Resenha crítica de Daniel Teixeira


Chama devoradora

John Steinbeck

Resenha crítica de Daniel Teixeira

Com este título, Chama devoradora, aparentemente da autoria da tradutora da Livros do Brasil - Lisboa, Virgínia Motta, em data incerta dos anos 60's, baseado no volume de Steinbeck de 1950 «Burning Bright», relemos recentemente mais uma obra deste nobelizado (1963) autor.

O título em português não é dos mais felizes, na nossa opinião, havendo algumas alternativas possíveis que correspondessem melhor quer a um sentimento literário menos catastrófico quer à própria temática do livro, mas por ora fique-mo-nos por aqui.

Na verdade há todo um conjunto de especificidades neste volume que é preciso desde logo referir, na medida em que se não trata directamente de romance (embora o seja no seu conjunto) mas sim de um conjunto de novelas entrelaçadas que se constituem num trama romanceado.

Mas ninguém melhor que o autor para nos explicar porque escreveu desta forma e não de uma outra:

«Decidi-me por este tipo literário por várias e diferentes razões. A leitura de peças teatrais parece-me difícil e o mesmo pensa muita gente. As peças que se dão à estampa são lidas exclusivamente pelas pessoas que se encontram ligadas ao teatro, pelos estudante ou estudiosos da arte dramática e por um grupo relativamente reduzido de leitores a quem o teatro fascina.

Daí a primeira razão da forma literária que adoptei: o desejo de produzir uma peça capaz de atrair um número substancial de leitores, uma vez que o livro é apresentado como um romance vulgar, ou seja, dentro de um género mais familiar ao grande público» (...)»

Quanto à segunda razão apresentada pelo escritor no seu prefácio iremos resumi-la desta forma: trata-se de fornecer de forma mais acessível um conjunto de informação ao actor, ao director, ao produtor e ainda ao leitor, em diversos aspectos, alargando o leque informativo sobre as personagens, coisa que uma peça de teatro escrita ou declamada não faz desde logo, no entender do autor, permitindo por isso uma liberdade interpretativa ao encenador, aos actores e ao público que pode não corresponder àquela intensidade ou forma que inicialmente era pretendida pelo autor.

Steinbeck divide esta peça novela em quatro actos, cada um deles passado em cenários diferentes, com as mesmas personagens base e um argumento que se entrelaça nos momentos relevantes de cada um dos anteriores.

Assim, o primeiro acto passa-se num circo, o segundo acto numa quinta, o terceiro que se prolonga pelo quarto acto entre o mar (um barco atracado num porto) e um nascimento.

Quem conhece Steinbeck sabe que este autor deu uma importância relevante à relação de família e ao relacionamento familiar e tanto neste romance como noutros a transmissão de sangue ou da continuidade afectiva e memorial está de alguma forma sempre presente: lembramo-nos de «A um Deus desconhecido» por exemplo (que curiosamente teve pouco sucesso quando da sua publicação primeira em 1933) ou mesmo «Ratos e Homens» que é considerada a sua obra prima ou ainda «As vinhas da Ira» (1939) entre outros.

Neste romance/peça de teatro o tema basilar trata de um indivíduo que tem um verdadeiro problema sobre a necessidade de deixar descendência, o que se torna de alguma forma obsessivo. Compreender Steinbeck e o tempo em que escreve é também ter a tentação de referir o chavão que se acopla normalmente ainda hoje ao povo americano em geral que é a busca de uma identidade comum americana (USA).

Nascido este país (conjunto de estados) de um caldo (nem, sempre ou poucas vezes misturado) de nacionalidades e culturas é bastante comum encontrarem-se ainda hoje as referências identitárias originais (irlandês, italiano, judeu, latino, polaco, etc.) dos emigrantes que inicialmente povoaram a América, mantendo-se algumas comunidades com muito poucas variantes inter - culturais e relativamente pequena fusão social e familiar efectiva.

Contudo este problema relatado por Steinbeck pode inicialmente ser encarado no plano exclusivamente pessoal. Joe Saul é casado em segundas núpcias com Mordeen dado o falecimento da sua primeira esposa, tem um amigo denominado no romance de Amigo Ed, e um jovem auxiliar de nome Vítor.

