quarta-feira, 12 de junho de 2013

Os 10 de Junho: Dias dos sonhos não cumpridos

 
Os 10 de Junho: Dias dos sonhos não cumpridos
 
Um sonho é um sonho, quer dizer, é mesmo um sonho, aquela coisa que nós pensamos e não pensamos enquanto dormimos e não dormimos. Um sonho é isso. Pelo sonho é que vamos desejando e pela realidade é que vamos sabendo que aquela realidade desejada foi toda ela só e apenas sonho e que nem sequer uma nesga, uma nesguinha, daquilo que se desejou enquanto se sonhava, daquele castelo que se construiu enquanto dormindo ou não pensámos, nem uma pedrinha desse desejado castelos temos na nossa mão ao acordar.
 
Triste, muito triste, é extremamente frustrante  o sonho não cumprido: funciona assim como o suplício de Tântalo; tanto sonhámos, tanto desejámos, tão perto estivemos e quando vamos agarrar numa pequenina parte desse nosso sonho ele desaparece, simplesmente, esvai-se como a água de Tântalo, ou regressa ao fundo da encosta como a pedra de Sísifo.
 
Claro que ninguém nos «manda» sonhar com impossíveis e normalmente apenas se sonha com coisas impossíveis, deseja-se aquilo que se não tem e nem se pode ter. A maior parte das vezes, pelo menos. Um sonho para valer como sonho pensa logo em grande, não se detém naquelas coisinhas que estão ao acesso ou próximas  do real, quer dizer, não se sonha com aquilo que se pode ter, mesmo hipoteticamente.
 
«O meu sonho sempre foi ter um carro destes!» pode o mais elementar «sonhador» afirmar como sendo um sonho cumprido, mas é claro que isso é uma auto-aldrabice- pública. O que ele sempre sonhou foi ter uma frota de carros de alta cilindrada, trocar de carro como quem troca de camisa, um para as primeiras horas da manhã e outro até ao meio dia e levar o resto do dia nesta giga joga. Quando se sonha sonha-se em grande ou sempre em «maior» do que os alegados sonhos cumpridos.
 
Claro que faz falta sonhar, desejar o impossível e obter aquela fatia de possível que o destino nos vai fornecendo a conta gotas. Ao fim de um tempo e se olharmos para trás, com olhos de ver, veremos que aquele sonho que tínhamos há vinte anos atrás afinal está completo, ou pelo menos em parte está a preencher-se...por vezes pena é que a esperança de vida não aumente até aos 500 anos para podermos assim reparar que aquele fatia de sonho que tivemos até aos cem anos está quase, quase a cumprir-se...falta só um niquinho.
 
Hoje e numa altura em que é bom recordar-se que falta cumprir-se Portugal, pelo menos desde que o Fernando Pessoa levantou essa constatação, será bom tentar-se pelo menos aferir um pouco daquilo que entendemos ser a ideia do Portugal cumprido, feito, acabado, realizado.
 
E meus amigos e leitores: é melhor nem entrarmos por essa via...deixemos correr as ideias, os sonhos, os desejos, a nossa incompletude a completar-se. Temos uma governação que não vale a ponta de um chavelho e acho que nunca tivemos uma capaz ao longo dos séculos.
 
Destino? Não acredito muito...mas aceito plenamente que o nosso destino tem uma forte componente religiosa: sumariamente contentamo-nos sempre descontentes com aquilo que vida nos dá.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Uma história inacreditável

 
Uma história inacreditável
 
Esta história foi-me contada por um amigo e eu tive e ainda hoje tenho alguma dificuldade em acreditar nela e até em mim mesmo naquele sentido em que hoje não sei se era de facto eu, um racionalzinho de cepa que estava ali a ouvir a história ou se era um outro eu, neste caso concreto um «eu» imbecilizado.
 
Como não aceito a segunda hipótese (a do «eu» imbecil) optei por, a partir daquela altura, me tornar mais cuidadoso sobre as histórias que ouço, chegando por vezes e nos casos mais duvidosos a pedir que me digam primeiro o final da história.
 
A conclusão a que cheguei é que por vezes a história contada pode paulatinamente possuir-nos e fazer de nós, ouvintes, aceitantes passivos do narrado e em certo sentido apanhar-nos e inserir-nos no campo do ficcionado fazendo-nos crer que tudo é real. Muito cuidado pois...e eu agora tenho-o, o cuidado, todo o cuidado
 
Não era ficção, esta história do meu amigo, assegurou-me ele desde o início e eu que nem um patinho acabei por ouvi-la toda e ouvir e ver em imaginação algumas coisas e por acreditar não só no que me era dito como no que via imaginando, coisas essas que era suposto eu não ouvir nem ver.
 
