domingo, 15 de dezembro de 2013

Explicação sobre a Elsa e eu - Conto de Daniel Teixeira

 
Explicação sobre a Elsa e eu - Conto de Daniel Teixeira
 
Depois de um muito longo período em que nada tenho escrito, em que não tenho escrito de facto, como estou a fazer aqui e como se costuma entender o que é escrever, hoje resolvi escrever-vos.

E hoje posso fazê-lo desta forma assim porque a Elsa vai estar fora uns dias. Ou talvez vá estar ausente para sempre. Na verdade eu nem sei para onde ela foi. Acho que ela me disse onde ia mas eu não me lembro bem.
 
Certo é que ela vai ficar fora pelo menos uns dias, a Elsa, isso eu sei porque ela arrumou as suas coisas numa mala e num saco e isso só se faz quando se está fora uns dias, pelo menos uns dias ou quando as pessoas se vão embora para sempre.

Talvez a Elsa tenha partido mesmo para sempre, mas como já disse isso eu não sei, e é para mim agora uma possibilidade como outra qualquer: ela ter partido por uns dias ou por semanas ou para sempre. Neste momento isso não é muito importante ou é pouco importante.

Talvez tenha ido ver a mãe ou tenha ido para casa da mãe, ela falou-me nisso há tempos, disse-me que talvez precisasse de um tempo para pensar sem eu estar por perto e que a casa da mãe dela era boa para isso, para ela pensar sem que eu estivesse perto.
 
Mas francamente não me lembro ao certo daquilo que ela me disse esta manhã logo cedo. Era mesmo muito cedo e talvez por ser muito cedo eu não tenha entendido porque estou acordado até muito tarde, escrevendo e não escrevendo, conforme vou explicar em seguida.
 
Escrevo não mostrando as letras e as palavras e não como agora estou a escrever escrevendo. E isto, o que estou agora a escrever e como estou a escrever a Elsa não vai nunca ler porque vou rasgar esta folha em mil bocados logo que acabe de vos dizer isto que estou a escrever agora. Vou-vos dar um tempo curto, talvez uma hora, talvez duas, não mais.
 
Talvez a Elsa não volte mesmo mas esta folha será na mesma rasgada em mil bocados porque eu já não me revejo nesta forma de escrita, mas dizer isto neste momento talvez não seja assim tão importante. O importante, o mais importante é aquilo que vos estou a dizer e que quero que leiam no tempo que vos dou.
 
Desde que a Elsa me disse aquilo deixei de escrever como sei que todas as outras pessoas escrevem. Mas sempre tenho escrito, quer dizer, tenho escrito não escrevendo no papel. E hoje resolvi ver desenhadas estas letras nesta pequena folha que vos mostro por ser esta a maneira, a única maneira que existe através da qual me podem ler.

Ora este texto é assim escrito por razões que não são fáceis de explicar e por razões que talvez eu mesmo não saiba ao certo. Talvez este texto exista assim porque eu sinta necessidade que me leiam ou talvez porque eu sinta necessidade de explicar às pessoas porque deixei de escrever de forma que elas pudessem ver e ler.

Isto mesmo que essas pessoas não se interessem por isso, não se interessem em saber estas minhas razões. Mas eu interesso-me, quer dizer, eu interesso-me em dizer isto que aqui vai escrito e que não sei se vai ser lido ou não. De qualquer forma fixo em duas horas o tempo de vida deste escrito.
 
Houve um tempo em que eu escrevia mesmo, e quando digo aqui «escrever» falo não só da forma como o estou a fazer agora mas também falo naquele sentido que eu considerava real, verdadeiro, genuíno, grande.
 
Para mim sempre foi grande, mesmo, lembro-me bem disso. Satisfazia-me, o que eu escrevia no papel, deixava-me satisfeito, muito contente, feliz. Era uma forma de escrever que sentia só ser conseguida se fosse mesmo escrita porque para mim não havia antes uma outra forma de escrever.
 
Agora há para mim uma outra forma de escrever que é escrever não escrevendo, uma forma que é diferente, uma forma em que o meu cérebro, a minha memória, guarda em si folhas preenchidas com letras que eu sinto mas não vejo.
 
