domingo, 15 de dezembro de 2013

Explicação sobre a Elsa e eu - Conto de Daniel Teixeira

 
Explicação sobre a Elsa e eu - Conto de Daniel Teixeira
 
Depois de um muito longo período em que nada tenho escrito, em que não tenho escrito de facto, como estou a fazer aqui e como se costuma entender o que é escrever, hoje resolvi escrever-vos.

E hoje posso fazê-lo desta forma assim porque a Elsa vai estar fora uns dias. Ou talvez vá estar ausente para sempre. Na verdade eu nem sei para onde ela foi. Acho que ela me disse onde ia mas eu não me lembro bem.
 
Certo é que ela vai ficar fora pelo menos uns dias, a Elsa, isso eu sei porque ela arrumou as suas coisas numa mala e num saco e isso só se faz quando se está fora uns dias, pelo menos uns dias ou quando as pessoas se vão embora para sempre.

Talvez a Elsa tenha partido mesmo para sempre, mas como já disse isso eu não sei, e é para mim agora uma possibilidade como outra qualquer: ela ter partido por uns dias ou por semanas ou para sempre. Neste momento isso não é muito importante ou é pouco importante.

Talvez tenha ido ver a mãe ou tenha ido para casa da mãe, ela falou-me nisso há tempos, disse-me que talvez precisasse de um tempo para pensar sem eu estar por perto e que a casa da mãe dela era boa para isso, para ela pensar sem que eu estivesse perto.
 
Mas francamente não me lembro ao certo daquilo que ela me disse esta manhã logo cedo. Era mesmo muito cedo e talvez por ser muito cedo eu não tenha entendido porque estou acordado até muito tarde, escrevendo e não escrevendo, conforme vou explicar em seguida.
 
Escrevo não mostrando as letras e as palavras e não como agora estou a escrever escrevendo. E isto, o que estou agora a escrever e como estou a escrever a Elsa não vai nunca ler porque vou rasgar esta folha em mil bocados logo que acabe de vos dizer isto que estou a escrever agora. Vou-vos dar um tempo curto, talvez uma hora, talvez duas, não mais.
 
Talvez a Elsa não volte mesmo mas esta folha será na mesma rasgada em mil bocados porque eu já não me revejo nesta forma de escrita, mas dizer isto neste momento talvez não seja assim tão importante. O importante, o mais importante é aquilo que vos estou a dizer e que quero que leiam no tempo que vos dou.
 
Desde que a Elsa me disse aquilo deixei de escrever como sei que todas as outras pessoas escrevem. Mas sempre tenho escrito, quer dizer, tenho escrito não escrevendo no papel. E hoje resolvi ver desenhadas estas letras nesta pequena folha que vos mostro por ser esta a maneira, a única maneira que existe através da qual me podem ler.

Ora este texto é assim escrito por razões que não são fáceis de explicar e por razões que talvez eu mesmo não saiba ao certo. Talvez este texto exista assim porque eu sinta necessidade que me leiam ou talvez porque eu sinta necessidade de explicar às pessoas porque deixei de escrever de forma que elas pudessem ver e ler.

Isto mesmo que essas pessoas não se interessem por isso, não se interessem em saber estas minhas razões. Mas eu interesso-me, quer dizer, eu interesso-me em dizer isto que aqui vai escrito e que não sei se vai ser lido ou não. De qualquer forma fixo em duas horas o tempo de vida deste escrito.
 
Houve um tempo em que eu escrevia mesmo, e quando digo aqui «escrever» falo não só da forma como o estou a fazer agora mas também falo naquele sentido que eu considerava real, verdadeiro, genuíno, grande.
 
Para mim sempre foi grande, mesmo, lembro-me bem disso. Satisfazia-me, o que eu escrevia no papel, deixava-me satisfeito, muito contente, feliz. Era uma forma de escrever que sentia só ser conseguida se fosse mesmo escrita porque para mim não havia antes uma outra forma de escrever.
 
Agora há para mim uma outra forma de escrever que é escrever não escrevendo, uma forma que é diferente, uma forma em que o meu cérebro, a minha memória, guarda em si folhas preenchidas com letras que eu sinto mas não vejo.
 
Escrevo na minha cabeça, na minha mente e sinto-me agora e desde há um tempo sempre muito feliz também, quase como me sentia antes, quando escrevia escrevendo, mesmo não podendo agora ver exactamente aquilo que escrevo. Sinto-me, nessas alturas quase tão feliz como antes, foi o que eu disse, quase, e é verdade, mas não tanto como me sentia antes, há longo tempo.

Foi um tempo, esse, em que havia em mim quase que uma febre de escrever. Quando escrevia no papel, havia um aumento da minha tensão e agarrava o papel e o lápis e eu sorria muito, lembro-me bem, sorria e quase podia ver a minha cara toda ela sorrindo como se estivesse frente a um espelho.
 