Bem, já fiz responsavelmente os meus avisos e se acha que não deve ler esta história do Vasconcelos não leia, nem sabe o que perde, mas enfim...Ele começou assim:
 
«Não devia ter disparado, pá, agora sei isso mas na altura pareceu-me que não fazia mal e até achei que teria alguma piada, eu, um pobre diabo humano, com pouco mais de oitenta quilos, fazer jus à minha condição de espécie superior e meter a correr a sete pés uma manada de búfalos.
 
Não sei exactamente quanto pesavam eles todos juntos, mas a uma média de quinhentos quilos cada um dava certamente uma quantidade de quilos assim a atirar para os milhões.
Era muito peso que eu ia movimentar, pá, os meus oitenta quilos iam por a mexer muitas toneladas e achei que saberia bem ao meu sedento ego mostrar um pouco da minha superioridade, ainda por cima nesta altura de crise, pá. Se bem que ajudado pela minha velha espingarda, vale sempre uns pontos, conta sempre nos cálculos da auto-estima, e depois a espingarda é uma coisinha de nada, pá, quase nem dá coice.
 
Faz um barulho do caraças,isso faz. Aliás como sabes eu não sou muito cuidadoso com essas coisas, com quase nada, como sabes, e nem sequer limpo aquilo com regularidade. Devia haver ferrugem por todo o lado, mas sabes que há uma série de gente que morre ao limpar as armas e eu sempre achei melhor não arriscar. Dou uns tirinhos para o ar de vez em quando e lá se vai a ferrugem, penso eu.
 
Bem, regressando aos búfalos é claro que os animais estavam na sua vidinha roendo a erva que lhes crescia mesmo à medida debaixo dos pés, assim tipo relva dos campos de futebol, verdinha, polpuda, suculenta mesmo. Agora que penso nisso acho que daquela erva até eu comeria de tão lavadinha que estava.
 
Tinha chovido na noite anterior e embora houvessem umas poças lamacentas espalhadas pela pradaria o ambiente geral era de erva limpa, ou seja, a erva boa, comestível, era a regra e as poças lamacentas a excepção.
 
Bem, como disse não devia ter disparado, não me devia ter armado em parvo porque com estas coisas do ambiente natural e com a vida animal não se brinca e por vezes, como desta vez, por detrás de uma pedra pode saltar uma cobra, e neste caso aqui podia saltar uma manada de búfalos chateados como aqueles parecem ter ficado.
 
Por isso, um conselho, se encontrares uma manada de búfalos, não te armes em esperto, passas nas calmas assobiando, porque se deres um tiro as coisas podem sair-te pela culatra.
 
Neste meu caso e quando vi a coisa mesmo mal parada, os gajos a avançar em direcção ao sítio donde tinha disparado o primeiro tiro tomei depois mais decisões estúpidas: repeti a dose uma vez, duas vezes, três vezes e quanto mais eu disparava para o ar mais os búfalos corriam em direcção a mim.
 
Vi que estava feito, não propriamente ao bife mas feito por toneladas de bifes. Os animais vinham numa velocidade doida, nunca pensei que os búfalos corressem tão depressa devo dizer e numa pradaria daquelas com uma extensão a perder de vista como se vê nos filmes americanos nem um calhauzinho havia para me proteger quanto mais um rochedo daqueles que obrigam as manadas a tornear o obstáculo.
 
Nada, não havia nada, nem tempo eu teria para correr mais de cinquenta metros. Estava mesmo arrumado eu e tudo por causa de uma estupidez seguida de mais algumas que não contei exactamente e que correspondiam aos restantes tiros que tinha disparado para o ar.
 
Gostava de ser mais preciso, sei que gostas das coisas bem alinhavadas, de histórias bem contadas, mas perdi-lhes a conta, perdi a conta aos tiros que disparei para o ar, mas podes escrever entre três e cinco, não foram mais,concerteza.» - E eu escrevi «entre três e cinco tiros, talvez...»
 
«Ia morrer de uma forma inglória, espezinhado por uma manada de búfalos e duvido que de mim sobrasse alguma coisa para meter na caixinha. Mas sobrou, sobrou tudo, incluindo a minha vidinha que eu tanto prezo, como já se deve ter entendido: estou aqui vivinho da silva a contar-te a história.
 