Escrevo na minha cabeça, na minha mente e sinto-me agora e desde há um tempo sempre muito feliz também, quase como me sentia antes, quando escrevia escrevendo, mesmo não podendo agora ver exactamente aquilo que escrevo. Sinto-me, nessas alturas quase tão feliz como antes, foi o que eu disse, quase, e é verdade, mas não tanto como me sentia antes, há longo tempo.

Foi um tempo, esse, em que havia em mim quase que uma febre de escrever. Quando escrevia no papel, havia um aumento da minha tensão e agarrava o papel e o lápis e eu sorria muito, lembro-me bem, sorria e quase podia ver a minha cara toda ela sorrindo como se estivesse frente a um espelho.
 
E era, sim, um sorriso largo, era uma satisfação imensa, uma sensação de descoberta constante, permanente. A cada palavra eu descobria um fio de palavras e elas apareciam escritas como se nem fosse preciso eu pensar. Era uma coisa que agora não consigo explicar bem e que talvez não tenha mesmo forma de ser explicada nem escrevendo e não escrevendo nem desta forma que vos estou a mostrar agora.
 
Também desenhava, é verdade, eu também desenhava, não posso esquecer de dizer isso e sentia as palavras ou os traços escorrerem e construirem conteúdos e formas em que eu me revia revendo aquilo que fazia.

Hoje não sei se me revejo o tempo que julgaria necessário e suficiente naquilo que escrevo e naquilo que desenho. Acho mesmo que não, acho que o tempo em que mantenho na minha mente o escrito não escrito é curto, mas tudo isto é muito relativo também, tenho de convir, tenho de aceitar, porque escrever escrevendo também nem sempre permanece muito tempo.
 
Quer dizer as coisas escritas têm aquela perenidade material, ficam ali, estão como se costuma dizer impressas no papel para sempre só que de uma forma geral elas estão apenas ali e não são lidas, raramente eram lidas por mim de novo ou uma só vez que fosse por outras pessoas.
 
Por isso e em certo sentido estarem escritas ou não estarem escritas, desenhadas, acaba por ser a mesma coisa. E têm duas horas para me ler agora, não esqueçam.
 
Só que aí, neste caso e nos casos como este que eu escrevia, a gente sente o escrito como sendo duradouro, quase com o tempo de vida de um metal mesmo que saibamos que isso não é verdade. Nada que seja escrito dura assim tanto tempo e mesmo que durasse não serviria de nada porque ninguém lê. É mesmo  isso, um escrito é como uma rocha numa encosta, só existe enquanto olhamos para ela.
 
Nos meus escritos não escritos, antes de começar a escrever não escrevendo, não é como estou a fazer agora que estou a escrever encrevendo, sei desde logo que quase tudo aquilo que escrevo não escrevendo e aquilo que desenho não desenhando ficará depois perdido, e sei desde logo que tudo se vai perder por vezes aos poucos nas folhas da minha memória.
 
Mas sei isso desde logo porque sou eu e só eu quem intervém no processo, quer dizer, é o meu cérebro, é a minha memória, é a minha vontade que actuam. Faço o que quero e porque o quero.
 
Cheguei ao fim de longo tempo à conclusão que não vale a pena estar a escrever ou a desenhar, assim, dessa forma pensada ou mesmo desta forma em que as coisas ficam impressas, realmente desenhadas.
 
Contudo não consigo não o fazer, quer dizer, não consigo deixar de pensar que deito para fora de mim mesmo aquilo que penso, aquilo que idealizo, mesmo sabendo que tudo isso fique só para mim. E como já disse mesmo que eu o faça de uma forma ou outra vem tudo a resultar no mesmo, o escrito escrito e o escrito pensado.

Numa forma porque eu, com a minha vontade, os apago e noutra forma porque só eu os leio. E é isso, escrever de uma forma ou de outra acabam por ser iguais, acabam por ter o mesmo resultado. Um porque eu quero e o outro porque ninguém além de mim lê o que escrevo.
 
Acho que é melhor pensar assim, pensar que as coisas, essas coisas, essas palavras e essas imagens desaparecem para sempre. Por vezes também digo para mim mesmo que essas coisas nem sequer existiram, de facto.
 
