sexta-feira, 22 de maio de 2015

Irene - Conto / Crónica de Daniel Teixeira


Irene

Conto / Crónica de Daniel Teixeira

A Irene não era bonita, nunca tinha sido bonita e nunca seria bonita,
pensava eu no tempo em que a conheci mais de perto, então era ela jovem, isto pelos idos dos anos oitenta.

Lamentava-a porque, reflectindo, depressa tinha de chegar à conclusão que há pessoas que nascem, crescem e morrem sem nunca serem bonitas e eu não sou grande adepto da ideia do destino como guia do passado, do presente e do futuro.

Não acredito nas condenações eternas, acho que as coisas e o mundo estão em constante movimento, enfim acho que aquilo que é pode deixar de ser e que aquilo que não é pode vir a ser.

No caso dos homens o problema de ser feio não parece ser tão grave
porque existe uma tradição implantada, penso eu. Corre por aí que as
mulheres não se importam muito com essas coisas, ou que conseguem
descobrir a beleza em traços quase imperceptíveis ao imparcial olhar
comum.

Enfim, não vou fazer, neste espaço que é uma história, uma dissertação sobre a influência do patriarcalismo nestas coisas mas parece-me claro que, numa lógica do homem mandante este terá sempre defeitos que são socialmente mais toleráveis em si do que nas inferiorizadas e comandadas mulheres.

Claro que nos anos oitenta havia já um esbatimento da ferocidade
patriarcal mas como sabe quem essa época viveu uma parte substancial das concepções de inovação nesse campo eram para uso crítico do comportamento dos outros e muito raramente para consumo próprio.

Mas tratava-se ainda, nesta altura que refiro, quando ela tinha cerca de
vinte anos mais ou menos, de ter de pensar num percurso de feiúra ainda a percorrer, por isso, e contra minha vontade, voltava à ideia de
destino e este parecia-me alicerçado nessa então recente certeza
científica que era a genética.

Qualquer mente, mesmo sem ser muito dotada para a imaginação sentia-se quase na obrigação de projectar para ela um percurso crescente de feiúra: era fatal, penso eu, que alguém não visse, desde a primeira vez que via a Irene que o que lhe restava a ela pela frente era ser precisamente igual à sua mãe, boa senhora, por sinal, conformada com a sua fatalidade.

Quando se olhava para a Irene via-se logo o realce em amplificação e
profundidade das rugas à volta dos olhos, via-se-lhe o crescimento dos
chamados papos, o encarquilhar lento mas irremediavelmente progressivo dos lábios - agora ainda relativamente carnudos - empurrados para dentro dela pela perca de alguns dentes (primeiro os sobressaídos da frente) e imaginava-se aligeirado o afundamento pela colocação de uma daquelas placas em prótese branquérrima, denunciando desde logo a sua artificialidade, tal como na sua mãe.

Via-se, imaginava-se, calculava-se também perfeitamente a possibilidade que deixava de ser cada vez menos remota à medida que nisso se pensava que a placa descolaria do céu da boca, tal como na sua mãe, quando ela se risse muito, coisa que fazia agora. E ria sem complexos a Irene.

Sabia-se desta mesma forma também que o queixo dela se afundaria cada vez mais, misturando-se com as rugas do pescoço (se engordasse talvez se misturasse com o papo) tal como a sua mãe.

Mas o que interessava era que por mais voltas que a sua fisionomia desse nunca ela ou outros veriam decrescer aquele nariz enorme, um autêntico triângulo bermudiano apontando para uma distância incalculada nos ares à sua frente, um apêndice desproporcionado, uma verdadeira intrusão de um corpo num espaço roubado, um geométrico lançado de arestas afiadas no perfil, uma agressiva e quase cortante intrusão no espaço vital de quem a visse de frente.

Pois...a Irene não tinha passado de beleza, não tinha presente de beleza e o futuro era ainda mais ameaçador para ela.

Mas, e há sempre um mas que merece ser metido em altura oportuna, consta que constava que a Irene confidenciava repetidamente às suas amigas, já nesta altura que descrevo, um segredo que era simultaneamente sentido como um chamamento: "Tenho de casar rapidamente!"- dizia - como que a constatar aquilo que eu tenho descrito atrás e acima. "Tenho de casar rapidamente, antes que a minha feiúra progrida ainda mais!"- era o que a Irene queria dizer, digo eu.

