sábado, 25 de julho de 2015

Sobre o cultivo da palavra - Texto de Daniel Teixeira


Sobre o cultivo da palavra

Texto de Daniel Teixeira


Este é um dos textos mais monótonos que alguma vez escrevi e para quem se questione como sei eu que este é um dos textos mais monótonos que alguma vez escrevi devo responder que sei isso porque o meditei todo, mais palavra menos palavra, há poucos minutos enquanto tomava o pequeno almoço: algumas bolachas e café com leite, para alimentar a saciedade dos mais curiosos.

Poderemos sempre perguntar-nos porque é que eu tomo um pequeno almoço que segundo os parâmetros, mesmo os continentais, é um pequeno almoço frugal, até excessivamente frugal segundo me dizem e que para estar a tomar um pequeno almoço destes, também segundo me dizem, mais valia estar sossegado e passar directamente à refeição seguinte.

Pois bem - e esta parte já não faz parte do meditado antes e que virá a seguir - eu sempre fui uma pessoa de pouca comida de manhã, aliás de manhã é quase tudo aos poucochinhos para mim, e tudo se assemelha ao bochecho do lavar dos dentes, ao fraco dispêndio calórico com que faço tudo até à hora da bica. O esforço que consumo está numa proporção directa com o volume do frugal ou mesmo miserável pequeno almoço que tomo.

É a partir da bica que a minha acelerada vida, um pouco mais acelerada vida - não exageremos - começa. Aqui caberia bem uma anedota sobre alentejanos mas não posso perder de vista o objectivo deste texto já reflectido sob risco de esgotar o espaço para introdução de texto que a moderna forma de leitura me permite. Nem pouco nem muito, porque o pessoal não está muito virado para leituras de testamentos nem de Lusíadas de assentada.

Pois bem, mas antes de ir ao reflectido tenho de descrever de uma forma mais clara o que é a minha vida de manhã e isto porque não quero que os meus queridos leitores achem que eu faço tudo em pequenino: salvo os bochechos do lavar dos dentes, limitados pelo espaço entre dentes e pelo normalmente pequeno volume do interior de uma boca normal, o resto é abundante, tal como a água do duche ou mesmo o sabão para a barba, mas lento, lento, numa exploração exaustiva da minha condição de sulista. Chego a levar uma hora a despachar-me e nunca tive grandes problemas com isso.

Levanto-me cedo precisamente por causa disso: prefiro dormir menos e continuar a explorar este ritmo matinal do que levantar-me mais tarde e trocar as voltas às rotinas, porque de rotinas se trata. Em rigor não tenho de pensar absolutamente nada antes da bica. Tudo é mecânico, espontâneo e mesmo quando a tampa da pasta de dentes calha a cair dentro da bacia é igualmente mecânico o gesto que me leva a apanhá-la e a colocá-la no circuito certo e donde nunca deveria ter saído.

O que mais me chateia, para além do facto de alguém se atrever a apressar-me, coisa que acontece uma vez na vida por razões que têm de ser devidamente fundamentadas, o que mais me chateia, dizia, é tocar o telefone. Não porque eu não goste de falar ao telefone (ah! se aquele telefone falasse...sozinho!) mas porque o som é sempre irritante mesmo que eu o tenha adocicado com um género de princípio de uma sinfonia de Beethoven, ou Schubert, não interessa para o caso...ou será de outro gajo qualquer?

Bem, verdadeiramente não interessa, embora agora fique a magicar sobre isso. Quem será o sacana?! Strauss? O Piotr Ilich Tchaikovski? O Wolfgang Amadeus Mozart? Tenho de ver se me lembro de descobrir isso da próxima vez que o telefone tocar, desde que não seja enquanto eu estou nas minhas rotinas matinais porque aí o gajo que toca na campainha (falo do telefone fixo, esclareço) é um filho da p. e o gajo ou a gaja que me telefona inicialmente é também isso embora eu possa mudar de opinião depois de ouvir as primeiras palavras.

Para o efeito tenho um conjunto de telefones em casa que ocupam toda a casa mas não me arrisco a meter um na casa de banho: não é por nada mas acho exagerado. Todas as coisas têm o seu limite e este é um daqueles que eu estabeleci a mim mesmo: nem televisão, nem rádio, nem telefone na casa de banho. Na casa de banho apenas o necessário para cumprir as funções da dita embora haja por lá tralha a dar com um pau, felizmente arrumada em prateleiras, mesa, gavetas e etc.

Mas voltando ao que interessa, que é o cultivo da palavra: já não tenho assim grande espaço para escrever sobre o cultivo da palavra, o que é pena, mas posso deixar um resumo: o cultivo da palavra versaria - se eu não tivesse perdido o meu tempo e o espaço de escrita - sobre a subjectividade e a sucessão de impressões subjectivas que criamos sobre a palavra, tendo por base a poesia de António Ramos Rosa, mas podia ser de outro qualquer, porque a tese a defender era uma tese a la Palisse e suportava qualquer poeta mesmo pouco famoso.

É pena não poder desenvolver mais o tema mas a culpa não é minha: está estudado que as pessoas não lêem mais do que x palavras num texto e mesmo que isso me seja indiferente, que é, de facto, não quero fugir a essa regra. Provavelmente escreverei sobre o cultivo da palavra noutra altura porque a reflexão, agora que me despeço, até tinha o seu interesse e a sua piada.