Mas este escrito vai durar duas horas assim escrito, não mais como já disse, e tal como os escritos não escritos que eu apago este também depende da minha vontade. Vou deixá-lo existir por duas horas.
 
Lembro sempre, a cada dia, a cada minuto daquilo que a Elsa me disse. Ela disse-me que aquilo que eu escrevia só me ocupava o tempo e que aquilo que eu escrevia não tinha qualquer valor, era uma pura perda de tempo. E a Elsa disse-me também que eu devia deixar de escrever, para sempre, ela disse mesmo para sempre.
 
E eu disse-lhe que sim, lembro-me disso, disse-lhe sim das duas vezes em que ela me disse isso.
 
Eu gosto muito da Elsa e nunca quis perdê-la e ela dizia-me que assim a ia perder, quer dizer, que eu se não deixasse de escrever que eu a ia perder, que eu perderia a Elsa e por isso eu disse-lhe que sim, que podia deixar de escrever muito bem, com grande facilidade.

Por isso eu tenho escrito não escrevendo, quer dizer, escrevo na minha mente, na minha alma e tenho a Elsa comigo. Menos hoje, e talvez mais dias e talvez para sempre, não sei, mas certo é que vou continuar a escrever não escrevendo porque não posso deixar de o fazer.

Daniel Teixeira
 
 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A visita - Conto de Daniel Teixeira

 
A visita - Conto de Daniel Teixeira
 
O homem que eu procurava era muito magro, disse-me a Ana quando me indicou a casa dele, e parecia estar muito doente, acrescentou. Sim, devia estar, foi só o que disse à Ana mas a Helena quando me falou que eu devia ir visitá-lo tinha referido em voz muito baixa e comovida que ele devia estar muito doente, em final de vida, pensava ela.
 
Exilara-se para ali para estar em paz consigo mesmo e a sós consigo mesmo e quando ela lhe telefonara ele dissera-lhe que não queria que ela, a Helena, fosse lá a sua casa. Talvez não quisesse que a filha o visse assim, acho eu mas a mim recebeu-me bem quando lhe disse que ia a mandado da Helena. 
 
Talvez fosse por isso que eu via ali nele, perante mim, um alheamento, uma indiferença, um  olhar vago, um olhar que queria dizer que agora tanto se lhe dava que o visitassem ou não.
 
A Helena devia ter percebido que ele lhe tinha dito para não o visitar querendo que ela fosse lá vê-lo, porque é assim que as coisas se passam muitas vezes, ele não queria que ela o visse mas queria vê-la a ela, queria despedir-se dela, dizer-lhe adeus ou para sempre ou até um dia.
 
Depois foi pouco mais que um minuto o tempo que esteve comigo, nem sei ao certo mas foi tudo muito rápido.Talvez tivesse  muita coisa em que pensar, pensei eu, as pessoas quando estão a morrer vêm todo o seu passado e um passado com muitos anos tem de ser repensado em muito menos tempo. Só há aquele tempo que resta para repensar tudo, ou as coisas mais importantes, talvez seja só isso, só se deve pensar nas coisas mais importantes.
 
Eu não sabia quanto tempo ele teria de vida, nem a Helena sabia, acho que ninguém podia saber nem mesmo ele, o homem que ia morrer brevemente.
 
A vida quando acaba, acaba mesmo, pode levar algum tempo a acabar, minutos, horas ou mesmo dias, mas nunca dá tempo a que se saiba antes, nunca há tempo para que se saiba quando se entra no caminho sem regresso e quando se está no caminho sem regresso e quanto tempo leva a percorrer todo o caminho sem regresso.
 
Eu não sabia se o homem magro e doente queria viver mais, isso também não sabia, nem na curta conversa que tive com ele pude aperceber-me disso, não deu mesmo tempo, nem essas coisas se mostram logo ao primeiro encontro nem provavelmente numa sucessão de encontros e de conversas.
 
Querer ou não querer morrer é uma coisa que não se mostra, acho eu, é uma coisa íntima. E o homem que estava a morrer nem quis que eu o ajudasse se precisasse de alguma coisa, tal como eu lhe perguntei.
 