Possibilidade de fazer plásticas não havia: a Irene era apenas e só
economicamente remediada; tinham, ela e a mãe - o pai falecera
oportunamente - algumas rendas de pequenas propriedades, de casas
antigas, algum dinheirito a render, pouco, seguramente e trabalhar por
conta de outrem não era tradição na família nem sequer sei que
actividade poderia exercer a Irene porque nunca a essa ideia se dedicara e o tempo normal de começar estas coisas já ia passando.

Não sei exactamente como tudo se passou imediatamente antes, nem quais os preparativos que a Irene terá eventualmente feito e também não consta que tenha dado conta de alguns desses preparativos às amigas mais chegadas, mas o certo é que um dia a Irene desapareceu da cidade.

Falecida a sua mãe com quem convivera desde sempre, talvez não se
sentisse em condições de reviver a memória dela no mesmo espaço durante todo o seu tempo e partiu.

Foi o que eu e as suas amigas e amigos pensamos, embora todos achássemos estranho ela não dizer nada a ninguém. Soubemos entretanto que tinha vendido as casas e os terrenos que lhe ficaram. Não terá amealhado muito, era a voz corrente. E foi assim como que um corte radical, o acabar de um livro que se fecha e não se leva na bagagem aquilo que achámos que a Irene tinha feito.

Pois...todas as histórias têm um remate final senão não valeria a pena
contá-las e esta não foge à regra. Estava eu então em Lisboa num
intervalo de esplanada quando se aproximou de mim uma senhora. Eu já ia nos quarenta e a tal senhora por aí andaria, quando ouço um «Olá, estás bom!?».

Virei-me na direcção daquilo que me pareceu ser um chamamento a mim dirigido e deparo-me com a Irene, sem tirar nem por, quer dizer, com mais vinte anos como eu, mas igual a ela mesma. Dei-lhe os tradicionais dois arremedos de beijo na face, convidei-a a sentar-se e ela então foi-me contando aquilo que era feito nela.

Primeiro vieram as razões porque não tinha dito nada a ninguém quando se viera embora. Ainda recordo, passados mais alguns anos, as suas palavras: aquele ambiente era para mim sufocante - foi o que ela me disse - alegre sim, confessou, tinha ainda algumas saudades dos amigos e amigas, mas chegara à conclusão que precisava de se diluir numa multidão e na nossa pequena cidade sentia-se encurralada.

Embora nunca se tivesse apercebido de ser alvo de chacota, cada vez que entrava num café ou saía com as amigas e os amigos ou mesmo só sentia-se alvo de todos os olhares. Por vezes sentia a piedade, aquela sensação estranha de ser motivo de pena.

Aguentou tudo enquanto a mãe foi viva, não iria nunca abandonar a velhota e nem sequer podia sugerir-lhe fazer aquilo que ela tinha feito.

Viera para Lisboa, tirara um curso de secretariado e encontrara emprego num pequeno escritório na baixa onde se mantinha desde então, já lá iam quase vinte anos. Com o tempo foi-se adaptando à nova realidade e hoje, naquela altura, sentia-se bem. Vivia só num apartamento depois de algumas bolandas por quartos alugados e disse-me: era feliz.

Acredito que sim, acreditei nela, na sua sinceridade, embora o peso da
solidão estivesse presente nela. Gostou de me ver - disse. Eu também e
nunca mais vi a Irene.

Por vezes, como agora, lembro-me dela e por estranho que me pareça sempre, embora ela fosse naquela altura em Lisboa quase igual à Irene que eu tinha conhecido muitos anos antes pareceu-me ter uma face e uma figura como qualquer outra pessoa.




O Suicídio - Por Daniel Teixeira


O Suicídio

Por Daniel Teixeira

Há diversas formas de se morrer. Uma delas é o suicídio. Hoje em dia enquadramos o suicídio num contexto psicológico e vemos aqueles que o cometem como pessoas com problemas, passíveis de ser ajudadas por profissionais.