É pena não haver mais espaço..




quinta-feira, 2 de julho de 2015

Um caso esquisito? - História de humor de Daniel Teixeira


Um caso esquisito?

História de humor de Daniel Teixeira


Ontem quando me deitei já era tarde. É claro que tudo depende da ideia do ser cedo ou ser tarde mas essencialmente o que me interessa fazer reparar aqui é que era tarde, na minha perspectiva, de acordo com o meu pensamento ou de acordo com os meus parâmetros.

Ora, aqui uma outra questão se pode levantar que é de se saber se os meus parâmetros sobre o ser cedo ou sobre o ser tarde são os parâmetros correctos ou normais. Isso não seria relevante se não dependesse da verdade desta análise a continuidade da estória que quero contar, porque na verdade, e em boa verdade vos digo, se eu me tiver deitado realmente tarde não será de estranhar o desenvolvimento que a estória que pretendo contar tem, mas inversamente, se eu me tiver deitado cedo, ou pelo menos não muito tarde, seria de esperar que a estória tivesse um outro desenvolvimento colocando-se assim um verdadeiro busílis narrativo que fará colocar-se o problema do limiar destrinçante entre o real e o irreal.

Eu explico melhor: se me deitei tarde, e se for aceite essa ideia de eu me ter deitado tarde é absolutamente normal que aquilo que se passou comigo tenha sido um sonho e logo que a estória nada tenha de paranóico, isto é sendo eu radical, ou de menos normal, sem radicalismos, porque nos sonhos, como se sabe, vale tudo e mais alguma coisa.

Mas, se eu me deitei cedo então terei de reconhecer que a possibilidade de se ter tratado de um sonho, não sendo de todo remota contudo, é reduzida, e aquilo que é o objecto desta estória é realmente algo de anormal, de menos comum, um pouco doentio mesmo ou então, estranho e para não entrarmos nestes campos esquisitos do se ser são ou se ser "maluquinho".

Até porque esta coisa da normalidade, minha ou da estória, tem muito a ver com aquilo que é corrente e é esse corrente que é o parâmetro aferidor: estamos próximos, ou em posição credivelmente aceitável daquilo que é corrente e aquilo que fazemos ou contamos é normal, ou estamos afastados daquilo que é corrente e aquilo que fazemos ou aquilo que contamos é anormal, paranóico (em extremo) ou só maluquinho numa versão mais tolerante.

Pois bem, o que quero contar é o seguinte: estava eu deitado, dormindo ou não dormindo isso é questão pendente, sonhando ou não sonhando igualmente questão pendente, neste caso de duas condicionantes (estar a dormir e estar a sonhar) quando me tocaram à campainha da porta.

Não costumo receber visitas tardias pelo que pensei desde logo estar a sonhar e voltei-me para o outro lado, coloquei meticulosamente a almofada sobre a cabeça, calquei-a com aquele solene e simultaneamente carinhoso gesto da praxe (todos sabem como é, uma almofada não é só uma almofada, é também um pouco de nós) mas, a campainha continuava a tocar depois de um ligeiro intervalo que eu calculo ter sido de poucos segundos mas que pode ter sido de mais tempo se eu me tiver deixado dormir e tiver perdido a noção do tempo.

Levantei a cabeça da almofada de baixo deixando cair a de cima que antes tinha afagado (nunca compreendi muito bem porque é que as pessoas levantam a cabeça para ouvir melhor mas enfim, agora não interessa), coloquei os dois ouvidos em escuta plena bandeando a cabeça não fosse haver traição timpanal de um deles e, de facto, estavam a tocar-me à campainha, só podia ser isso uma vez que a hipótese da campainha tocar sozinha era de afastar.

Levantei-me, gritei um já vai porque aquele ruído da campainha é irritante mesmo de dia e ainda mais de noite, espreitei pelo ralo e surpresa: uma cara sorridente aparecia no buraquinho, de cabelo amarelamente louro e tez bronzeada.

"Caramba!"- disse para mim mesmo: eu não encomendei nenhuma pizza e se tivesse encomendado estas não são horas para entregar pizzas e para além disso os entregadores de pizza são normalmente homens, ou pelo menos são pessoas do sexo masculino e por princípio trazem uma embalagem de plástico ou de cartão à frente e a moça a única coisa que trazia à frente era um volumoso par de seios (são sempre aos pares) repuxados para cima e prontos a saltar, isto já visto e analisado depois de eu ter entreaberto a porta.

"Olá!"-disse-me ela. "Olá!"- disse-lhe eu e ali ficámos nos olás cerca de vinte segundos mais coisa menos coisa não tinha o relógio à mão. Depois tudo se passou como num sonho: ela entreabriu a racha da saia (que por acaso até era gira, a saia) mostrou-me uma nesga de abundante joelho com entrada de coxa, penetrou uns centímetros dentro do hall e jogou-se a mim (eu estava paralisado, como será de entender) e sem mais nem menos deu com o sapato esquerdo na porta fazendo-a fechar-se quase sem estrondo.

Caramba! Caramba! Era a única coisa que me vinha à mente.
"Surpresa!" dizia ela.
Bolas pensei que tivesses levado a chave...disse depois de refeito.
E trouxe, meu tontinho...disse-me ela mostrando o molho de chaves. Mas tu, como sempre esqueceste-te de tirar a tua chave da fechadura...meu tontinho.
Acabei por ter de lhe ir dando razão até que mergulhei na cama e me deixei de facto dormir.
Ou não?!