Respondeu-me que não precisava de nada e eu vi nos seus lábios quase desaparecidos um sorriso que talvez fosse de agradecimento pela minha lembrança mas era um sorriso triste, um sorriso que talvez quisesse dizer que uma ajuda minha por grande que fosse não ia resolver nada.
 
Acho que as pessoas pensam assim, por vezes, juntam as coisas e uma pequena ajuda que se oferece conta como a tal grande ajuda de fazer recomeçar a vida noutro ponto, de retomar o caminho dela anos ou meses atrás e isso é uma coisa que ninguém pode fazer.
 
Isto se ele gostava de viver, se ele queria viver mais, há pessoas que se cansam  de viver e podia muito bem ser o caso dele e isso eu não sabia, só ele o podia saber ou talvez nem ele soubesse ao certo o que queria.
 
Saí dali com intenção de voltar no dia seguinte, foi o homem muito magro e doente que me disse para fazer isso, para voltar no dia seguinte, logo de manhã, acrescentou, e disse-me que gostaria de falar comigo, acho que ele precisava mesmo de falar com alguém, foi o que eu pensei.
 
E no dia seguinte, logo pela manhã conforme ele dissera lá estava eu e ele, com a pele escurecida, sentado numa cadeira, morto. Estava morto e tinha um sorriso ligeiro na face.
 
Afinal ele queria mesmo morrer ou não queria morrer e morreu, assim, não sei como, nem procurei saber depois.
 
Afinal eu tinha ido visitá-lo e não cheguei a conhecê-lo, quase nada, ou nada mesmo. Não fiquei a saber se ele tinha falecido porque chegara a sua hora ou se tinha morrido porque quisera.
 
Não me dizia respeito, isso, e nem procurei perguntar ao médico como se tinham passado as coisas, porque morrer é mesmo uma coisa íntima, foi uma coisa que se passou só com ele e eu nada tinha a ver com isso.
 
Daniel Teixeira
 

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

A Renata e eu - Conto de Daniel Teixeira



 
A Renata e eu - Conto de Daniel Teixeira
 
Quando comecei a pensar falar com a Renata eu sabia muito bem que o tema seria delicado e que havia riscos que eu teria de correr, incluindo aquele que seria para mim mais desastroso que era o de perder a Renata.
 
Mas era muito importante para mim ter essa conversa com a Renata, posso mesmo dizer que sem passar essa fase, sem termos essa nossa conversa, a nossa relação, no meu entender, não seria límpida e entendia que sem ela, sem essa conversa, haveria sempre fantasmas a ensombrar a nossa relação.
 
Mas eu explico porque entendia assim, porque se colocava em mim a imperiosidade de ter essa conversa com a Renata e espero que entendam que ter essa conversa era assim como fazer a ultrapassagem de um fosso, era saltar de uma margem para outra sem pena e dentro de mim havia ainda a convicção plena que para me libertar do fantasma ainda presente da Françoise essa conversa com a Renata era quase tudo ou mesmo tudo o que faltava.
 
Havia sim o risco enorme, um risco demasiado grande, que eu sentia talvez não conseguir depois ultrapassar, que era perder também a Renata tal como tinha perdido a Françoise. Mas estava numa encruzilhada mental e tomar opções não é fácil em situações extremas, tal como era extrema aquela situação que vivia.
 
Como ideia inicial eu estava convencido, sabia mesmo que era assim, que algumas pessoas têm dificuldade em entender que a causa imediata de muitos traumas de que sofrem resultam, por vezes, de uma única causa: o convencimento de que se errou numa análise que se faz de uma dada pessoa ou de uma situação com ela relacionada quando esse erro era pelo menos semi
evidente.
 
Partindo daí e se se envereda por uma perpectiva lógica em seguimento do ainda não percebido erro de análise, há consequências que podem ser graves dependendo a sua gravidade da capacidade de encaixe psicológico daquela pessoa que sofre com o antes evitável erro de análise.
 