Mas o suicídio, a sua prática sempre existiu, desde os tempos mais remotos, e foi a forma de o encarar que mudou radicalmente ao longo dos tempos. As mentalidades evoluíram e o suicídio tomou outros contornos.

Só no século IV é que se começa a tomar o suicídio como algo negativo, graças a S. Agostinho que rejeita a prática. Mais tarde, a Igreja, órgão de suma importância nas sociedades do século XIII veio - sob a forma de S. Tomás Aquino - a trazer um conceito que mudou para sempre a visão dos que cometiam suicídio. Foi o conceito de «pecado» que até hoje ainda influencia a opinião de muitos neste assunto.

Foi então que, através de «castigos», como a ameaça do Inferno (ao cometer o pecado), e a exposição do corpo em praça pública, denegrindo a pessoa morta e família, o suicídio ganhou o seu cunho de «proibido» e mau.

Hoje o suicídio é visto essencialmente de uma forma psicológica (considerando-se as problemáticas psicológicas relacionadas), e entendido mais abertamente que sob a suma influencia da Igreja.

No entanto, não existe uma posição permissiva em quase nenhuma sociedade, mas sim uma preocupação crescente da saúde mental e não só de proporcionar uma existência em que o suicídio não seja contemplado como alternativa. Assim, desenvolvem-se esforços vários para promover condições de vida em que o suicídio não seja visto como uma hipótese viável.

Este é um assunto muito complexo, e podemos começar por comparar as diferentes noções que vários autores dão do conceito de suicídio.
Parece-nos óbvio o que é o suicídio, mas há diversas teorias que abrangem mais do que o simples acto de morrer voluntariamente, utilizando de instrumentos que se sabem provocar esse fim (a morte).

Durkheim (1897) refere que uma conduta suicidária alcança tudo o que a «vitima» causa, tendo consciência do seu possível resultado. Assim, segundo este autor, usar drogas, álcool ou até conduzir perigosamente, são condutas suicidárias.

Já Halbwachs (1930) refere que o suicídio é o acto realizado com instrumentos ou meios que nos levem a crer que o sujeito realmente tinha como objectivo a morte.

A definição que, talvez, se aproxime mais da noção em senso comum que vigora actualmente, é a de Vaz Serra (1971) que concebe o suicídio como a autodestruição consequente num acto voluntariamente realizado com vista a esse fim (morte).

Baechler (1975) vê o suicídio como todo o comportamento que procura solução para um problema existencial através do atentar ao Eu.

Estes autores, referidos por Daniel Sampaio, também ele muito atento a esta questão, dão-nos uma noção breve da extensão desta problemática.

Talvez ninguém saiba explicar completamente o suicídio, o que leva uma pessoa a recorrer a ele, que sentimento acompanha o momento do suicídio, que objectivo se pretende alcançar com esse acto.

Talvez seja diferente para cada pessoa, as pressões exercidas sobre os indivíduos são diferentes, as razões nunca poderiam comparar-se de pessoa para pessoa.

Será para alguns como Paulo Coelho escreve no seu livro, Verónika decide morrer:

«(...) Verónika decidira morrer naquela tarde bonita de Lubljana, com músicos bolivianos a tocar na praça, com um jovem a passar diante da sua janela, e estava contente com o que os seus olhos viam e os seus ouvidos escutavam. Mais contente ainda estava por não ter que ver aquelas mesmas coisas por mais trinta, quarenta, ou cinquenta anos - pois iam perder toda a sua originalidade, e transformar-se na tragédia de uma vida onde tudo se repete, e o dia anterior é sempre igual ao seguinte(...) .»;
para outros esta calma, é substituída por um desespero avassalador, uma angústia silenciosa.

O suicídio nem sempre é um adeus, na maior parte dos casos é uma mensagem, um pedido aos que os rodeiam.Daniel Sampaio refere quatro tipos fundamentais de suicídio (baseou as suas conclusões num estudo de tentativas de suicídio adolescente):
fala-nos do suicídio por apelo, em que o indivíduo pretende a comunicação, enviar determinada mensagem que, de outra forma, não consegue expressar;
o suicídio por desafio, em que o sujeito desafia os seus superiores, colocando-se numa posição de igualdade;
do suicídio de renascimento, em que a pessoa quer modificar o sistema em que está inserido, a seu modo;
e, por fim, temos o suicídio de fuga, em que o sujeito quer excluir-se.

