terça-feira, 3 de dezembro de 2013

A Renata e eu - Conto de Daniel Teixeira



 
A Renata e eu - Conto de Daniel Teixeira
 
Quando comecei a pensar falar com a Renata eu sabia muito bem que o tema seria delicado e que havia riscos que eu teria de correr, incluindo aquele que seria para mim mais desastroso que era o de perder a Renata.
 
Mas era muito importante para mim ter essa conversa com a Renata, posso mesmo dizer que sem passar essa fase, sem termos essa nossa conversa, a nossa relação, no meu entender, não seria límpida e entendia que sem ela, sem essa conversa, haveria sempre fantasmas a ensombrar a nossa relação.
 
Mas eu explico porque entendia assim, porque se colocava em mim a imperiosidade de ter essa conversa com a Renata e espero que entendam que ter essa conversa era assim como fazer a ultrapassagem de um fosso, era saltar de uma margem para outra sem pena e dentro de mim havia ainda a convicção plena que para me libertar do fantasma ainda presente da Françoise essa conversa com a Renata era quase tudo ou mesmo tudo o que faltava.
 
Havia sim o risco enorme, um risco demasiado grande, que eu sentia talvez não conseguir depois ultrapassar, que era perder também a Renata tal como tinha perdido a Françoise. Mas estava numa encruzilhada mental e tomar opções não é fácil em situações extremas, tal como era extrema aquela situação que vivia.
 
Como ideia inicial eu estava convencido, sabia mesmo que era assim, que algumas pessoas têm dificuldade em entender que a causa imediata de muitos traumas de que sofrem resultam, por vezes, de uma única causa: o convencimento de que se errou numa análise que se faz de uma dada pessoa ou de uma situação com ela relacionada quando esse erro era pelo menos semi
evidente.
 
Partindo daí e se se envereda por uma perpectiva lógica em seguimento do ainda não percebido erro de análise, há consequências que podem ser graves dependendo a sua gravidade da capacidade de encaixe psicológico daquela pessoa que sofre com o antes evitável erro de análise.
 
De facto, e isto é muito importante que se entenda, o erro é mesmo isso, um erro. Quando se erra sabe-se que se erra e quando não se sabe que se errou, quer dizer quando não se sabe que a «culpa» daquilo que acontece é do nosso erro de análise, tudo se passa como se nada fosse originalmente connosco, como se tivesse havido um acidente, uma coisa exterior a nós que tenha agido sobre nós, algo que não dominamos. Ora o erro pode dominar-se, quer dizer pode ser dominado e é essa a grande diferença entre o erro e a «intervenção» do acaso.
 
Quando a  pessoa erra e toma consciência de que podia ter passado sem errar, quer dizer, quando fica a saber que aquilo ou aquela coisa que lhe acontece, não é fruto do acaso, essa constatação da possibilidade do não erro é uma das causas importantes de um profundo desconforto psicológico, de estados pelo menos mediamente depressivos, de um martelar constante do arrependimento, de uma auto culpabilização que nem com o passar do tempo abranda, mesmo que esteja em nós cada vez menos presente. E é assim mesmo que as coisas se passam.
 
Quando comecei a tentar solidificar a relação com a Renata senti-me na obrigação de esclarecer desde logo aquilo que era o meu entendimento sobre as coisas que ela devia assim também saber, de mim, da minha vida em geral, da minha forma de ser e sobre aquilo que podia ou não esperar de mim e da nossa relação.
 
De um lado eu resguardava a potencialidade de erro de análise dela e esclarecia também a possibilidade de existência ou não existência de erro meu na análise do nosso iniciado relacionamento.
 
Ela, a Renata, sentou-se então no sofá e ouviu-me, tendo plena consciência de que aquilo que eu lhe ia dizer era de extrema importância.
 
A Renata tinha as pernas cruzadas quando começou a ouvir-me e eu vi perfeitamente as suas coxas libertas pela saia que subira ao sentar-se. E mais uma vez, entre tantas outras vezes que já pensara e lhe dissera a ela mesma disse então várias vezes para mim mesmo que havia muito mais que beleza nela.
 