De facto, e isto é muito importante que se entenda, o erro é mesmo isso, um erro. Quando se erra sabe-se que se erra e quando não se sabe que se errou, quer dizer quando não se sabe que a «culpa» daquilo que acontece é do nosso erro de análise, tudo se passa como se nada fosse originalmente connosco, como se tivesse havido um acidente, uma coisa exterior a nós que tenha agido sobre nós, algo que não dominamos. Ora o erro pode dominar-se, quer dizer pode ser dominado e é essa a grande diferença entre o erro e a «intervenção» do acaso.
 
Quando a  pessoa erra e toma consciência de que podia ter passado sem errar, quer dizer, quando fica a saber que aquilo ou aquela coisa que lhe acontece, não é fruto do acaso, essa constatação da possibilidade do não erro é uma das causas importantes de um profundo desconforto psicológico, de estados pelo menos mediamente depressivos, de um martelar constante do arrependimento, de uma auto culpabilização que nem com o passar do tempo abranda, mesmo que esteja em nós cada vez menos presente. E é assim mesmo que as coisas se passam.
 
Quando comecei a tentar solidificar a relação com a Renata senti-me na obrigação de esclarecer desde logo aquilo que era o meu entendimento sobre as coisas que ela devia assim também saber, de mim, da minha vida em geral, da minha forma de ser e sobre aquilo que podia ou não esperar de mim e da nossa relação.
 
De um lado eu resguardava a potencialidade de erro de análise dela e esclarecia também a possibilidade de existência ou não existência de erro meu na análise do nosso iniciado relacionamento.
 
Ela, a Renata, sentou-se então no sofá e ouviu-me, tendo plena consciência de que aquilo que eu lhe ia dizer era de extrema importância.
 
A Renata tinha as pernas cruzadas quando começou a ouvir-me e eu vi perfeitamente as suas coxas libertas pela saia que subira ao sentar-se. E mais uma vez, entre tantas outras vezes que já pensara e lhe dissera a ela mesma disse então várias vezes para mim mesmo que havia muito mais que beleza nela.
 
Havia na Renata aquela sensualidade que os corpos despertam, que as posições desses corpos sugerem e havia ainda uma cada vez sempre mais forte emanação dela dentro de mim que não é racionalizável nem descritível. Não há palavras que consigam falar sobre aquilo que é de um outro reino, talvez do reino dos sentidos, acho eu, e não do reino da razão.
 
E estas coisas, as que resultam ou são manifestação do tal reino não racionalizável, vão tendo lugar espontaneamente, ou vão acontecendo porque vai despertando e crescendo em nós essa capacidade, não sei bem, e vemos as  coisas e as pessoas acima daquilo que elas expõem ou expressam. Vemos quase metafisicamente ou mesmo metafisicamente, acho eu.  
 
E eu disse então à Renata que há muitas pessoas que não entendem sobre as coisas, sobre dadas coisas e mesmo sobre todas as coisas, aquilo que nós entendemos sobre essas mesmas coisas e que eu estava ali para lhe dizer qual a minha linguagem, qual o meu pensamento, e estava ali para ouvir a sua linguagem e o seu pensamento. E foi assim mesmo que eu disse no começo.
 
E a Renata ouviu atentamente esta minha introdução, vi que os seus olhos estavam atentos, pareceram-me mesmo curiosos a notei nela alguma ansiedade para saber aquilo que se ia seguir. A Renata esboçou ainda um ligeiro sorriso de compreensão que me tranquilizou.
 
Na verdade eu sabia perfeitamente e já dei a entender alguma coisa sobre isto mais acima neste texto que grande parte da minha conversa com ela teria como ponto central a Françoise e que uma grande parte dessa minha conversa teria como vértice e referência a minha frustrada relação com a Françoise.
 
E isso não era bom, eu sabia, não era bom estar a tomar a Françoise como exemplo estando a dialogar com a Renata.
 
Mas depois de ver o seu olhar compreensivo e o seu sorriso eu disse-lhe que o meu relacionamento anterior com a Françoise tinha acabado de uma forma inesperada para mim, porque eu pensava que as coisas entre nós eram diferentes e demonstraram depois que o não eram.
 
E a Renata mexeu o corpo no sofá, estendendo os braços e colocando as mãos cruzadas atrás da cabeça. Quem a visse para além de mim diria que ela estava atenta e suspensa. E eu senti que sim, que era mesmo esse o estado dela: atenta e suspensa sobre aquilo que eu ia acrescentar e quando utilizei o nome da Françoise ela não me pareceu surpreendida nem desagradada e isso era muito bom, para mim era muito bom.
 