Nestes quatro tipos de suicido encontra-se uma noção em comum, a noção de mudança. Os sujeitos desejam a mudança. A forma como encaram as suas tentativas de suicídio difere, mas o objectivo central é o mesmo, a mudança. A situação em que se encontram não lhes serve mais.

Não será o equivalente a sofrer de uma doença terminal em que a morte não é uma escolha, mas uma certeza incontornável, mas os últimos passos de quem um dia «escolhe» a morte, seja por que razão for, são também minutos de despedida que talvez nunca entendamos completamente.




Valores reais - Texto de Daniel Teixeira


Valores reais


Texto de Daniel Teixeira

Este titulo e uma parte do texto / argumento é «emprestado» pela nossa amiga e colaboradora do Jornal Raizonline, Renata Rimet, residente na Baía (desculpem lá escrever à portuguesa) e que tem um poema precisamente com este titulo colocado de forma poetizada.

Peço desculpa de não ir agora ver qual a forma exacta utilizada por ela mas esse poema foi publicado no jornal e o que me interessa aqui (para além de plagiar pelo menos parte do título e a ideia de parte do seu conteúdo) é fazer a destrinça que ela faz no seu poema de uma forma mais alongada.

Como sabem não sou poeta nem sintético: poeta gostaria de ser mas ser sintético / sumarizador já é outra coisa e francamente não vou mudar, provavelmente nunca.

O poema da Renata retrata um assalto a um autocarro (não me lembro como se diz no Brasil e estou mesmo atrasado neste texto e não dá para andar a fazer pesquisa - aliás tenho horror ao termo, parece-me que é ónibus...

Bem, continuando: no referido assalto o autor do mesmo não leva nada dos valores que quer, mas rouba, segundo a Renata - e com toda a razão - sentimentos às pessoas. Intimidade exposta (quer dizer aquelas coisas que por vezes se levam nas malas ou nas algibeiras ou nas mochilas e que fazem parte da nossa intimidade e que não gostamos que os outros vejam), devassa dos nossos pertences (algumas coisas compradas nos chineses aqui em Portugal, por exemplo e que são conotadas com a penúria pessoal por as termos comprado, o que é paradoxal, mas já veremos isso).

Bem, o que está em causa na descrição poética da Renata é o facto de uma determinada atitude ou comportamento (neste caso um assalto à mão armada ainda por cima) trazer prejuízo a quem o sofre mesmo que não traga, como não traz, vantagem ao outro ou ao criminoso - neste caso.

Pois por mais estranho que lhes possa parecer e tomando a posição do outro (sem crime como é claro) eu posso não obter nada do que quero, retirar (comprando) a outro algo, mas, por uma posição de escala de valores isso não me servir para nada ou para muito pouco.

Se fizerem uma viagem com os olhos - não precisam mexer-se do sofá - verão à vossa volta pelo menos dezenas de coisas que não servem absolutamente de nada e nem sequer já para regalo da vista, como foi o caso daquele pote chinês que se comprou quase compulsivamente num dado dia, que se adorou durante uma semana ou um mês e que acabou por ser arquivado no nosso circuito de atenção.

Pois a sociedade de consumo é assim: as coisas são compradas (e não roubadas (!); a Renata aqui entra de férias neste texto) muitas vezes por impulso. A nossa necessidade natural de novidade, de ver ou fazer diferente, é excessivamente explorada pela nossa envolvência, seja ela comercial ou não.

Depois existe também uma tendência também quase natural para seguir e por vezes perseguir o outro: na minha infância por exemplo lembro-me bem que as coisas desejadas, mesmo de melhor qualidade, se enquadravam quase sempre no necessário: quer dizer, comprar uma mobília ou um colchão melhor, um sofá, uma televisão com um ecrã maior (naquele tempo - agora é com maior fidelidade de imagem), enfim...mesmo que já houvesse uma descolagem do reino do aperfeiçoamento do necessário ameaçando a descambada no supérfluo, ainda havia uma relação com a base que se foi depois afastando progressivamente. Agora andamos constantemente de avião, neste plano...

