segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Aconteceu - Conto de Daniel Teixeira



Aconteceu

Conto de Daniel Teixeira

Foi assim que as coisas aconteceram ou então é assim que eu me lembro delas e isso pode não ser a mesma coisa, é certo, mas vou contar como eu me lembro porque acho que nunca estarei longe daquilo que de facto aconteceu.

Foi há muito tempo já, há mais de trinta anos, já nem sei exactamente quantos porque o tempo das lembranças não tem a mesma forma de ser medido que o tempo da realidade. Não sendo coisas totalmente diferentes é certo e toda a gente sabe que recordação não é bem a mesma coisa que a realidade, que não têm a mesma idade e que é muito raro, mesmo muito raro que a recordação e a realidade passada coincidam , que isso é pouco possível por mais que nos esforcemos como eu faço agora.

Eu era jovem, isso é certo, e ainda por cima pensava que era possível ser-se jovem e ter ideias revolucionárias e na altura estava convencido que as coisas iam mesmo mudar, todos os dias pensava nisso e várias vezes pensava nisso e foi nesse tempo que o homem entrou no café, era um café de gente fina, lembro-me bem que tinha um espaço onde a gente, gente que não era fina, não devia ir ou não devia sentar-se.

As mesas não estavam reservadas mas era costume as pessoas que não eram finas não se sentarem naquele espaço, que era um espaço grande que estava por vezes quase vazio mas que também estava por vezes quase cheio e naquele dia estava bem cheio, aquele espaço.

O homem era um homem do campo, ainda trazia as botas enlameadas que tratou de fazer bater no chão em calçada lá fora mas a lama não saiu toda e o homem foi por ali fora e falou com o empregado de mesa e disse-lhe que queria falar com o doutor, que era médico, porque a sua mulher estava muito mal e ela precisava do médico.

Ele era gordo, o médico, bem gordo e acho que ele estava a jogar às cartas com os amigos e depois de um bom bocado acabou por se levantar e vir ter com o homem que tinha as botas sujas e o chapéu na mão.

A mulher estava muito mal, dizia ele, doía-lhe muito a barriga e o corpo todo e ele precisava que o senhor doutor a fosse ver, receitar-lhe qualquer coisa ou trazê-la para o hospital e o médico disse-lhe: eu conheço-te, tu moras lá no cerro e eu não vou lá, os caminhos não prestam e a última vez que lá fui, para aqueles lados, amolguei o carro todo, à frente e nos lados, gastei uma remessa de dinheiro para o arranjar, não vou lá não, tens de trazer a mulher aqui.

Mas ela não pode doutor, disse o homem do chapéu na mão, ela nem se consegue mexer e vir com ela, na mula, eu não consigo nem ela consegue cá chegar e o médico disse outra vez que não estava para estragar o carro e que o mais certo era ser alguma coisa que ela tivesse comido que lhe tivesse feito mal e ela que se deitasse e tomasse chá, que dormisse e se amanhã ela não estivesse melhor então ele que trouxesse duas mulas que ele ia numa delas mas que o carro não levava até àqueles caminhos e isso nem pensar.

Mas o homem das botas sujas não arredou pé, continuou a pedir ao médico que fosse e disse-lhe que só tinha uma mula mas o médico que fosse nela que ele ia a pé. Depois acrescentou baixinho que ela, a sua mulher, deitava sangue da barriga e que o sangue era muito e que ele tinha de ir vê-la, pelo amor de Deus, acrescentou o homem das botas sujas e do chapéu na mão.

Já sei o que se passa, meu grande burro, disse-lhe o médico em voz alta e todos ouviram os amigos dele que estavam a jogar cartas e as outras pessoas que estavam sentadas às mesas da parte fina do café e também as que estavam da outra parte do café.

E disse ainda o médico gordo, que sabia bem que ela se tinha metido com a velha Ermelinda para fazer um desmancho e que ela tinha dado cabo de tudo e que ele não ia estragar o carro por causa da burrice deles, que a velha Ermelinda merecia ser presa e eles também porque isso não se faz, os desmanchos, e ainda menos por quem não percebe nada do assunto como era o caso da velha Ermelinda.