Disse à Renata que enquanto fui conhecendo a Françoise eu sempre pensei e que agora sabia que tinha pensado muito mal, que era possível haver um ponto de encontro entre os nossos dois pensamentos e que aquelas coisas que cada um de nós pensava diferente do outro sobre dadas coisas ou sobre todas as coisas tinha pelo menos uma plataforma onde tudo se cruzava, onde tudo se encontrava e onde tudo ficava claro para um e para o outro.
 
Nada mais errado, reconheço e disse isso mesmo à Renata. Não deveria ter partido desse pressuposto mas também sei que não serve de quase nada ter agora consciência desse meu erro passado. Mas não o queria repetir com a Renata e por isso estava ali a falar com ela e acrescentei que a Françoise era já uma recordação mesmo tendo passado pouco tempo sobre a sua partida, como passou, pouco tempo mesmo, talvez uma semana ou mesmo um pouco mais.
 
Na minha opinião, o problema maior neste emaranhado de entendimentos diferentes sobre as coisas estava no facto de eu e ela desconhecermos, ou de ser para nós dificil saber, onde se encontrava esse ponto de encontro e de clarificação, qual a sua qualidade, qual a sua espécie, qual a sua potencialidade.
 
A Renata manteve-se quase inexpressiva mas eu vi perfeitamente que ela seguia com atenção as minhas palavras.
 
Para mim, e agora que a Françoise já está longe, penso eu que ela tenha ido para longe, ou pelo menos eu não a vejo nos sítios que frequentávamos, o mal nas situações menos boas que vivemos não resultou do facto de termos opiniões diferentes mas sim de cada um de nós não encontrar nunca ou quase nunca aquele tal ponto de entendimento comum a um e outro. E foi isso que criou as tais situações menos boas entre nós, coisa que eu queria evitar que acontecesse com ela, com a Renata.
 
Conhecemo-nos, eu e a Françoise, numa altura em que cada um de nós vivia com companheiros diferentes e, por estranho que eu ache agora, ao fim de uns tempos curtos, menos de um mês pelo que me lembro, descobrimos em nós um ponto de entendimento, quer dizer, eu acho que lhe devo chamar isso, um ponto de entendimento, mas agora e depois do que sei e do que já disse acima acho que esse tal ponto de entendimento nunca existiu de facto, pelo menos naquele sentido de plenitude que eu agora julgo indispensável numa relação e na relação que queria manter com a Renata.
 
Para mim o que se passou foi simplesmente um cruzar de vontades que não tinham como conteúdo coisas palpáveis, quer dizer, coisas com substância. Falámos nisso há pouco tempo, antes dela partir, lembro-me bem, num dos tais momentos menos bons entre nós.
 
E a Françoise disse-me sumariamente que as nossas vidas se tinham juntado devido a um conjunto de circunstâncias e acrescentou logo que ela estava no tempo em que me conheceu em vias de deixar de viver com o João e que depois disso efectuado precisava muito de ter alguém e que talvez isso, esse facto, tenha pesado um pouco ou mesmo muito no futuro imediato da nossa relação.
 
E esse alguém, a pessoa que ela nessa conversa entendeu referir como tendo talvez pesado em demasia neste seu hiato relacional seria eu, como me pareceu então e agora claro. Mais nada. Em suma o que ela disse é que não tinha havido aquilo que eu pensava que tinha havido na altura entre nós, o tal ponto de entendimento que eu julgava ter havido logo no início da nossa
relação.
 
Fiquei surpreso, francamente surpreendido, asseguro, mas acho que a maior parte da minha estranheza se deveu ao facto de ter constatado que me tinha enganado, quer dizer, por ficar a saber, ali, preto no branco, como se diz, que eu mesmo tinha visto mal as coisas e que aquilo que eu tinha visto na Françoise nessa altura não era o mesmo que aquilo que a Françoise tinha visto em mim.
 
Fiquei com muita pena de mim, confesso. Não propriamente por ter visto partir a Françoise mas por achar que tinha visto as coisas mal e que não as tinha visto como ela as via mas antes como eu pensava que ela as via.
 