Perseguir o outro foi a fase seguinte à fase primitiva: começámos a desejar não só o que nos fazia falta como começámos também a desejar o que fazia falta aos outros (vizinhos, familiares, meros conhecidos e os meros desconhecidos que colocavam coisas nas montras - todas elas apetitosas diga-se).

Ficámos assim despojados dos valores reais, dos reais valores, com os quais ainda temos alguma ligação que muitas vezes falseamos oportunistamente: uma coisa não nos faz falta mas dentro das caves do nosso raciocínio encontramos presto para ela uma «utilidade». Esta estante ficava mesmo a matar ao lado da outra que temos naquela nossa cave onde só vamos duas vezes por ano para borrifar o insecticida.

Breve...temos, de uma forma geral, e descrita de forma exagerada como se requer, uma necessidade grande de «comprar», de ter novo ou diferente...
Ora, sem que isto se aplique senão de forma abstracta, porque razão não direccionamos nós esta forma de desejar para aquilo que mesmo sendo considerado por vezes supérfluo, faz de facto também falta, como a cultura (?) ...

Porque aceitamos (generalizo de novo) melhor um novo modelo de automóvel do que um filme bom? (que até sai bem mais barato...).

Bem, no fundo todos sabemos porquê: é mais fácil encontrar um plasma numa casa relativamente degradada do que uma estante de livros: um é um símbolo de poder o outro é um símbolo do saber e o saber já não se usa. Usa-se a esperteza e essa compra plasmas, carros ultimo modelo e tudo o resto.

Por isso (mas não só por isso) estamos como estamos um pouco por todos os lados deste nosso planeta. A esperteza no entanto é um «bem» de carreira curta, sempre o foi e os espertos nunca acreditaram nisso e ainda não acreditam.

Daniel Teixeira




quinta-feira, 21 de maio de 2015

Eu e fulana - Conto (Humor) de Daniel Teixeira


Eu e fulana

Conto (Humor) de Daniel Teixeira

Este título precisa de ser explicado porque podem aparecer várias opiniões sobre o facto dele ser como é, o título. Quando se diz fulana (ou fulano) embora nunca se consiga esconder o factor depreciativo, pode estar a querer dizer-se que se trata de alguém cujo nome não queremos, por razões diversas, escrever por explicado explícito.

Numa conversa de rua, por exemplo, e quando vão passando diversas pessoas nas proximidades, pode-se utilizar o termo (fulana ou fulano) para esconder a identidade da pessoa de quem se está a falar, porque não é conveniente que essa identidade seja declarada, mesmo que não se saiba se as pessoas que vão passando à nossa volta estão (pela notoriedade dela) ou estariam (pelo teor da conversa) sim ou não interessadas em saber do que ou de quem se está a falar.

O meu caso, e isto desde logo porque não interessa muito estar a consumir tempo e espaço, é diferente: escrevi fulana porque a mulher (senhora) tinha (e deve ter ainda) um nome horrível.

A mulher do Afonso Henriques chamava-se Urraca e, com todo o respeito patriótico que me é exigido, devo dizer que eu não casava com uma mulher com um nome destes: eu sei que o amor é cego e etc. mas desculpem-me todas as Urracas deste mundo mas comigo não contem...nem as Urracas nem aquelas cujo nome seja igual à que eu agora chamo de fulana. E mais uns quantos nomes, mas isso agora não vem ao caso...

Por mais depreciativo que possa parecer, o termo fulana está milhas acima do nome daquela mulher (senhora). E a coisa era assim, avançando eu na descrição da minha relação com fulana.

Vivíamos próximo, numa daquelas ruas com casas térreas quase todas iguais e eu de vez em quando era solicitado pela Dª Fulana (é melhor meter maiúscula!) para desenrascar coisinhas daquelas que levam meses a ser resolvidas por um sempre assoberbado profissional de qualquer métier relacionado com a domus, desde o parafuso na fechadura até ao candelabro do sec. XVIII.