O que aconteceu foi simplesmente extraordinário e impensável mesmo. O búfalo chefe começou a travar para aí a uma centena de metros de mim, a manada foi-lhe seguindo o exemplo e para aí a cinquenta metros de mim foram estacando de facto.
 
Não sei se sabes mas aquilo é como um estouro de boiada, também como a gente vê nos filmes. Os gajos mandam-se em velocidade e não podem travar logo de estaca, têm de ir reduzindo a velocidade progressivamente senão são atropelados pelos que vêm atrás.
 
Por isso até talvez seja pouco para travarem mesmo, os tais cem primeiros e os cinquenta metros seguintes de que falei, mas francamente não estava mesmo em condições de fazer contas certas, ok?
 
Os gajos pararam, como te disse, e como deixei de ouvir o tropel ao perto deu para ouvir os urros de um urso que estava mesmo atrás de mim. Era um daqueles ursos cinzentos, para aí com dois andares de altura e duas portas de largura. A minha provisória alegria por ver os búfalos pararem foi mesmo provisória porque o urso urrava atrás de mim.
 
Não liguei mais aos búfalos, é claro, mas senti pelo ouvido que eles se afastavam. Só ficávamos eu e o urso. Pois bem o animal e aqui não vais acreditar que o azar do urso acabou por ser a minha sorte. Pelos vistos búfalos e ursos não se dão muito bem e para mais o urso estava ferido numa pata.
 
Tinha um bocado de tronco espetado na planta de um pé e quando olhei melhor vi que o animal tinha os olhos marejados de lágrimas e que o peito dele estava encharcado. Aquilo devia doer mesmo. Morto por morto achei por bem fazer uma boa acção, se tivesse possibilidade para isso, é claro, sempre contaria na sempre incerta corda bamba do céu ou do inferno.»
 
Aqui interrompi para lhe dizer que na Biblia há uma história assim mas é com um leão e ele respondeu-me logo que aquele era mesmo um urso e que ele sabia bem a diferença entre um urso e um leão. «Ok!» - disse eu para encerrar e ele continuou a sua saga.
 
«O animal acabou por se deixar cair de barriga para o ar, urrando de dores, e eu, sorrateiramente, agarrei com as duas mãos na ponta do bocado de tronco e num só golpe, trás, puxei aquela treta para fora. O gajo (era um urso, é claro, como já disse) deu um urro e desmaiou. Acho que estava desmaiado porque só respirava e nem se mexia.
 
Aproveitei para lhe borrifar a pata com um frasco de alcool que tinha na mochila e depois derramei para aí um meio litro de betadine na pata do animal.Tenho uma caixa de primeiros socorros completa, hã (!), com tesouras e pinças e tudo, para que saibas.
 
Como ele estava desmaiado ainda tive coragem para lhe enrolar a pata em ligaduras e quando ia pirar-me em grande velocidade não é que o animal acorda e diz claramente: «Se for preciso depois vou lá a casa mudar o penso...»
 
Foi a minha vez de cair para o lado. Desmaiei, mesmo, fiquei a zeros, e o resto nem sou eu que conto foi o que o meu vizinho me disse. Diz que me encontrou à porta de casa, cuidadosamente sentado e que lhe pareceu ter visto um urso andar por ali, um urso enorme com uma pata enrolada numa coisa branca, que parecia ser uma ligadura.
 
O que mais me lixou foi o meu vizinho dizer-me que o gajo que tinha feito uma ligadura tão mal feita ao pobre do animal merecia um bom par de lambadas...
 
Série humor inacreditável

Reflexão de Natal

 
Reflexão de Natal
 
Quando é Natal é altura de termos pena dos outros que têm menos que nós e aqueles que têm menos que nós têm pena dos outros que ainda têm menos que eles.
 
Mas há uma altura em que aqueles que não têm mesmo nada não podem ter pena de ninguém.
 
Esses têm que ter pena de si mesmos, porque ninguém mais resta de quem possam ter pena.
 
Acho que esses são os mais infelizes de todos: para além de não terem nada nem sequer podem ter o consolo de ter pena de alguém.
 
Usa-se então, para estes, o termo «dó». A dó é assim como que uma pena de nada, é a pena que têm os mais pobres entre os pobres, aqueles que não têm direito sequer a ter pena de alguém e que por isso usam o termo «dó» que é assim o final da escala.
 
Para além da «dó» não há mais nada e o dito infinito mundo acaba aí o que demonstra que o mundo afinal é finito e acaba na «dó» de si mesmo.
 