Independentemente do cenário desenvolvido por Steinbeck as posições hierárquicas dos personagens mantêm-se. No circo Vítor é companheiro de trapézio do mais experiente Joe Saul, na quinta é trabalhador sob as ordens de Joe Saul e no barco é o imediato de Joe Saul e no quarto acto, interligado com o terceiro, está ausente por razões que esclareceremos mais à frente.

Mordeen ama Joe Saul cuja ânsia por ter descendência se vê constantemente frustrada e o atormenta cada vez mais porque sem o saber Joe Saul é estéril. Sabendo da esterilidade dele e desejosa de fazer cumprir o desejo do companheiro, logo no primeiro acto, em conversa com Amigo Ed, sugere levemente a possibilidade de engravidar através de uma relação secreta com o jovem Vítor que a ama sem ser correspondido por Mordeen, relação essa que vem a acontecer.

No primeiro acto ficamos com a dúvida sobre se a infidelidade de Mordeen a Joe Saul terá uma componente exclusivamente altruísta, uma vez que Mordeen também deseja ser mãe, não de uma forma tão obsessiva, mas o resultado acabará por ser o mesmo na medida em que o seu relacionamento com Joe Saul melhorará de forma significativa no seu entender cumprido que seja este seu desejo de deixar o «seu sangue» perdurar.

Nos outros actos trata-se sobretudo da gravidez e da luta de Vítor perante Mordeen para que ela assuma que o futuro filho é dele e dela, situação esta que está presente nos três actos.

No último o Amigo Ed acaba por «resolver» a insistência de Vítor jogando-o ao mar e causando a sua morte, ficando desta forma o crime sem castigo, tentando assim poupar tanto Joe Saul como Mordeen.

A parte final trata do nascimento do bebé, já sabendo na altura, através de análises que fez, Joe Saul, que é estéril e que logo o filho que nasce da barriga de Mordeen não é seu.

Joe Saul acaba por aceitar a inevitabilidade, depois de uma luta de recusa consigo mesmo, e após o nascimento do bebé acaba a peça / romanceada com o seguinte trecho:

(...) «Mordeen, gosto da criança - a voz de Joe Saul ganhou volume e foi em tom vigoroso que reforçou a sua declaração - Mordeen, gosto do nosso filho - e erguendo a cabeça, exclamou triunfante - Mordeen, gosto do meu filho.»

Depois do que dissemos acima sobre as intenções de John Steinbeck quanto à forma do seu escrito parece-nos claro que, apesar de estar bem escrito e ter um enredo suspensivo constante entre actos, com os elementos dramáticos, desconhecimento da realidade dos factos da parte de Joe Saul e posterior conhecimento, insistência e incerteza quanto ao resultado da pressão do verdadeiro pai da criança, desfecho relativamente inesperado pela acção de Amigo Ed e a atitude final de Joe Saul que, dito tudo isto, como romance este vale mais como peça de teatro.

Na verdade pensamos que só na declamação e na actuação as personagens podem ganhar verdadeira força e intensidade dramática e que as coreografias poderão de facto ajudar bastante uma história que não sendo de todo banal, está quanto a nós longe de se constituir como sendo interessante por si só na sua forma escrita.

Daniel Teixeira



segunda-feira, 8 de junho de 2015

Luís Forjaz Trigueiros - Aquelas mãos - Por Daniel Teixeira


Luís Forjaz Trigueiros

Aquelas mãos

Por Daniel Teixeira

Conforme fizemos referência no número anterior existem no livro de contos «Ainda há Estrelas no Céu» de Luís Forjaz Trigueiros dois contos que mereceram uma maior atenção da crítica e dos tradutores fazendo desses dois contos aqueles que maior relevo merecem ainda que, e conforme dissemos igualmente quando da análise do conto «Boa noite, Pai!» existam neste pequeno volume algumas outras estórias que consideramos de igual interesse desenvolver, o que faremos noutras oportunidades. Este volume tem oito contos.

Embora e citando a contracapa do volume vejamos que na altura o autor foi referenciado como tendo afinidades narrativas com Maupassant e K. Mansfield e em termos de análise ou ambiência psicológica ele seja situado nesta introdução com Mauriac, certo nos parece ser que existe nele também influência do psicologismo russo e em análise mais detalhada talvez com Camus ou mesmo Gogol.