Havia na Renata aquela sensualidade que os corpos despertam, que as posições desses corpos sugerem e havia ainda uma cada vez sempre mais forte emanação dela dentro de mim que não é racionalizável nem descritível. Não há palavras que consigam falar sobre aquilo que é de um outro reino, talvez do reino dos sentidos, acho eu, e não do reino da razão.
 
E estas coisas, as que resultam ou são manifestação do tal reino não racionalizável, vão tendo lugar espontaneamente, ou vão acontecendo porque vai despertando e crescendo em nós essa capacidade, não sei bem, e vemos as  coisas e as pessoas acima daquilo que elas expõem ou expressam. Vemos quase metafisicamente ou mesmo metafisicamente, acho eu.  
 
E eu disse então à Renata que há muitas pessoas que não entendem sobre as coisas, sobre dadas coisas e mesmo sobre todas as coisas, aquilo que nós entendemos sobre essas mesmas coisas e que eu estava ali para lhe dizer qual a minha linguagem, qual o meu pensamento, e estava ali para ouvir a sua linguagem e o seu pensamento. E foi assim mesmo que eu disse no começo.
 
E a Renata ouviu atentamente esta minha introdução, vi que os seus olhos estavam atentos, pareceram-me mesmo curiosos a notei nela alguma ansiedade para saber aquilo que se ia seguir. A Renata esboçou ainda um ligeiro sorriso de compreensão que me tranquilizou.
 
Na verdade eu sabia perfeitamente e já dei a entender alguma coisa sobre isto mais acima neste texto que grande parte da minha conversa com ela teria como ponto central a Françoise e que uma grande parte dessa minha conversa teria como vértice e referência a minha frustrada relação com a Françoise.
 
E isso não era bom, eu sabia, não era bom estar a tomar a Françoise como exemplo estando a dialogar com a Renata.
 
Mas depois de ver o seu olhar compreensivo e o seu sorriso eu disse-lhe que o meu relacionamento anterior com a Françoise tinha acabado de uma forma inesperada para mim, porque eu pensava que as coisas entre nós eram diferentes e demonstraram depois que o não eram.
 
E a Renata mexeu o corpo no sofá, estendendo os braços e colocando as mãos cruzadas atrás da cabeça. Quem a visse para além de mim diria que ela estava atenta e suspensa. E eu senti que sim, que era mesmo esse o estado dela: atenta e suspensa sobre aquilo que eu ia acrescentar e quando utilizei o nome da Françoise ela não me pareceu surpreendida nem desagradada e isso era muito bom, para mim era muito bom.
 
Disse à Renata que enquanto fui conhecendo a Françoise eu sempre pensei e que agora sabia que tinha pensado muito mal, que era possível haver um ponto de encontro entre os nossos dois pensamentos e que aquelas coisas que cada um de nós pensava diferente do outro sobre dadas coisas ou sobre todas as coisas tinha pelo menos uma plataforma onde tudo se cruzava, onde tudo se encontrava e onde tudo ficava claro para um e para o outro.
 
Nada mais errado, reconheço e disse isso mesmo à Renata. Não deveria ter partido desse pressuposto mas também sei que não serve de quase nada ter agora consciência desse meu erro passado. Mas não o queria repetir com a Renata e por isso estava ali a falar com ela e acrescentei que a Françoise era já uma recordação mesmo tendo passado pouco tempo sobre a sua partida, como passou, pouco tempo mesmo, talvez uma semana ou mesmo um pouco mais.
 
Na minha opinião, o problema maior neste emaranhado de entendimentos diferentes sobre as coisas estava no facto de eu e ela desconhecermos, ou de ser para nós dificil saber, onde se encontrava esse ponto de encontro e de clarificação, qual a sua qualidade, qual a sua espécie, qual a sua potencialidade.
 
A Renata manteve-se quase inexpressiva mas eu vi perfeitamente que ela seguia com atenção as minhas palavras.
 