Daniel Teixeira
 
(Série reflexões no Natal)

Sobre o Capote de Nicolai Gogol

 
Sobre o Capote de Nicolai Gogol
 
Texto / análise de Daniel Teixeira
 
Este conto / novela de Nicolai Gogol é um dos trabalhos que eu considero mais importante para uma análise deste escritor russo. De notar que não é minha pretensão ver Gogol exclusivamente por esta lupa / texto.
 
O motivo, ou os motivos, o enredo ou os enredos da novela são, em certo sentido insignificantes, como insignificante é toda a história realçando-se o dom pela escrita do autor e o seu sentido de composição e também o seu esforço para conseguir transformar uma história quase banal, repleta de banalidades, no sentido literário do termo que não tanto no sentido humano, numa história que acaba afinal por ser bem conseguida e acaba por alcançar os seus objectivos.
 
Aos objectivos da história iremos indo em frente dedicando desde já esta parte do nosso texto a um pequeno resumo inventariador daquilo que nos interessa.
 
Compreende-se logo o interesse do escritor em retirar toda a relevância ao protagonista da novela, começando desde o início com o episódio da escolha do seu nome pela sua mãe perante as sugestões calendarizadas dos padrinhos:
«— Que castigo! — disse a senhora. — Que nomes! Nunca ouvi coisa assim. Varada ou Varukh, ainda enfim, mas Triphilyi e Varakhasiy, não!
Passaram para outra página e encontraram Pavsikakhiy e Vakhtisyi. — Agora percebo — disse a velha senhora, — que isto é o destino. E uma vez que assim é, o melhor será dar-lhe o nome do pai. O nome do pai era Akakiy, portanto que o filho se chame também Akakiy.»
 
Realcemos:
 
1- a expressão da mãe de Akakiy: «Agora percebo, que isto é o destino!»
 
2- a utilização por Gogol do termo «velha senhora» (talvez um erro de escrita) a uma mãe que acabava de dar à luz,
 
3- a ausência de outra referência ao pai senão o seu cargo, sabendo-se assim também na mesma altura que quando do nascimento de Akakiy ela era viúva.
 
Nada se refere sobre a sua infância ou juventude e vamos encontrá-lo já na sua posição de «funcionário de posto estanque e vitalício.»
 
Feita referência a uma ofertada possibilidade de promoção na carreira que ele não consegue e/ou não quer gerir, realça-se a importância quer do seu amor pela actividade de copista quer da sua caligrafia. Este detalhe é retomado por Gogol no final da novela ao referir a caligrafia do seu substituto:
 
«Foi assim que souberam da morte de Akakiy Akakievitch na repartição, e no dia seguinte já outro funcionário estava sentado no seu lugar, com uma caligrafia de modo nenhum tão direita, mas mais inclinada e oblíqua.».
 
Assim Gogol não quer deixar de dar ao protagonista uma posição profissional auto-fixada como copista (trabalho seguramente de responsabilidade mas ao mesmo tempo insignificante em termos de envolvimento empreendedor).
 
Akakiy é um funcionário de baixo escalão «por destino» e também pelo destino que cumpre escrupulosamente e bem. Em suma trata-se de uma pessoa sem ambições e provavelmente sem saber o que isso significa, o que nos leva ao posterior «Estrangeiro» de Albert Camus.
 
A sua vida é quase mecanizada. De reparar a propósito no detalhe do seu mealheiro:
«Akakiy Akakievitch tinha o hábito de pôr, por cada rublo que gastava, uma pequena quantia numa caixinha fechada à chave e com uma fenda no cimo para se meter o dinheiro. Ao fim de cada meio ano contava o monte das moedas de cobre e trocava-as por prata. Já fazia isto há muito tempo e no decurso dos anos, o montante ultrapassara já os quarenta rublos.»
 
De notar o preciosismo contrastante da periodização da contagem e troca das moedas de cobre (ao fim de cada meio ano) por moedas de prata e que Gogol não refere moedas de prata mas sim prata.
 
E tanto assim é, a cultura do mecanismo e do hábito que quando forçado a mudar as suas rotinas cortando nos gastos para obter o dinheiro referente ao pagamento do capote:
«Para dizer a verdade, foi-lhe um pouco difícil no princípio adaptar-se a estas privações; mas por fim acostumou-se a elas e tudo correu sem sobressaltos.»
 
Em certo sentido Gogol acaba por compensar o seu «anti-herói» depois de anunciar a morte deste e tanto mais relevante será o diferencial no seu papel depois de morto quanto menos relevante ele for em vida do mesmo, é o princípio que poderemos retirar desta composição depois de integralmente lida a mesma.
 