Na verdade as personagens deste autor são na sua larga parte elementos de uma pequena e média burguesia rotineira, que não vivem o seu tempo mas que antes o deixam passar por elas, desprovidas de objectivos substanciais, desligadas da alegria de viver, fazendo em certo sentido lembrar o Mersault de Camus no romance o Estrangeiro (não na Morte Feliz) ou mesmo a «Peste».

Por seu lado a falta de objectivos definidos na vida dos seus personagens principais fá-los viver num universo estreito: uma grande farra de aniversário é uma noite no Parque Mayer, por exemplo, a ver uma Revista... enfim, são personagens que se não encontram no tempo em que vivem (as notícias da guerra, neste conto que resumimos e procuramos analisar, de 1940, entram-lhe por um ouvido e saem-lhe pelo outro), é fundamentalmente uma desesperança de vida que neste conto encontra a sua alegria num facto sem importância que pode muito bem aceitar-se como a alegoria que é, mas que denuncia a pouca imaginação do personagem.

Bom narrador, Luís Forjaz Trigueiros, consegue uma narrativa inteligente e faz uma descrição tão detalhada quanto possível de um homem que pode considerar-se comum com ambições que vão um pouco além mas não passam do comum plano mental.

Farei algumas citações mais à frente mas noto antes que o autor procurou ele mesmo construir antecipadamente o ambiente que despoletaria o evento : na verdade por uma vez decide seguir um percurso diferente daquele que segue habitualmente de eléctrico e nele encontra duas mãos de uma jovem senhora que o cativam muito para além daquilo que seria normal.

Ora e retrocedendo um pouco na nossa análise não vemos porque razão ele não encontraria umas mãos que o cativassem numa das suas habituais viagens de casa para o emprego e deste para casa e porque as encontrou naquele dia e não num outro.

Claro que temos um alerta logo no início do conto onde ele repete para si mesmo aquilo que a sua mulher lhe diz ao que parece com alguma frequência : «Tu não me enganes! (...) Não arranjes outra.» o que pode funcionar nele como um desejo de ser tão normal quanto os outros seus colegas e amigos, mas não nos parece que o argumento tenha assim tanta força.

Na verdade «Aquelas mãos» apesar de poder considerar-se ser um conto bem escrito está fracamente alicerçado e menos alicerçado fica quando essa sua paixão por aquelas mãos em concreto se distribui na sua imaginação por várias mãos femininas. Contudo as mãos da sua mulher nunca são referidas nem positiva nem negativamente.

O problema maior que esta questão levanta é o seu convencimento de que comete infidelidade, convencimento esse que o leva a um alheamento familiar que depressa contagia os receios sempre infundados da mulher. Assim os condimentos da infidelidade conjugal reúnem-se entre os dois havendo da parte da sua mulher uma atitude de aceitação dos factos que não existem.

(...) « Foi nessa altura que comecei a olhar melhor para a rapariga que ia sentada mesmo defronte de mim. A falar a verdade, ela não tinha nada de extraordinário. Era bonita? Não me recordo bem. Creio, porém, que tinha uns olhos de tal maneira vagos que nem se cruzaram com os meus.Além disso, vestia sem espalhafato. Sem espalhafato e, com certeza, sem água de colónia absorvente da senhora do lado. Pintadinha, sim, mas com recato, sem exageros. Também não me lembro do vestido. Só me lembro - e isso muito bem - que tinha uma carteira castanha e que a segurava, com as mãos rosadas, sobre os joelhos. Mas eu olhei para as mãos da rapariga e não fui capaz de olhar para mais nada!»(...)

(...)«Até ao dia em que meti naquele eléctrico eu tinha uma cortina corrida entre mim e a vida. Tudo quanto eu via era visto apenas por detrás dessa cortina e, logo, correspondia a uma realidade incompleta.»(...)

(...)«Do meu lugar, (...) acompanhava fixamente com os olhos a vida das suas mãos. Já não eram indiferentes. Assim como eu tinha acordado para um mistério, elas tinham entrado também nesse mistério. E riam para mim, riam evidentemente, já sem conseguirem estar à vontade, perseguidas pela consciência de que estavam a falar comigo uma linguagem própria, que os meus olhos talvez não vissem, mas escutavam.»(...)

