quinta-feira, 3 de julho de 2014

O cavalo preto - Conto de Daniel Teixeira

 
O cavalo preto - Conto de Daniel Teixeira
 
Ali, à minha frente, havia um cavalo preto que rodava. Depois veio um pequeno cão que ladrou correndo desde o portão todo verde escuro da casa amarela. E ali ficou ladrando, perto do cavalo preto. Indiferente, na sua majestade, pensei eu, ficou o cavalo. E eu pensando o que o cavalo não poderia pensar: o que representará para um cavalo um cão pequeno que ladra?
 
Nada, um pequeno cão ladrando a um cavalo não deve representar nada porque não há nada para ele lhe poder representar: o que interessa ao cavalo é a sua quase mecânica do pastar e aquele resfolgar reflexo que afasta o cão poucos metros cada vez que ele irrompe.
 
Era lustroso o pescoço do cavalo. O pescoço e o dorso e o cavalo todo brilhavam sob o sol já fraco do entardecer. E as suas crinas eram lindas. Pareciam ondas brilhando no claro escuro do vento derramando-se sobre o seu pescoço e a sua testa. Era um belo cavalo, sim senhor, era mesmo um belo cavalo.
 
Era ainda cedo para o cavalo, sei que era cedo, porque os cavalos que pastam recolhem-se ao por do sol e aquele era sempre recolhido ao por do sol. A rapariga vinha, punha um cabresto de corda no cavalo, arrancava a estaca, enrolava a corda à volta da estaca e saltava para o dorso do animal.
 
Mas era cedo para ela vir e talvez já não fosse assim tão cedo para mim. Quase todos os dias a via, calças azuis, botas de feltro, quadris bem modulados e uma blusa ligeira que me fazia adivinhar-lhe os bicos dos seios. De andar resoluto, compenetrada, nunca olhava para cima, para mim. E eu tanto olhava para ela.
 
Ali, atrás de mim e em nossa casa, a Cynthia esforçava-se para se despachar e o telemóvel não parava de ir tocando: uma, duas, três, cinco, dez vezes, talvez, ou mesmo mais. Íamos a um jantar de amigos, e cada um deles ou delas marcava o ponto telefonicamente. Acho que o faziam várias vezes, cada uma delas ou cada um deles.
 
Eu só ouvia a voz da Cynthia, por vezes abafada, por vezes nítida e o bater dos seus sapatos no soalho.
 
Tínhamos combinado, talvez juntássemos meia dúzia de casais, era o que estava previsto, mas há sempre quem falte e quem traga mais gente e por isso nunca se sabe. Depois haveria uma volta pelos bares, uma discoteca, talvez. Haveria como sempre quem bebesse muito, isso era certo. Acontecia sempre.
 
Cada vez que eu perguntava quanto tempo demorava ainda a Cynthia respondia que estava quase, mesmo quase, mas nunca estava quase. Havia eu a perguntar e o telemóvel a tocar, e o vestido a acertar, e a maquilhagem a compor e os sapatos a escolher. Mas de todas as vezes que eu lhe perguntei ela respondeu sempre que estava quase.
 
E o cavalo que estava preso por uma corda ao pescoço parecia estar desinteressado do cão, do cão pequeno e do seu ladrar e o objectivo dele, como sempre que eu o via, era ir além do círculo de pasto que a corda lhe permitia. A estaca no solo fazia o centro da sua circunferência permitida mas ele queria ir além, para além desse circulo permitido.
 
O cão também tinha um espaço limitado, ficava a cinco seis metros do cavalo. Mesmo que lhe ladrasse respeitava-o. Cada um cumpria a sua função: o cavalo pastava, o cão latia e a moça viria sempre buscar o cavalo ao por do sol. Eu também tinha a minha função: olhava simplesmente e não fazia nada... Esperava pela moça que vinha buscar o cavalo e pela Cynthia.
 
E o cavalo sempre a forçar a corda, a querer sair do círculo. Não vais sair daí, não, dir-lhe-ia se ele me entendesse. Mas talvez não lhe dissesse. Ele almejava o outro pasto que era igual ao que ele tinha no interior do circulo, tinha esse desejo. Porque iria eu dizer-lhe uma coisa que ele não iria entender mesmo que entendesse as minhas palavras?
 
A Cynthia saiu então para a varanda: estava pronta, íamos embora, íamos jantar com os amigos. Pelo caminho falaríamos de coisas que por vezes interessam e outras vezes não interessam.
 
E ao longe lá vinha a moça que cavalgava o cavalo preto. Era perto que ela morava. Ela e o cavalo. A blusa ligeira colava-se-lhe ao corpo com a brisa ligeira da tarde quase noite e ela sacudia a cabeça para ajeitar o cabelo.
 
Despachou-se demasiado cedo, a Cynthia.