Assim esta redução / vulgarização da vida do protagonista terá já engatilhado o seu ressurgimento, o que poderia acontecer em vida, note-se, nesta fase ainda embrionária da novela, despoletada neste caso através de um acontecimento marcante.
 
Os delírios de Akakiy Akakievitch na fase final da sua vida, escandalizando a senhoria do seu quarto que sempre respeitara, seriam uma boa altura para construir um personagem «vivo», como que ressurgido das cinzas. De notar que Gogol ele mesmo cria essa possibilidade de ressurgimento ou regeneração do personagem como podemos ler aqui e veremos igualmente mais à frente:
 
«A partir de então, a sua existência pareceu ficar de certa maneira, mais cheia, como se fosse casado, ou como se vivesse nele um outro homem qualquer, como se de facto não estivesse só e um amigo simpático tivesse consentido em percorrer com ele o caminho da vida, não sendo este amigo nada mais nada menos do que o capote com grosso forro e tecido forte que não se gasta.»
 
A sua insignificância intrínseca, é pois quebrada pelo capote, as injustiças que ele sofre em vida, e que sente mesmo como tal, como injustiças, têm todas lugar depois do roubo do seu capote.
 
São dois aspectos importantes a meu ver que são de realçar no significado que é dado ao capote: de um lado é um suplício e depois um desafio a sua aquisição, depois uma razão para o fazer viver sofrendo as privações para arranjar dinheiro para o comprar e alegrando-se até com a perspectiva de o vir a ter.
 
«Até se habituou a passar fome à noite, mas arranjou uma compensação para isso tratando-se, digamos assim, espiritualmente, tendo sempre em mente a ideia do seu futuro capote. A partir de então, a sua existência pareceu ficar de certa maneira, mais cheia, como se fosse casado, ou como se vivesse nele um outro homem qualquer, como se de facto não estivesse só e um amigo simpático tivesse consentido em percorrer com ele o caminho da vida, não sendo este amigo nada mais nada menos do que o capote com grosso forro e tecido forte que não se gasta. Tornou-se mais vivo, e mesmo o seu carácter tornou-se mais firme, como o de uma pessoa que já tomou uma decisão e estabeleceu um objectivo para si próprio. Da cara e da postura desapareceram-lhe a dúvida e a indecisão, todos os vestígios de hesitação e inconstância. Os seus olhos cintilavam e por vezes passavam-lhe pela cabeça as ideias mais ousadas e mais temerárias; por que não uma gola de pele de marta?»
 
Em certo sentido o papel da sua «esperança quase religiosa» configura-se no objectivo capote e enriquece-se nele. Este aspecto faz desde logo antever algum acontecimento funesto ao dito capote e na minha modesta opinião Gogol deveria ter-se ficado pela morte de Akakiy e não ter-lhe dado a vida imaginada que lhe dá depois. O fantástico russo um pouco usual em demasia é realmente a meu ver demasiado aqui. Kafka ou mesmo Camus teriam ficado neste ponto, a meu ver.
 
Mas Gogol não ficou por aqui e proporciona ao seu protagonista uma vingança e uma função reestruturadora do sistema. Esta parte, talvez a menos importante do conto novela tem o seu apogeu após o acontecido com a «personagem importante» a quem ele recorreu para tentar reaver o capote e que alegadamente terá estado na origem ainda que indirecta do seu deperecimento e falecimento.
 
De notar que a lenda do «justiceiro ladrão fantasma» de capotes desaparece neste momento, em que o ajuste de contas é feito com essa personagem importante mas que continua apesar disso no imaginário popular donde aliás é originária. Este ajuste de contas afinal não é mais que uma reprimenda, assustadora como cabe a um fantasma, mas não mais que isso.
 
Ora falámos de banalidades, de coisas que a meu ver qualquer um pode escrever...mas não escreveu. Falámos de Nicolau Gogol e porque não dizê-lo de um minimalismo temático que coloca todo o acento na habilidade / génio do autor para se tornar interessante.
 
A forma da escrita, dialogante com o leitor é quase epistolar, as imprecisões propositadas sobre locais ou datas procuram envolver o leitor num imaginário seu, as descrições de lugares estão agregadas a pessoas, a maior parte das descrições refere-se a personagens que interagem com o protagonista e o detalhe procura precisamente essas personagens: na verdade embora o capote seja um fulcro da história não se compreende bem uma descrição tão detalhada do alfaiate, por exemplo.
 