E eu que não conhecia a velha Ermelinda nem sabia o que se passava, não sabia que àquela coisa se chamava um desmancho, pensei que ele, o médico, ia receitar qualquer coisa para o homem ir comprar à farmácia mas ele disse que tinha de ir lá mas que não ia estragar o carro, ia na mula e dizia que ela tinha de andar depressa senão não havia nada a fazer e a mulher dele morria e foi quando o homem do campo começou a chorar e a pedir ainda mais vezes que o senhor doutor fosse lá por amor de Deus e chorava muito o homem.

Anda daí meu grande burro, disse então o médico, um homem não chora, era só o que me faltava estar agora a aturar as tuas lágrimas e depois disse-lhe ainda que ele deixasse a mula guardada por ali e que iam os dois no carro dele e que ele ia estragar o carro todo, ia ficar com o carro cheio de amolgadelas e que as suspensões iam ficar uma merda e que ele era um burro por deixar a mulher meter-se naqueles trabalhos, e que mesmo que ele já tivesse cinco filhos isso não era razão nenhuma porque panela onde comem cinco comem seis e foram andando depois dele dizer um já volto para os amigos que jogavam cartas.

O médico só voltou muitas horas depois, já eu tinha jantado e tinha voltado ao café para ver se sabia alguma coisa quando ele entrou queixando-se de que tinha estragado o carro todo, que ia ter de gastar uma pipa de massa para o por em condições e os amigos foram ver o carro e eu e os outros fomos todos ver o carro que estava coberto de lama até às portas e tinha amolgadelas à frente e de lado e ele então carregou no tejadilho para que ouvissem as suspensões que rangiam como tudo e disse estão a ver a merda de profissão que eu arranjei e ninguém quis saber da mulher que ele tinha ido tratar e eu fiquei a pensar se ela teria morrido ou não, e só soube no outro dia, que ela não morreu quando o homem veio buscar a mula que tinha ficado abrigada num telheiro ao pé do café e ele disse para quem estava por ali que o senhor doutor às vezes é de mau trato mas que é muito bom homem, muito boa pessoa.





segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Conto baixinho - Daniel Teixeira


Conto baixinho

Eu já estou emigrado há longo tempo e embora não esteja muito longe do meu local de nascimento, do meu país, da minha pátria, nunca mais aqui pus os pés.

Não interpretem isto como sendo uma forma de desapego injurioso para com as minhas raízes, ou como uma manifestação de peneirice motivada por alguma ideia de superioridade entre a minha vida presente e o meu passado porque na verdade lá onde vivo as coisas não me correm bem, passo mesmo alguma fome sobretudo no refeitório da fábrica onde trabalho que desde há anos aderiu à ementa quase gourmet e aos fins de mês é um verdadeiro suplício pagar as poucas contas que tenho.

Durmo perto de uma linha de comboios que trabalha 24 horas por dia praticamente fazendo passar um comboio por minuto e no emprego, para além da escassez dos alimentos de que já falei sou tratado como um cão, ou talvez a imagem não esteja certa porque os cães em princípio não têm de fazer centenas de peças por dia e algumas delas são autênticas ofensas para o que resta do meu ego memorial pessoal.

No meu dia a dia estou simplesmente farto de fazer tampas de campainhas para bicicletas, puxadores para caixões e juntar com solda as duas metades das garrafas de camping gás, eu que até não sou adepto do campismo, eu que tinha em bom recato a imagem das duas rodas pedaladas na infância, eu que vejo em cada par de puxadores a imagem fúnebre de um pobre diabo estendido num isolado e frio recanto de uma igreja.

Chego a colocar problemas filosóficos sobre o triste destino do proletário que eu sou, alienado do resto do produto do meu trabalho, sem saber quem vai tocar alguma daquelas campainhas que eu comecei, quem vai ter uma garrafa de gás «das minhas» ou mesmo quem vai ser o usuário daqueles puxadores que a terra não irá seguramente comer desde logo, mas que comerá devagar durante anos de ferrugimento.

É triste mas é assim e antes que me perca mais em divagações deixem-me tentar explicar porque não me apeteceu voltar aqui ao meu país até agora. A explicação é fácil e não foge aos clichés habituais que se foram cimentando sobre o ser do emigrante.