E foi esta a conversa que eu tive com a Renata, dizendo-lhe desta forma descritiva o que entendia ter-se passado com a Françoise e que não queria ver repetido com ela, situação esta que não queria voltar a viver. Não queria sentir de novo aquela horrível sensação de me ter enganado na minha análise das coisas.
 
Só isso, quer dizer, para mim o mais importante era não ter de sofrer de novo aquela sensação de ter errado na minha análise das coisas, porque foi uma sensação que me consumiu muito até ali. Vivi uma semana ou mais com um desgosto enorme, auto-culpabilizando-me, irritando-me comigo mesmo e posso garantir que não é nada bom estarmos muito tempo zangados connosco mesmos.
 
Não é nada bom, não senhor.
 
A Renata entendeu tudo o que eu disse e tudo o que eu pretendia: não queres sentir essa frustração, foi o que ela me disse enquanto se levantava do sofá. E confesso que naquele instante não fosse o olhar tranquilo e sorridente dela eu teria pensado que com a Renata tudo tinha acabado antes de começar mesmo.
 
Mas não foi isso que aconteceu...a Renata é muito paciente e gosta muito de mim, penso eu. À medida que o tempo vai passando vou-me convencendo cada vez mais que as coisas são claras entre nós embora este receio de estar errado na minha análise sobre a Renata, de me ter enganado, de ter errado de novo tal como errei com a Françoise me consuma cada vez mais um pouco cada dia que passa.
 
E esta dor, este medo, esta intranquilidade, é diferente mas é ainda mais forte do que aquela dor que tinha antes de ter tido aquela conversa com a Renata.
 
Daniel Teixeira

Nadine Gordimer e James Amado, convergências em duas obras.

 
Nadine Gordimer e James Amado, convergências em duas obras.
 
Análise de Daniel Teixeira
 
Estive a ler, recentemente, James Amado e Nadine Gordimer. Em primeiro lugar devo acrescentar que não conhecia nada sobre a obra de James Amado e que sobre Nadine Gordimer também pouco conhecia, embora a minha atenção sobre ela tenha sido despertada pelo Prémio Nobel da Literatura de recebeu em 1991.
 
Em segundo lugar, e ainda sobre James Amado, soube que faleceu por estes dias, o que lamento e me faz perguntar também porque razão eu, aqui em Portugal, não sabia nada sobre James Amado, embora a contra capa da edição da Europa América (1977) nos possa revelar alguma coisa sobre este escritor e sobre o romance ao qual só agora tive acesso.
 
Claro que o problema podia ser meu, posso não estar ao corrente mas dificilmente este argumento será suficiente porque mesmo no Brasil as referências a James Amado não são abundantes, se excluirmos a edição das Obras de Gregório de Matos que preparou e deu a conhecer ao público de língua portuguesa. A obra de James Amado a que tive acesso é «O Chamado do Mar», aquele que foi o seu primeiro romance.
 
Sobre Nadine Gordimer o volume que li é «O Conservador», que obteve em 1974 o Booker Prize (inglês) e em 1975 o prémio francês Grand Aigle D'Or.
 
Ora um e outro romance, de dois autores colocados geograficamente distantes  têm, na minha opinião muitos pontos de análise que lhes são comuns, daí ter-se despertado também em mim esta vontade de escrever sobre ambos de uma forma que não pretende funcionar (nem podia) como análise literária no sentido estilístico e valoração artística.
 
Sempre se pode dizer contudo que a escrita de Nadine Gordimer é mais escorreita, facto comparativo que pode também ser atribuído ao facto de no caso da autora se tratar de uma tradução (de fio a pavio - Ana Luísa Faria) enquanto que na obra de James Amado as expressões dialectais do Nordeste Brasileiro se mantêm em muitos casos intactas o que dificulta a leitura a um leitor do português europeu, dificuldade essa que está presente em muitas obras editadas no Brasil.
 
Sobre esta questão, da escrita original das expressões e particularidades regionais do Brasil não quero ir muito longe porque é um fenómeno para o qual ainda não encontrei resposta satisfatória. De um lado sou adepto da expressão da especificidade local mas ao mesmo tempo confronto-me com a dificuldade em entendê-la num contexto de leitura universalista.
 