Por duas vezes são referidos guardas com alabarda, em dois momentos de desorientação do protagonista, uma quando ele fica a saber que tem de comprar um capote e outra quando este lhe é roubado.
 
O rapé é uma constante com demasiada relevância a meu ver no narrado (faz inclusivamente com que uma vez o ou um fantasma ladrão de capotes não seja preso) o que nos pode levar neste último caso para o universo pessoal de Gogol.
 
Uma boa história com história a mais é como eu leio este conto novela.
 
Daniel Teixeira
 
Leia o Capote de Gogol aqui em Luis Varela Pinto.

O passeio

 
O passeio
 
As coisas estavam a correr bem, pelo menos era assim que eu pensava e tudo levava a crer que nada de mau poderia acontecer.
 
O Fernando ia à frente, fazendo de batedor, a seu gosto e com algum prazer apesar do potencial perigo. O resto do pessoal vinha todo em fila indiana atrás de mim e eu por meu lado tentava seguir os sinais das pisadas das botas grossas do Fernando.
 
Era um hábito dele, andar sempre de botas tipo tropa, quase, se descontarmos uns cordões de aperto coloridos e em fiapos que ele se recusava a trocar por outros novos sob argumento de que aqueles lhe davam sorte.
 
Mas não era por causa dos cordões das botas do Fernando e por causa da sua fé neles que eu achava que se tudo tinha corrido bem até ali, tudo correria bem dali para a frente.
 
No bar da vilória onde tínhamos estado antes dissemos que queríamos ir por aquele caminho para a casa que tinha sido da mãe da Ilda, recentemente falecida, e aí foi- nos dito que talvez não fosse boa ideia.
 
Um velhote com cara de patriarca destacou-se na cadeira de uma mesa e de voz um pouco pastosa disse-nos que os caçadores furtivos espalhavam ratoeiras para caça grossa em locais que só eles conheciam e que por vezes perdiam os traços das suas sinalizações pelo que havia ratoeiras perdidas espalhadas um pouco por todo o lado.
 
Chamou um indivíduo fardado, de chapéu com insígnias que apresentou como sendo o seu filho mais novo, guarda florestal, e disse que ele tinha deixado lá um pé, pois quando chegara ao hospital já nada havia a fazer senão acabar de cortar.
 
Como se pensasse que nós duvidávamos, e acertou, obrigou o moço, relativamente novo, a levantar a bainha esquerda das calças que mostrou então uma prótese, articulada um pouco acima do tornozelo.
 
Lamentámos o sucedido e agradecemos o aviso e dissemos que iríamos tomar cuidados. O velhote voltou-se então para a Ilda e disse-lhe:
 
«Você não se lembra de mim, mas eu era grande amigo do seu pai e da sua mãe. Eram boa gente, os dois, não desfazendo dos presentes. Você tem quase a mesma cara dela!»
 
Uma parte de nós, mesmo confrontados com a prótese, que podia resultar de um qualquer outro tipo de acidente também, e com as palavras simpáticas do velhote para com a Ilda, achámos que aquilo das ratoeiras podia ser uma das usuais conversas que eram abundantes em meios pequenos quando se tratava de tentar assustar o citadino.
 
Mesmo assim quando saímos e pelo sim pelo não o Fernando ofereceu-se logo para fazer de batedor.
 
Já tínhamos estado na casa que era agora da Ilda havia uma semana, mas nessa altura tínhamos ido pela estrada. Ficámos de tal forma entusiasmados com aquele quase palacete e pelo enorme terreno circundante, bordejado por um lago que acabámos por aproveitar a primeira oportunidade para nos juntarmos num pequeno grupo de seis amigos para passarmos lá uma parte das férias. Quase todos trabalhávamos ou estudávamos e eram mesmo férias.
Só a Ilda tinha acabado o curso e procurava emprego e o João não precisava de trabalhar mesmo: limitava-se a tocar guitarra dias inteiros e a ir ao banco buscar a mesada que o pai lhe dava.
 
Na vila onde tínhamos ouvido os tais maus augúrios tinha-mo-nos separado e a Helena tinha seguido com o jeep carregado de víveres. Ela tinha dificuldade em andar tanto tempo a pé porque era um pouco gordinha, um pouco ou muito, é tudo uma questão de perspectiva. Mas era uma alegria de moça e aceitara bem a ideia de ser ela a ir pela estrada.
 
Caminhávamos silenciosamente e o final daquele passeio que depois se foi transformando em provação estava cada vez mais ao alcance. Faltavam para aí uns dois ou três quilómetros, não mais, pelas minhas contas era isso.
 
