quinta-feira, 2 de julho de 2015

Um caso esquisito? - História de humor de Daniel Teixeira


Um caso esquisito?

História de humor de Daniel Teixeira


Ontem quando me deitei já era tarde. É claro que tudo depende da ideia do ser cedo ou ser tarde mas essencialmente o que me interessa fazer reparar aqui é que era tarde, na minha perspectiva, de acordo com o meu pensamento ou de acordo com os meus parâmetros.

Ora, aqui uma outra questão se pode levantar que é de se saber se os meus parâmetros sobre o ser cedo ou sobre o ser tarde são os parâmetros correctos ou normais. Isso não seria relevante se não dependesse da verdade desta análise a continuidade da estória que quero contar, porque na verdade, e em boa verdade vos digo, se eu me tiver deitado realmente tarde não será de estranhar o desenvolvimento que a estória que pretendo contar tem, mas inversamente, se eu me tiver deitado cedo, ou pelo menos não muito tarde, seria de esperar que a estória tivesse um outro desenvolvimento colocando-se assim um verdadeiro busílis narrativo que fará colocar-se o problema do limiar destrinçante entre o real e o irreal.

Eu explico melhor: se me deitei tarde, e se for aceite essa ideia de eu me ter deitado tarde é absolutamente normal que aquilo que se passou comigo tenha sido um sonho e logo que a estória nada tenha de paranóico, isto é sendo eu radical, ou de menos normal, sem radicalismos, porque nos sonhos, como se sabe, vale tudo e mais alguma coisa.

Mas, se eu me deitei cedo então terei de reconhecer que a possibilidade de se ter tratado de um sonho, não sendo de todo remota contudo, é reduzida, e aquilo que é o objecto desta estória é realmente algo de anormal, de menos comum, um pouco doentio mesmo ou então, estranho e para não entrarmos nestes campos esquisitos do se ser são ou se ser "maluquinho".

Até porque esta coisa da normalidade, minha ou da estória, tem muito a ver com aquilo que é corrente e é esse corrente que é o parâmetro aferidor: estamos próximos, ou em posição credivelmente aceitável daquilo que é corrente e aquilo que fazemos ou contamos é normal, ou estamos afastados daquilo que é corrente e aquilo que fazemos ou aquilo que contamos é anormal, paranóico (em extremo) ou só maluquinho numa versão mais tolerante.

Pois bem, o que quero contar é o seguinte: estava eu deitado, dormindo ou não dormindo isso é questão pendente, sonhando ou não sonhando igualmente questão pendente, neste caso de duas condicionantes (estar a dormir e estar a sonhar) quando me tocaram à campainha da porta.

Não costumo receber visitas tardias pelo que pensei desde logo estar a sonhar e voltei-me para o outro lado, coloquei meticulosamente a almofada sobre a cabeça, calquei-a com aquele solene e simultaneamente carinhoso gesto da praxe (todos sabem como é, uma almofada não é só uma almofada, é também um pouco de nós) mas, a campainha continuava a tocar depois de um ligeiro intervalo que eu calculo ter sido de poucos segundos mas que pode ter sido de mais tempo se eu me tiver deixado dormir e tiver perdido a noção do tempo.

Levantei a cabeça da almofada de baixo deixando cair a de cima que antes tinha afagado (nunca compreendi muito bem porque é que as pessoas levantam a cabeça para ouvir melhor mas enfim, agora não interessa), coloquei os dois ouvidos em escuta plena bandeando a cabeça não fosse haver traição timpanal de um deles e, de facto, estavam a tocar-me à campainha, só podia ser isso uma vez que a hipótese da campainha tocar sozinha era de afastar.

Levantei-me, gritei um já vai porque aquele ruído da campainha é irritante mesmo de dia e ainda mais de noite, espreitei pelo ralo e surpresa: uma cara sorridente aparecia no buraquinho, de cabelo amarelamente louro e tez bronzeada.

"Caramba!"- disse para mim mesmo: eu não encomendei nenhuma pizza e se tivesse encomendado estas não são horas para entregar pizzas e para além disso os entregadores de pizza são normalmente homens, ou pelo menos são pessoas do sexo masculino e por princípio trazem uma embalagem de plástico ou de cartão à frente e a moça a única coisa que trazia à frente era um volumoso par de seios (são sempre aos pares) repuxados para cima e prontos a saltar, isto já visto e analisado depois de eu ter entreaberto a porta.

"Olá!"-disse-me ela. "Olá!"- disse-lhe eu e ali ficámos nos olás cerca de vinte segundos mais coisa menos coisa não tinha o relógio à mão. Depois tudo se passou como num sonho: ela entreabriu a racha da saia (que por acaso até era gira, a saia) mostrou-me uma nesga de abundante joelho com entrada de coxa, penetrou uns centímetros dentro do hall e jogou-se a mim (eu estava paralisado, como será de entender) e sem mais nem menos deu com o sapato esquerdo na porta fazendo-a fechar-se quase sem estrondo.

Caramba! Caramba! Era a única coisa que me vinha à mente.
"Surpresa!" dizia ela.
Bolas pensei que tivesses levado a chave...disse depois de refeito.
E trouxe, meu tontinho...disse-me ela mostrando o molho de chaves. Mas tu, como sempre esqueceste-te de tirar a tua chave da fechadura...meu tontinho.
Acabei por ter de lhe ir dando razão até que mergulhei na cama e me deixei de facto dormir.
Ou não?!




 

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