(...)«Desta maneira, à medida que fitava as mãos da minha companheira de eléctrico, sem quer desviar delas esse olhar, instintivamente me lembrava da minha mulher e quase a ouvia numa reprimenda discreta e apagada como todos os seus gestos: "Firmino, não olhes para ela..." Ouvia-a falar-me assim, mas continuava a olhar. Afinal, pela primeira vez, estava a ser infiel à Lucília, infiel com frieza, conscientemente.E não tive remorsos.»(...)

(...) « Mas assim que me levantei do meu lugar (...) chegara ao final do meu percurso (...) aquelas mãos recuperaram a sua tranquilidade, voltaram a cumprir o seu destino de existirem apenas. (...) As mãos daquela desconhecida, que eu não tornaria a ver, voltaram, de súbito, a ser silenciosas para mim.»(...)

O resto da estória já foi referida em grosso acima. Podemos sempre pensar e acreditar que se trata de ficção, claro que é, mas mesmo pela sua insignificância o episódio pretende descrever a eclosão de um sentimento até aí recalcado (e que continua recalcado) mas onde tudo funciona como a grande catarse desejada.

Chamamos no entanto a atenção para a imagem da cortina corrida (sobre uma vida) e o correr dessa cortina (sobre uma outra perspectiva de vida) e dizer, ironicamente, que cada um corre as cortinas que tem e as que pode ter.

Daniel Teixeira




segunda-feira, 1 de junho de 2015

Luiz Forjaz Trigueiros - Texto /Resenha de Daniel Teixeira - Boa noite Pai



Luiz Forjaz Trigueiros

Texto /Resenha de Daniel Teixeira

Boa noite Pai

Tenho-me dedicado nos tempos livres e nos tempos não livres a reler alguns autores que no meu tempo de escola e não só foram referências para mim importantes no desenvolvimento do meu gosto pela literatura.
 

Faço-as, estas releituras, por razões que vão muito além do mero saudosismo: na verdade, na actualidade tenho tido dificuldade em gostar da literatura que se produz actualmente, seja ela nacional ou estrangeira, ainda que pudesse facilmente apontar um número razoável de excepções.

O volume de contos «Ainda há estrelas no Céu» de Luiz Forjaz Trigueiros (1915-2000) é apenas um livro no percurso literário deste autor, cujos caminhos se estendem da ficção ao jornalismo, ao ensaio e à crítica literária e teatral.

Contém este pequeno volume os contos «Boa noite, Pai» (1942) e «Aquelas Mãos» (1940) que tiveram bastante acolhimento na altura da sua publicação e que foram traduzidos em várias línguas. Sobre este último, «Aquelas Mãos» faremos o seu resumo e notas numa outra publicação seguinte.

Há outros contos dentro deste pequeno volume que mereciam igualmente uma referência da minha parte neste pequeno texto ou noutros, mas talvez a eles revenha numa outra altura.

Por ora digamos que estes dois contos tratam quer da infidelidade numa perspectiva latente ou potencial não efectivamente consumada na sua forma mais conhecida, quer do ciúme, ainda que ambos vistos em perspectivas bastante diferentes.

Há várias formas de infidelidade e de ciúme sem que alguma delas possa ser considerada nas acepções correntes: neste conto que vou referir a seguir há uma forma de infidelidade, na medida em que se descrevem percursos lógicos diferentes da base esperada ou desejada e é dessa tensão entre a realidade e aquilo que se esperaria, segundo formas de pensar distintas, que pode existir a ideia de uma infidelidade também ela distinta.

No conto «Boa noite, Pai» trata-se de alguma forma de ciúme ainda que o fulcro do tema se situe no relacionamento entre um pai e uma filha: não se trata pois do ciúme amoroso naquele sentido mais corrente mas sim de um sentimento de afastamento progressivo de uma filha do seu pai, à medida que a mesma cresce, o que acaba por colocar uma segundo questão que será a de se saber se é a filha que cresce afastando-se do pai ou se é o pai que não acompanha a sua evolução e a evolução dos tempos.