Tínhamos de chegar antes do anoitecer e a tarde já ia avançada mas estava tudo certo em termos de cálculos.
 
Se anoitecesse antes de chegarmos ao nosso destino tínhamos mesmo de parar e fazer o resto do percurso no dia seguinte, ou arriscar-mo-nos a caminhar sem claridade o que era um grande transtorno para além de poder ser perigoso sobretudo depois da conversinha que tínhamos ouvido no Bar.
 
Tinha tudo sido calculado para dar certo e a nossa passada era bem cadenciada: sobretudo da parte das duas moças, a Ilda e a Cristina, ouviam-se umas reclamações do género «ainda falta muito?» ou «nunca mais chegamos!» e mais uns suspiros fundos, tudo coisas sem importância e que eram afinal esperadas.
 
O outro companheiro que seguia comigo atrás e eu não dávamos sinal de fraqueza e aproveitávamos os desabafos das miúdas para as encorajar embora se pudesse notar pelo nosso andar arrastado que nós também estávamos já a precisar de encorajamento.
 
O azar aconteceu um quilómetro ou dois depois da vila, quando já tínhamos entrado na mata mais fechada e quando estávamos para aí a quilómetro e meio do nosso destino... deparámo-nos com o «nosso batedor» Fernando encostado a uma árvore e fazendo-nos sinal para nos mantermos abaixados.
 
Segredando foi dizendo que tinha visto gente acampada lá mais à frente e que esse pessoal não lhe inspirava confiança nenhuma.
 
Eram seguramente caçadores furtivos, pelo que ele disse, eram três e bastante mal encarados e estavam numa de ficar por ali pois já tinham acendido uma fogueira e bebiam que nem uns desalmados. Por ele continuava tentando contorná-los, foi o que disse, mas tinha um sério receio de que fossemos descobertos.
 
Nós éramos da cidade, nunca ali tínhamos posto os pés e eles deviam conhecer a mata. Colocar as moças e a nós mesmos em perigo era o nosso grande receio e com caçadores furtivos era difícil adivinhar qual seria o comportamento deles e o mais provável era que não fosse um comportamento cordial.
 
A Ilda, uma mocinha pouco vivida, tremia como varas verdes e a Cristina sendo mais voluntariosa não deixava de mostrar um ar preocupado. O que fazer? Não tínhamos resposta, mesmo. Ficar ali a noite até que eles se fossem embora, deviam partir ainda de madrugada, era o que seria pensável e era a opção mais viável, mas tínhamos de nos afastar deles recuando um bom bocado.
 
Por outro lado tínhamos pouca roupa de cobertura e durante a noite devia fazer muito frio. Estivemos nisto alguns minutos, meia hora talvez, meia hora de indecisão. Colocámos a possibilidade de passar por eles, cumprimentá-los de longe e tudo correr bem, mas era uma possibilidade que achávamos cada vez mais remota.
 
As gargalhadas e os palavrões que vinham do lado dos caçadores foram-nos dando cada vez mais a convicção de que essa não seria uma boa opção.
 
Restava-nos recuar e passar a noite por ali, mesmo com o frio que iríamos passar era certamente a melhor solução.
 
Foi quando começámos a ouvir os tiros, cadenciados, um, dois, três e segundos depois um quarto. Ficámos paralisados, não sabíamos o que se passava, mas os disparos não pareciam ser de arma de caça, de cartuchos e chumbos ou zagalotes. Pareciam ser antes tiros de espingarda, de um rifle de bala normal.
 
Minutos depois lá foi o Fernando esgueirando-se tentando ver o que se passava logo um pouco mais à frente e voltou poucos minutos depois com o terror espelhado na face: «Estão todos mortos, os três. Dois estão voltados para cá e têm um buraco mesmo no centro da cabeça. Aquilo não foi entre eles, aquela guerra, foi alguém mais que anda por aí.»
 
A coisa estava a tornar-se mais complicada ainda e fora eu que tinha tido a ideia de fazermos aquela exploração por aquele lado da quinta da Ilda.Não sabíamos se devíamos voltar para trás ou seguir em frente.Já não sabíamos nada, estávamos todos aterrorizados.
 
Foi quando ouvimos uma voz ao longe dizendo: «Já podem passar, pessoal da cidade, eh pessoal da cidade, já podem passar!».
 
Embora as circunstâncias não estivessem de molde a fazer-nos seguir a sugestão sem pensar muito bem ficámos por ali um bom bocado até que ouvimos perto de nós o rastejar de calças a bater nas ervas e o som de botas.
 