A coisa ia bem, razoavelmente bem: as solicitações da Dª Fulana, que só era Dona porque era de boas famílias mas que em teoria deveria ser Menina, embora fossem frequentes, essas solicitações, atingiam uma regularidade mensal por mim considerada razoável: uma média de dois parafusos e uma lâmpada chama por mês ou uma de casquilho grosso ocasionalmente, mas factores exteriores ao nosso relacionamento semi-profissional (sou amador, eu) vieram conturbar uma relação que tendia a estender-se até às nossas respectivas covas (a dela primeiro que a minha segundo a lei das probabilidades).

A Dª Fulana arranjou um namorado, um espertalhão, na minha opinião, que tinha como fito declarado na cara sugar-lhe os tostanitos e metê-la daí a anos num Lar da Misericórdia se não optasse por dar à sola quando a coisa estivesse mais para lá do que para cá.

Ora, a minha intimidade com a Dª Fulana (cujo nome real eu era obrigado a dizer pelo menos uma vez quando batia à sua porta), era daquelas intimidades tipo paternais.

Embora eu fosse (e sou) bastante mais novo que ela eu era o pai dela nas questões que metiam parafusos, porcas, lâmpadas, tomadas, peras e nalguns cuidados especiais quando começaram a aparecer na casa dela as novas tecnologias como o micro-ondas, o DVD, a televisão por cabo, etc.

Ora, nestas coisas, como o seu namoro, eu não deveria nunca meter a colher, e não meti e esse terá sido o meu grande erro. Ora o homem era o que era e ela era maior e vacinada e pergunto a qualquer leitor imparcial se eu não procedi bem...é claro que procedi! O homem não tinha fusíveis, nem termóstato, nem comando electrónico porque razão eu me deveria meter!?

Por outro lado, e já disse isto acima, o amor é louco e etc. e ela sabia ou deveria saber bem as linhas com que se cosia. Ser solteirona não é certificado universitário de imbecilidade para ninguém...

Como já devem ter calculado, o gajo, por artes e engenhos vários, foi-lhe sacando aos bochechos o dinheirinho que ela tinha no banco e pirou-se em seis meses e isto ao ponto dela nem sequer ter disponibilidade para comprar as lâmpadas e os parafusos que eu continuava a substituir-lhe em casa.

O micro-ondas deu o bafo, a televisão por cabo foi-lhe cortada, e lá tivemos de regressar ao velho sistema da antena no telhado com acesso a 4 canais com os riscos que isso voltou a comportar para mim obrigando-me a constantes subidas e descidas ao telhado para acertar a imagem.

Quando a coisa começou a tornar-se incomportável para mim (ela já me devia seis lâmpadas - três chama e três de casquilho grosso - uma antena nova e o preenchimento de uma declaração de IRS com multa) eu tive de lhe dizer:"Ó Dª Fulana!!! O barco vai titanicando e a este ritmo não há Céline Dion que nos safe!!" fui então surpreendido pela surpreendente resposta.

"A culpa é sua!! Você sabia muito bem que o fulano (chamava-se Góis!) me ia levar à penúria e não me avisou de nada!!"

Daniel Teixeira



Fotos e memória - Conto (Humor) de Daniel Teixeira


Fotos e memória

Conto (Humor) de Daniel Teixeira

Tenho-me dedicado tanto quanto posso a pesquisas na net sobre fotografias e como devem calcular encontro um pouco de tudo e mais do que aquele todo imaginável pelo naïfe que eu sou. Mas, sem entrar em desbragadas análises sobre o quase inalisável o que mais me tem chamado a atenção é o facto de se encontrarem muito poucas fotos comuns sobre gente comum, na net.

Tenho visto algumas páginas pessoais, daquelas mesmo pessoais, com poucos centenas de visitas nos contadores, mas mesmo nestes casos tenho encontrado algum desejo de ser mostrado o incomum naquelas pessoas que deveriam mostrar-se gente comum por serem gente comum.

Os meus primeiros encontros com gente comum que não quer ser comum ou que se não quer assumir como comum, vulgo vulgar, sem diferença, orgulhosa de ser como é e não orgulhosa por ter sido incomum num dado momento da sua vida, foi quando pesquisei páginas pessoais com fotos e verifiquei que uma série razoável de gente tinha fotos das suas viagens, às Caraíbas, por exemplo, ou outros destinos exóticos.