Entrando então nos dois volumes em referência tanto no caso de James Amado como no caso de Nadine Gordimer as personagens principais, fulcro à volta das quais giram as histórias romanceadas, são dois fazendeiros, todos eles vindos de meios diferentes da actividade rural. Em James Amado, José Alves é um ex-vendedor, balconista e negociante e no caso de Gordimer, Mehring é um industrial/negociante de Aço.
 
Ambos adoptam, de forma diferenciada a actividade agrícola e cada um deles age por razões e formas bem diferenciadas. Alves dentro de um contexto de poder e violência típica dos famosos coronéis vai construindo um pequeno império e Mehring compra uma fazenda por razões de um lado sentimentais e por outro lado também relacionadas com o cansaço e a exigência da vida citadina e da sua vida profissional.
 
Enquanto que a mulher de José Alves é por ele reconhecida pelo trabalho desenvolvido em apoio do marido quando ele dele precisou , no caso de Mehring esta sua mulher, uma ex-mulher, aparece episodicamente em recordações e algumas acções indirectas que percorrem todo o romance.
 
Um e outro, Alves e Mehring estão desadaptados aos meios onde vivem, o primeiro talvez porque adquiriu ao longo dos anos uma rotina deambulatória da qual tem dificuldade em desligar-se, o segundo, primeiro por viver num país que sente não ser o seu (não pertence à maioria branca Böer) e por mostrar um comportamento desligado das realidades envolventes.
 
Em certo sentido, no caso de Mehring, encontramos um pouco de descrição Camusiana, onde não existem objectivos primários e no fundo se trata, conforme o título, de resistir passivamente o que equivale a conservar-se.
 
Alves luta, de forma suja muitas vezes, para manter e aumentar o seu poder, poder esse que estranhamente parece ser um objectivo essencial na sua vida quando já no seu declínio acaba por se desinteressar por ele.
 
Num caso e noutro ambas as personagens têm filhos, Mehring um e Alves três, estudantes semi ausentes e ausentes, respectivamente e cuja intervenção no romance é desligada no primeiro caso e quase nula no segundo. A presença desta progenitura nos dois romances serve bem para mostrar a descontinuidade das actividades e até das pessoas, ou seja, serve para nos dizer que num e noutro romance as vidas dos protagonistas e da sua forma de vida está no fio da navalha e que não existem perspectivas de continuidade geracional, tal como não existe princípio geracional. Assim, e em qualquer dos casos, mesmo noutros aspectos, não se retrata a sociologia das pessoas e dos ambientes envolventes mas sim casos específicos e particulares. 
 
Não tão extenso no espaço de vida de Mehring o romance de Gordimer deixa em aberto o que ainda restará, tudo apontando contudo para uma continuidade da duplicidade de actividades do protagonista, semelhante ao transporte da pedra de Sísifo.
 
Alves acaba por se evadir para uma vivência onde os espíritos e as visões sobrenaturais tomam lugar, numa forma de «morte» delicada, tão recorrente na literatura brasileira.
 
Os universos descritos, num caso e noutro, não são desenvolvidos em extensão: Alves tem um extenso território do qual só se vem a conhecer no romance a casa, um capataz, uma criada entregue pelos pais para ser cuidada, imagem típica de uma forma de servidão escravizante em uso na altura.
 
Mehring tem também um espaço de terreno que pelas descrições colaterais se entende ser de alguma monta mas apenas se fica a saber sobre a casa, uma mística parcela de plantação, uma ou duas vacas reprodutoras e um capataz, negro, neste caso.
 
São dois universos que acabam por se assemelhar mais pela força das descrições dos autores do que propriamente pelas linhas condutoras gerais, o que faz aconselhar a sua leitura para que seja absorvida a maior parte das semelhanças.
 
Assim, em dois locais distantes do mundo (Àfrica do Sul e apartheid e interior do Brasil e coronelato) se passam dois romances, cada um deles interessante à sua maneira, vivendo, se assim se pode dizer da arte dos dois escritores e da sua escrita.
Daniel Teixeira