A cerca de dez metros de nós, escondidos no matagal, vimos então um vulto entre as folhagens e as árvores que seguia de espingarda com mira telescópica ao ombro em direcção à Vila. ~
 
Não vi muito bem, nenhum de nós viu e todos vimos. Quem quer que fosse era uma pessoa que coxeava.

 

O casal hippie

 
O casal hippie
 
Quando da minha travessia por Espanha nos anos 60 apanhei boleia de um casal hippie que tinha tudo aquilo que normalmente se diz que os hippies tinham.
 
A moça era simpática, tinha uma cara mesmo linda, lourinha, mas via-se que o cabelo havia tempo que não via água o que me fez depressa adivinhar que o resto do corpo dela também não, embora aquele intenso perfume marroquino, o patchouli, no qual ela parecia ter-se banhado, afastasse qualquer onda de outro adivinhável mau cheiro.
 
Ele não lhe ficava atrás embora não me parecesse que usasse o tal perfume.Tinha cheiro a suor puro, intenso e devia ser gorduroso também, pois, de barba desgrenhada, o cabelo derramava-se sobre os seus ombros em pastéis de cabelo colado tal como a barba.
 
Os caracóis dele e uma fita vermelha a barrar-lhe a fronte disfarçavam um pouco o desarrumado pessoal composto ainda por um colete em imitação de cabedal com negruras gordorosas nas mangas, nos bolsos, no colarinho e sabe-se lá onde mais.
 
Tinham uma daquelas carrinhas volkswagen e na parte traseira, que foi onde ficámos os dois, eu e ela, havia um colchão preso por elásticos à parte lateral do furgoneta. Talvez por simpatia ela optou por vir fazer-me companhia na parte traseira, o que achei bem, mesmo que ela tivesse aproveitado a oportunidade para acender um charro e tentado partilhar com o condutor e comigo uma passa ou duas.
 
Eu não aceitei e simpaticamente disse quer era asmático e ainda tossi rouco um bocado para confirmar, mas para ela tudo bem, era verdadeiramente uma simpatia e resolveu fazer a parceria exclusivamente com o seu cara metade.
 
Fizemos cerca de duas horas de viagem juntos, o carro não era propriamente um fórmula 1 como se entende e acabámos por parar uns minutos enquanto eles entusiasmados tiravam fotos a uma enorme e solitária estátua de um pastor de ovelhas numa região perto de Vitória que teria esse seu símbolo.
 
Mais à frente à beira da estrada um indivíduo fardado fazia sinal para parar com a mão em palma o que assustou um pouco os meus companheiros ocasionais que começaram a murmurar «polícia, policia». Mas à medida que nos aproximávamos reparei que ela aí deitar qualquer coisa pela fresta da lateral porta de correr.
 
Eu já tinha achado estranho que a polícia, mesmo a espanhola e para mim estrangeira, não trabalhasse em patrulha dupla e à medida que nos aproximávamos vi que era um soldado, um tropa que teria vindo passar o fim de semana a casa e que aproveitava a farda para conseguir boleia através daquele interessante expediente.
 
Enquanto que eu e todo o usuário deste meio de deslocação metia o polegar à estrada, ele fazia o alto, tipo polícia mesmo e safava-se, pelos vistos. Ali safou-se...
 
Depois de eu ter dito que era «apenas» um soldado o «material» voltou ao lugar donde tinha saído, algures de entre as inúmeras saias que a jovem trazia vestidas e «acabámos» por dar boleia ao rapaz, que por acaso depois mostrou ser bastante humilde e de bom trato.
 
Largámo-lo nos arredores de Vitória, onde próximo deveria ser o seu quartel e foi depois dele se ter ido embora que eles me começaram a agradecer pela informação, que lhes tinha salvo o material que levavam e que seria difícil e dispendioso arranjar de novo.
 
Isto é uma pequena história, que tem um fundo moral, apesar de eu ter ajudado numa coisa que não é muito regular embora na altura fosse relativamente usual entre aquele pessoal.
 
O que me faz imaginar esta história é que aqueles dois ainda miúdos, de dezoito vinte anos no máximo, certamente fizeram como quase toda a gente daquela altura que eu conheci: tiraram um Curso Superior e transformaram-se ou em empresários ou quadros superiores de qualquer empresa.
 
De quase certeza um dia encontrarão num baú esquecido num sótão as tais fotografias da estátua do pastor de ovelhas, que depois largarão rindo muito alguns segundos porque estão com pressa. É fim de semana e têm de sair com os filhos e os netos.