Uma coisa é viver mal no estrangeiro, o que o comum dos nossos mortais conterrâneos gregarizados na ignorância dos mundos lá fora considera ser impossível e outra coisa bem diferente é viver mal no nosso próprio país, onde se passa uma imagem inversa.

É absolutamente possível para a minha classificação social, aliás, diria que é a possibilidade única, viver-se mal no nosso país e nem sequer ter a veleidade de fazer passar a imagem de uma réstia de felicidade mesmo quando se vai ver um bom filme ou se sai de uma jantarada contadinha ao tostão. Ser triste, ser pobre, macambúzio, lamechas, choramingas, é a regra nacionalizada que não admite excepção.

Lá fora, onde estou, é diferente e para mim, nem sequer é possível ter a pretensão absurda de pensar que vivo descansadamente mal porque os outros cá não o sabem. Os nossos antecessores, neste êxodo migratório secular, levaram, todos eles, a realidade escondida nos bolsos e dela não abrem mão pública. Mas eles sabem tudo, sabem tudo e não fica nada que eles não saibam.

Na verdade, e aprofundando as coisas, a grande valorização de estar longe do seu país é porque a miséria no estrangeiro é sempre melhor tolerada que a miséria no nosso país. Não é uma questão de grau, viver mal é igual em todo o mundo e não tem escalas, mas a sensação é diferente.

A miséria do cosmopolita pode até ser chique, tem um status, vale psicologicamente mais embora o aperto da fome nos estômagos seja igual em qualquer canto do mundo. Mas é assim...e basta ler os jornais para saber que é mesmo assim: um sem abrigo em Nova York tem infinitamente mais classe que um sem abrigo em Lisboa.

Pois bem: amealhei durante cinco anos para fazer uma deslocação a Portugal, à minha terra, ver os amigos que ainda restam, e sobretudo ver se ainda restava algum, enfim, foi uma decisão longamente ponderada: cinco anos é assim um tempo normal para se considerar longo, acho eu e em estado de ponderação pode considerar-se quase uma tibetana eternidade.

Assim que desembarquei do autocarro calhou-me logo ver ao balcão da bilheteira uma antiga namorada minha, velha como tudo, de papos horríveis nos olhos e umas mamas transbordando em suporte incompleto no tampo anterior do balcão.

Ela fez o favor de nem me reconhecer, o que é foi bom porque não sabia mesmo o que lhe dizer se entrássemos em conversa. Quase tínhamos estado no altar da Igreja não fora o facto de ter sido um falso alarme a sua possível gravidez, o que levou a um adiamento sine die que ela não levou muito a gosto na altura e de certa forma acho que foi melhor para ela assim. Se ela soubesse o que eu sei hoje sobre a minha vida reconheceria rapidamente o favor que eu lhe fiz.

Mas erro meu, aqui, neste fugaz encontro com a minha antiga namorada: na verdade ela apenas fez que não me reconheceu mas topou-me e bem. Eu estava mais magro, foi o que me disse quando saiu de trás do guichet e aqui as mamas dela pareceram-me mais proporcionadas e até os papos nos olhos pareciam ter diminuído.

Se eu não fosse um gajo frio, calmo, ponderado, racional ao extremo teria pensado que havia ainda um pouco do fogo da nossa paixão e parece-me que sim. Na verdade, as coisas são como são: ela disse-me que tinha esperado sempre por mim, que eu tinha sido o único homem da vida dela e mais coisas que me enterneceram o coração.

Teria ficado por cá, demo-nos muito bem durante os dias que cá estive, acabei por não encontrar ninguém verdadeiramente conhecido e aquelas pessoas que o tinham sido, conhecidas, homens e mulheres já não eram os mesmos pelo que nada me prendia senão o decrescer vertiginoso da amplitude das mamas da Joana, o aligeirar dos papos nos olhos e mais umas coisas que relevam do domínio do íntimo e pessoal.

Mas pesei tudo, ponderei cerca de trinta dias e cheguei à conclusão que era impossível viver nesta miséria portuguesa (não levem a mal), um país onde não havia campainhas de bicicleta, garrafas de camping gás e puxadores de caixões para fazer. Nada, não havia nada: nem sequer comboios de minuto a minuto. Uma autêntica miséria....
Daniel Teixeira