Dependendo das nacionalidades o exótico é aquilo que se não encontra na terra onde vivemos: um português, por exemplo, tira fotografias de neve e montanhas, posa alegremente ao lado de um professor de sky, assenta os pés em dois palitos nos quais se vê que ele mal se consegue manter direito, e enterra firme e profundamente na neve dois tacos agarrados como enxadas e sorri, meu deus, como ele ou ela sorriem para a foto, para o fotógrafo, para a máquina mas sobretudo estão, dentro deles a pensar como irão fazer roer de inveja os amigos quando mostrarem as fotos sem sequer calcularem que eles se estarão borrifando para o facto de eles terem estado 24 horas vezes não sei quantos na Sierra Nevada ou mesmo nos Alpes.

A foto é alegre, a alegria é pessoal e o desejo de ferir o próximo (o vizinho teso ou com menos posses) é evidente. Nada está escondido na manga...

No caso de um Norueguês, por exemplo, o exótico é andar entre biquinis, toplesses, e abundância de carne exposta, ver e fotografar uns quantos marmanjos e marmanjas, estas com as mamas à mostra, de preferência, tirar a inevitável foto com uma bebida colorida num bar todo em madeira com os troncos "rústicos" à mostra e dar um chocho para o fotógrafo guardar no negativo.

Em qualquer dos olhares, português ou norueguês, ou de qualquer nacionalidade, o que se lê entre linhas, é a expressão da necessidade de mostrar ao próximo vizinho quanto felizes foram as férias, mesmo que se subentenda por vezes que a fominha passada fora das fotos foi enorme ou que mesmo os cartões de crédito levarão eternidades a ser saldados.

Gente comum não há, nunca há gente comum: quando um indivíduo, munido da sua indispensável máquina de chapear, vai ao Tibete, por exemplo, tem forçosamente de arranjar um monge, uma peregrinação, uma referência ainda que remota ao Lama do sítio, um mosteiro alcandorado nas montanhas, ou mesmo um animal daqueles que parecem camelos e se babam aos litros e quilos para a fotografia e para o fotógrafo.

O pobre e vulgar cidadão, com preocupações com o fisco ou mesmo sem possibilidades de ter essas preocupações não aparece senão quando calha em fundo de ecrã: e no entanto há tanta gente comum, tanta, tanta que são mesmo mais do que os Lamas, os professores de sky, ou as floridas havaianas.

Cheguei pois à conclusão que é impossível arranjar gente comum fotografada: gente mesmo comum. Uma simples velhinha a troco de muita insistência ou mesmo por biscate exibe o abundante relevo das rugas, esboça um sorriso talvez por gozo interior e mostra uma catrefa de dentes em falta ou simplesmente apodrecidos.

Não há, de facto gente comum senão aquela que é obrigada ou sente que é simpático mostrar o comum da sua vida ou vivência.

Uma mocinha, atingida a maior idade, não se importa absolutamente nada que a fotografem com os trajes da região (que ela vai buscar à arca a casa porque no dia a dia anda de mini saia) e com um pouco de insistência ou nenhuma mostra uma fatia da perna para decorar e dar mais interesse ao traje.

Os "profissionais" da "gente comum", esses, vão a África, arranjam pela agência uma festa tribal que pagam entre todos e batem fotografias de gente comum toda coloridamente besuntada com lama colada ao corpo, empunhando ameaçadoras lanças cuja ponta nem cortaria manteiga, e aparecem adornados com máscaras o mais mal feitas possível e alegadamente retalhadas directamente em troncos de árvore mas que alimentam a pequena indústria carpinteira local.

Mas, um dia, se Deus quiser, ainda verei na net fotos de gente mesmo comum.

Daniel Teixeira



O drama verde de Roberta - Conto (Humor) de Daniel Teixeira


O drama verde de Roberta

Conto (Humor) de Daniel Teixeira

Uma vez que me parece que gostam de histórias aqui vai uma que não é especialmente de Natal embora se passe também no Natal. O ano, como todos sabem, tem 365/366 dias, dentro dos quais está compreendido o período de Natal e esta história passa-se durante todos os ainda curtos anos de vida desta menina de que eu vos vou falar.

Exactamente quantos Natais se tinham passado na vida desta menina na altura em que me contaram a história não sei exactamente, mas, para jogar pelo seguro, vou escrever que se tinham passado à volta de dez anos (dá para menos e dá para mais nesta proximidade decadal).