Há neste problema que o autor desenvolve também uma forte componente de crise da sua meia idade que está presente e se acentua dado a evolução do seu relacionamento com a sua filha e do relacionamento desta com um período socialmente diferente cujo percurso ele tende a não conseguir psicologicamente acompanhar, preenchendo os espaços vazios da sua mente neste campo com as mais variadas e imaginadas suspeitas sobre o comportamento actual da filha.

O autor é bastante simpático com o desfecho do conto tudo acabando em bem, pelo menos no conto, com um «simples» Boa Noite, Pai.

Quando disse atrás que o autor tinha sido simpático na narrativa não esqueço é claro que os problemas entre ele e a evolução da sua filha única (e dele com a sociedade) não acabam, embora o «Boa noite pai!» sirva de alguma forma como paliativo.

Para o leitor que atentar no escrito notará seguramente que o conflito é apenas adiado porque o personagem mais não faz do que fazer reflexivamente regressar este «Boa noite, Pai» aos tempos passados, aos tempos em que a filha era para ele ainda uma criança, como veremos nestes estractos:

«Vê-a pequenina a chegar da escola primária ao meio-dia, para almoçar, laçarotes cor de rosa, almazinha cor de rosa, futuro cor de rosa.» (...) «Gabi era ainda Gabriela (o senhor Mota nunca se habituou a chamar-lhe Gabi, e talvez gostasse mais da outra filha, a de ontem, a do nome por extenso), ainda era Gabriela e ainda sorria.

Esteve oito dias entre a vida e a morte (...) durante longas noites de vigília os pais alternaram-se à cabeceira. (...) Aristides acompanhou a longa convalescença de Gabriela, e só se afastava quando a filha dizia meigamente "Boa noite, Pai" e adormecia com a mão dada com a sua, (...). A verdade é que nunca mais, nunca mais, a filha voltara a tratá-lo tão meigamente e com entoação tão doce.(...).

(...) Oito horas, oito e meia. A chuva abrandou, iluminaram-se mais candeeiros na velha rua deserta (...) Aristides Mota ouve na escada os passos apressados de Gabriela (...). Ouve-a atravessar o corredor, dirigir-se à salinha pequena onde, há duas horas, ansiosamente a espera. Gabriela vem de cabelo revolto, encharcada, a pintura desfeita, escorrendo-lhe ainda na cara a água da chuva.

Pára um momento mesmo à porta, surpreendida com o olhar do pai, que fica em silêncio, pois nem se atreve a dizer-lhe nada. Gabriela dá dois passos em frente, adivinha que qualquer coisa se transformou no pai, mas não pode compreender o quê. Então, enlaça-o instintivamente com mais ternura que de costume, e diz-lhe simplesmente, naturalmente: «Boa noite, pai!»

Acho que é um conto bem escrito, que consegue prender o leitor do princípio ao fim, sobretudo porque na sociedade em que vivemos actualmente e graças aos massacres constantes das ideias verdadeiras e falsas de modernidade, teremos seguramente margem para fazer as extrapolações ideadas que aqui o pai faz sobre a sua filha, o que me leva a uma outra questão, que é a de saber até que ponto este conto terá sido actual na altura em que foi escrito (1942), isto é, numa altura em que esse tipo de preocupações tinham talvez menos variáveis para explorar mas que a avaliar pelo escrito existiam já com a profundidade que alguns de nós por vezes lhes damos hoje.

Mas...retiremos um pouco mais a Luz Forjaz Trigueiros:

(...) Gabriela (...) «Disse-o simplesmente, naturalmente, mas Aristides Mota logo esquece ali mesmo quanto o preocupava e afligia. Responde-lhe sorrindo como numa bênção que nunca soube dar: «Boa noite, filha!», e fica-se muito surpreendido por ter encontrado naquele momento o eco duma voz diferente.

Ele próprio diz "Boa noite, filha" como o dizia sete anos atrás nas longas noites dessa outra angústia tão diferente da que experimentou agora.

Gabizinha vai arranjar-se para o jantar. O senhor Mota ergue-se a custo do maple, vai lá dentro por o casaco, endireitar o laço da gravata. Canta-lhe ao ouvido aquela voz inesperada :«Boa noite, pai», que lhe trouxe, afinal todo o doce sabor da antiga paz.

E senta-se à mesa, sem coragem para fazer qualquer pergunta, muito feliz e sorridente.»