Para mim, e agora que a Françoise já está longe, penso eu que ela tenha ido para longe, ou pelo menos eu não a vejo nos sítios que frequentávamos, o mal nas situações menos boas que vivemos não resultou do facto de termos opiniões diferentes mas sim de cada um de nós não encontrar nunca ou quase nunca aquele tal ponto de entendimento comum a um e outro. E foi isso que criou as tais situações menos boas entre nós, coisa que eu queria evitar que acontecesse com ela, com a Renata.
 
Conhecemo-nos, eu e a Françoise, numa altura em que cada um de nós vivia com companheiros diferentes e, por estranho que eu ache agora, ao fim de uns tempos curtos, menos de um mês pelo que me lembro, descobrimos em nós um ponto de entendimento, quer dizer, eu acho que lhe devo chamar isso, um ponto de entendimento, mas agora e depois do que sei e do que já disse acima acho que esse tal ponto de entendimento nunca existiu de facto, pelo menos naquele sentido de plenitude que eu agora julgo indispensável numa relação e na relação que queria manter com a Renata.
 
Para mim o que se passou foi simplesmente um cruzar de vontades que não tinham como conteúdo coisas palpáveis, quer dizer, coisas com substância. Falámos nisso há pouco tempo, antes dela partir, lembro-me bem, num dos tais momentos menos bons entre nós.
 
E a Françoise disse-me sumariamente que as nossas vidas se tinham juntado devido a um conjunto de circunstâncias e acrescentou logo que ela estava no tempo em que me conheceu em vias de deixar de viver com o João e que depois disso efectuado precisava muito de ter alguém e que talvez isso, esse facto, tenha pesado um pouco ou mesmo muito no futuro imediato da nossa relação.
 
E esse alguém, a pessoa que ela nessa conversa entendeu referir como tendo talvez pesado em demasia neste seu hiato relacional seria eu, como me pareceu então e agora claro. Mais nada. Em suma o que ela disse é que não tinha havido aquilo que eu pensava que tinha havido na altura entre nós, o tal ponto de entendimento que eu julgava ter havido logo no início da nossa
relação.
 
Fiquei surpreso, francamente surpreendido, asseguro, mas acho que a maior parte da minha estranheza se deveu ao facto de ter constatado que me tinha enganado, quer dizer, por ficar a saber, ali, preto no branco, como se diz, que eu mesmo tinha visto mal as coisas e que aquilo que eu tinha visto na Françoise nessa altura não era o mesmo que aquilo que a Françoise tinha visto em mim.
 
Fiquei com muita pena de mim, confesso. Não propriamente por ter visto partir a Françoise mas por achar que tinha visto as coisas mal e que não as tinha visto como ela as via mas antes como eu pensava que ela as via.
 
E foi esta a conversa que eu tive com a Renata, dizendo-lhe desta forma descritiva o que entendia ter-se passado com a Françoise e que não queria ver repetido com ela, situação esta que não queria voltar a viver. Não queria sentir de novo aquela horrível sensação de me ter enganado na minha análise das coisas.
 
Só isso, quer dizer, para mim o mais importante era não ter de sofrer de novo aquela sensação de ter errado na minha análise das coisas, porque foi uma sensação que me consumiu muito até ali. Vivi uma semana ou mais com um desgosto enorme, auto-culpabilizando-me, irritando-me comigo mesmo e posso garantir que não é nada bom estarmos muito tempo zangados connosco mesmos.
 
Não é nada bom, não senhor.
 
A Renata entendeu tudo o que eu disse e tudo o que eu pretendia: não queres sentir essa frustração, foi o que ela me disse enquanto se levantava do sofá. E confesso que naquele instante não fosse o olhar tranquilo e sorridente dela eu teria pensado que com a Renata tudo tinha acabado antes de começar mesmo.
 
Mas não foi isso que aconteceu...a Renata é muito paciente e gosta muito de mim, penso eu. À medida que o tempo vai passando vou-me convencendo cada vez mais que as coisas são claras entre nós embora este receio de estar errado na minha análise sobre a Renata, de me ter enganado, de ter errado de novo tal como errei com a Françoise me consuma cada vez mais um pouco cada dia que passa.
 
E esta dor, este medo, esta intranquilidade, é diferente mas é ainda mais forte do que aquela dor que tinha antes de ter tido aquela conversa com a Renata.
 
Daniel Teixeira

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