Pois bem, a Roberta; um nome como outro qualquer mas com conotações especiais neste caso porque o seu pai se chamava Roberto o que faz pressupor ao mais imparcial observador e desde logo uma razoável dose de egocentrismo da parte do pai, tinha, a Roberta, filha do senhor Roberto e da senhora Maria das Dores ( aqui começo a ter a impressão que a escolha do nome Roberta como opção não foi de todo infeliz ) tinha, esta menina um problema familiarmente grave que se resumia - "resumia" para nós que não vivemos o problema - ao facto de ela não gostar de ervilhas.

Nada de grave (!!), dirão e com bastante razão porque não conhecem o resto da história. Na verdade existem milhares ou pelo menos centenas de substitutos para a ervilha e está provado que se pode viver perfeitamente sem comer ervilhas.

Mas os pais da Roberta gostavam de ervilhas e tinham a certeza de que a Roberta também gostava de ervilhas.

Ela, por simpatia e para não desgostar os ainda não muito velhos pais, nada dizia. O drama para a Roberta corria numa frequência considerada razoável numa família normal, arranjando ela as desculpas usuais para se escapar da mesa em dia de ervilhas.

Deveria ter dito que não gostava de ervilhas, é certo, mas quantos de nós não gostamos de uma dada coisa e, por delicadeza ou para não ferir sentimentos, e quando se trata de comida, somos até capazes dessa hipocrisia suprema que é dizer que essa coisa de que não gostamos (ou que odiamos mesmo ) e que somos obrigados a comer em casa de amigos "estava óptima" etc. etc. e que, para não dar muita pomada, afirmamos que com um bocadinho mais de noz moscada ainda ficava melhor?!

O cúmulo, que é o que algumas mulheres sobretudo, mas mulheres ou homens, sem coração, fazem, é segredar ainda a super hipócrita frase: " tens de me dar a receita!!" O ser humano é verdadeiramente esquisito, digo-vos eu, mas isso pode ser dito por qualquer um de nós e não implica qualquer esforço suplementar.

Pois bem, o rame rame sacrificial da Roberta foi cortado por um acontecimento inesperado por ela mas há muito desejado secretamente tanto pela sua mãe como pelo seu pai.

Houve, um dia, um saldo extraordinário numa grande cadeia de supermercados e os pais da Roberta resolveram atacar a arca congeladora preenchendo-a de sacos de quilo de ervilhas (congeladas como não podia deixar de ser ).

A Roberta assistiu ao transporte de cerca de 100 kilos de ervilhas do carro para a arca com um sorriso nos lábios ( era boa mocinha, a Roberta ), ajudou inclusivamente ao descarregamento e era ver as suas mãozinhas enternecidas, enrubescidas e enregeladas pelo contacto com o plástico trazerem os sacos e virem colocá-los alinhados dentro da arca.

Ao mesmo tempo um observador mais atento ( que neste caso foi o narrador da história ) poderia ver as lágrimas brotarem dos seus lindos olhos azuis e correr-lhe pela face.

Mas sem um sinal sequer de contrariedade ou de revolta. Amor de filho é assim. Ao deitar deu o usual beijo aos pais e eles nem se aperceberam que ela nessa noite se chegava mais a eles no abraço, e que ela lhes acarinhava docemente o cabelo, fazendo correr as suas mãozinhas pelos fios onde ia depositando grossos bagos de lágrimas.

E, sem dizer mais nada, durante a noite abandonou o lar.

Tinha então cerca de doze anos a Roberta e os pais nunca mais souberam nada dela. Nem um telefonema, nem uma carta, apesar da pobre e dolorida mãe quase sempre ir apanhar o carteiro na estrada tanta era a sua esperança...

A história é um pouco mais triste ainda porque o Roberto e a Dona Maria das Dores nunca mais entraram no quarto da Roberta e, carinhosamente ( como só os pais sabem fazer ), com os olhos vermelhos de tanto chorar todos os dias tanto tempo, serviam sempre um prato que colocavam no lugar que antes a Roberta ocupava na mesa.

Com alguma frequência eram ervilhas...

Daniel Teixeira