E era, sim, um sorriso largo, era uma satisfação imensa, uma sensação de descoberta constante, permanente. A cada palavra eu descobria um fio de palavras e elas apareciam escritas como se nem fosse preciso eu pensar. Era uma coisa que agora não consigo explicar bem e que talvez não tenha mesmo forma de ser explicada nem escrevendo e não escrevendo nem desta forma que vos estou a mostrar agora.
 
Também desenhava, é verdade, eu também desenhava, não posso esquecer de dizer isso e sentia as palavras ou os traços escorrerem e construirem conteúdos e formas em que eu me revia revendo aquilo que fazia.

Hoje não sei se me revejo o tempo que julgaria necessário e suficiente naquilo que escrevo e naquilo que desenho. Acho mesmo que não, acho que o tempo em que mantenho na minha mente o escrito não escrito é curto, mas tudo isto é muito relativo também, tenho de convir, tenho de aceitar, porque escrever escrevendo também nem sempre permanece muito tempo.
 
Quer dizer as coisas escritas têm aquela perenidade material, ficam ali, estão como se costuma dizer impressas no papel para sempre só que de uma forma geral elas estão apenas ali e não são lidas, raramente eram lidas por mim de novo ou uma só vez que fosse por outras pessoas.
 
Por isso e em certo sentido estarem escritas ou não estarem escritas, desenhadas, acaba por ser a mesma coisa. E têm duas horas para me ler agora, não esqueçam.
 
Só que aí, neste caso e nos casos como este que eu escrevia, a gente sente o escrito como sendo duradouro, quase com o tempo de vida de um metal mesmo que saibamos que isso não é verdade. Nada que seja escrito dura assim tanto tempo e mesmo que durasse não serviria de nada porque ninguém lê. É mesmo  isso, um escrito é como uma rocha numa encosta, só existe enquanto olhamos para ela.
 
Nos meus escritos não escritos, antes de começar a escrever não escrevendo, não é como estou a fazer agora que estou a escrever encrevendo, sei desde logo que quase tudo aquilo que escrevo não escrevendo e aquilo que desenho não desenhando ficará depois perdido, e sei desde logo que tudo se vai perder por vezes aos poucos nas folhas da minha memória.
 
Mas sei isso desde logo porque sou eu e só eu quem intervém no processo, quer dizer, é o meu cérebro, é a minha memória, é a minha vontade que actuam. Faço o que quero e porque o quero.
 
Cheguei ao fim de longo tempo à conclusão que não vale a pena estar a escrever ou a desenhar, assim, dessa forma pensada ou mesmo desta forma em que as coisas ficam impressas, realmente desenhadas.
 
Contudo não consigo não o fazer, quer dizer, não consigo deixar de pensar que deito para fora de mim mesmo aquilo que penso, aquilo que idealizo, mesmo sabendo que tudo isso fique só para mim. E como já disse mesmo que eu o faça de uma forma ou outra vem tudo a resultar no mesmo, o escrito escrito e o escrito pensado.

Numa forma porque eu, com a minha vontade, os apago e noutra forma porque só eu os leio. E é isso, escrever de uma forma ou de outra acabam por ser iguais, acabam por ter o mesmo resultado. Um porque eu quero e o outro porque ninguém além de mim lê o que escrevo.
 
Acho que é melhor pensar assim, pensar que as coisas, essas coisas, essas palavras e essas imagens desaparecem para sempre. Por vezes também digo para mim mesmo que essas coisas nem sequer existiram, de facto.
 
Mas este escrito vai durar duas horas assim escrito, não mais como já disse, e tal como os escritos não escritos que eu apago este também depende da minha vontade. Vou deixá-lo existir por duas horas.
 
Lembro sempre, a cada dia, a cada minuto daquilo que a Elsa me disse. Ela disse-me que aquilo que eu escrevia só me ocupava o tempo e que aquilo que eu escrevia não tinha qualquer valor, era uma pura perda de tempo. E a Elsa disse-me também que eu devia deixar de escrever, para sempre, ela disse mesmo para sempre.
 
E eu disse-lhe que sim, lembro-me disso, disse-lhe sim das duas vezes em que ela me disse isso.
 
Eu gosto muito da Elsa e nunca quis perdê-la e ela dizia-me que assim a ia perder, quer dizer, que eu se não deixasse de escrever que eu a ia perder, que eu perderia a Elsa e por isso eu disse-lhe que sim, que podia deixar de escrever muito bem, com grande facilidade.

Por isso eu tenho escrito não escrevendo, quer dizer, escrevo na minha mente, na minha alma e tenho a Elsa comigo. Menos hoje, e talvez mais dias e talvez para sempre, não sei, mas certo é que vou continuar a escrever não escrevendo porque não posso deixar de o fazer.

Daniel Teixeira
 
 

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