segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Conto baixinho - Daniel Teixeira


Conto baixinho

Eu já estou emigrado há longo tempo e embora não esteja muito longe do meu local de nascimento, do meu país, da minha pátria, nunca mais aqui pus os pés.

Não interpretem isto como sendo uma forma de desapego injurioso para com as minhas raízes, ou como uma manifestação de peneirice motivada por alguma ideia de superioridade entre a minha vida presente e o meu passado porque na verdade lá onde vivo as coisas não me correm bem, passo mesmo alguma fome sobretudo no refeitório da fábrica onde trabalho que desde há anos aderiu à ementa quase gourmet e aos fins de mês é um verdadeiro suplício pagar as poucas contas que tenho.

Durmo perto de uma linha de comboios que trabalha 24 horas por dia praticamente fazendo passar um comboio por minuto e no emprego, para além da escassez dos alimentos de que já falei sou tratado como um cão, ou talvez a imagem não esteja certa porque os cães em princípio não têm de fazer centenas de peças por dia e algumas delas são autênticas ofensas para o que resta do meu ego memorial pessoal.

No meu dia a dia estou simplesmente farto de fazer tampas de campainhas para bicicletas, puxadores para caixões e juntar com solda as duas metades das garrafas de camping gás, eu que até não sou adepto do campismo, eu que tinha em bom recato a imagem das duas rodas pedaladas na infância, eu que vejo em cada par de puxadores a imagem fúnebre de um pobre diabo estendido num isolado e frio recanto de uma igreja.

Chego a colocar problemas filosóficos sobre o triste destino do proletário que eu sou, alienado do resto do produto do meu trabalho, sem saber quem vai tocar alguma daquelas campainhas que eu comecei, quem vai ter uma garrafa de gás «das minhas» ou mesmo quem vai ser o usuário daqueles puxadores que a terra não irá seguramente comer desde logo, mas que comerá devagar durante anos de ferrugimento.

É triste mas é assim e antes que me perca mais em divagações deixem-me tentar explicar porque não me apeteceu voltar aqui ao meu país até agora. A explicação é fácil e não foge aos clichés habituais que se foram cimentando sobre o ser do emigrante.

Uma coisa é viver mal no estrangeiro, o que o comum dos nossos mortais conterrâneos gregarizados na ignorância dos mundos lá fora considera ser impossível e outra coisa bem diferente é viver mal no nosso próprio país, onde se passa uma imagem inversa.

É absolutamente possível para a minha classificação social, aliás, diria que é a possibilidade única, viver-se mal no nosso país e nem sequer ter a veleidade de fazer passar a imagem de uma réstia de felicidade mesmo quando se vai ver um bom filme ou se sai de uma jantarada contadinha ao tostão. Ser triste, ser pobre, macambúzio, lamechas, choramingas, é a regra nacionalizada que não admite excepção.

Lá fora, onde estou, é diferente e para mim, nem sequer é possível ter a pretensão absurda de pensar que vivo descansadamente mal porque os outros cá não o sabem. Os nossos antecessores, neste êxodo migratório secular, levaram, todos eles, a realidade escondida nos bolsos e dela não abrem mão pública. Mas eles sabem tudo, sabem tudo e não fica nada que eles não saibam.

Na verdade, e aprofundando as coisas, a grande valorização de estar longe do seu país é porque a miséria no estrangeiro é sempre melhor tolerada que a miséria no nosso país. Não é uma questão de grau, viver mal é igual em todo o mundo e não tem escalas, mas a sensação é diferente.

A miséria do cosmopolita pode até ser chique, tem um status, vale psicologicamente mais embora o aperto da fome nos estômagos seja igual em qualquer canto do mundo. Mas é assim...e basta ler os jornais para saber que é mesmo assim: um sem abrigo em Nova York tem infinitamente mais classe que um sem abrigo em Lisboa.

Pois bem: amealhei durante cinco anos para fazer uma deslocação a Portugal, à minha terra, ver os amigos que ainda restam, e sobretudo ver se ainda restava algum, enfim, foi uma decisão longamente ponderada: cinco anos é assim um tempo normal para se considerar longo, acho eu e em estado de ponderação pode considerar-se quase uma tibetana eternidade.

Assim que desembarquei do autocarro calhou-me logo ver ao balcão da bilheteira uma antiga namorada minha, velha como tudo, de papos horríveis nos olhos e umas mamas transbordando em suporte incompleto no tampo anterior do balcão.

Ela fez o favor de nem me reconhecer, o que é foi bom porque não sabia mesmo o que lhe dizer se entrássemos em conversa. Quase tínhamos estado no altar da Igreja não fora o facto de ter sido um falso alarme a sua possível gravidez, o que levou a um adiamento sine die que ela não levou muito a gosto na altura e de certa forma acho que foi melhor para ela assim. Se ela soubesse o que eu sei hoje sobre a minha vida reconheceria rapidamente o favor que eu lhe fiz.

Mas erro meu, aqui, neste fugaz encontro com a minha antiga namorada: na verdade ela apenas fez que não me reconheceu mas topou-me e bem. Eu estava mais magro, foi o que me disse quando saiu de trás do guichet e aqui as mamas dela pareceram-me mais proporcionadas e até os papos nos olhos pareciam ter diminuído.

Se eu não fosse um gajo frio, calmo, ponderado, racional ao extremo teria pensado que havia ainda um pouco do fogo da nossa paixão e parece-me que sim. Na verdade, as coisas são como são: ela disse-me que tinha esperado sempre por mim, que eu tinha sido o único homem da vida dela e mais coisas que me enterneceram o coração.

Teria ficado por cá, demo-nos muito bem durante os dias que cá estive, acabei por não encontrar ninguém verdadeiramente conhecido e aquelas pessoas que o tinham sido, conhecidas, homens e mulheres já não eram os mesmos pelo que nada me prendia senão o decrescer vertiginoso da amplitude das mamas da Joana, o aligeirar dos papos nos olhos e mais umas coisas que relevam do domínio do íntimo e pessoal.

Mas pesei tudo, ponderei cerca de trinta dias e cheguei à conclusão que era impossível viver nesta miséria portuguesa (não levem a mal), um país onde não havia campainhas de bicicleta, garrafas de camping gás e puxadores de caixões para fazer. Nada, não havia nada: nem sequer comboios de minuto a minuto. Uma autêntica miséria....
Daniel Teixeira






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