quinta-feira, 21 de maio de 2015

Fotos e memória - Conto (Humor) de Daniel Teixeira


Fotos e memória

Conto (Humor) de Daniel Teixeira

Tenho-me dedicado tanto quanto posso a pesquisas na net sobre fotografias e como devem calcular encontro um pouco de tudo e mais do que aquele todo imaginável pelo naïfe que eu sou. Mas, sem entrar em desbragadas análises sobre o quase inalisável o que mais me tem chamado a atenção é o facto de se encontrarem muito poucas fotos comuns sobre gente comum, na net.

Tenho visto algumas páginas pessoais, daquelas mesmo pessoais, com poucos centenas de visitas nos contadores, mas mesmo nestes casos tenho encontrado algum desejo de ser mostrado o incomum naquelas pessoas que deveriam mostrar-se gente comum por serem gente comum.

Os meus primeiros encontros com gente comum que não quer ser comum ou que se não quer assumir como comum, vulgo vulgar, sem diferença, orgulhosa de ser como é e não orgulhosa por ter sido incomum num dado momento da sua vida, foi quando pesquisei páginas pessoais com fotos e verifiquei que uma série razoável de gente tinha fotos das suas viagens, às Caraíbas, por exemplo, ou outros destinos exóticos.

Dependendo das nacionalidades o exótico é aquilo que se não encontra na terra onde vivemos: um português, por exemplo, tira fotografias de neve e montanhas, posa alegremente ao lado de um professor de sky, assenta os pés em dois palitos nos quais se vê que ele mal se consegue manter direito, e enterra firme e profundamente na neve dois tacos agarrados como enxadas e sorri, meu deus, como ele ou ela sorriem para a foto, para o fotógrafo, para a máquina mas sobretudo estão, dentro deles a pensar como irão fazer roer de inveja os amigos quando mostrarem as fotos sem sequer calcularem que eles se estarão borrifando para o facto de eles terem estado 24 horas vezes não sei quantos na Sierra Nevada ou mesmo nos Alpes.

A foto é alegre, a alegria é pessoal e o desejo de ferir o próximo (o vizinho teso ou com menos posses) é evidente. Nada está escondido na manga...

No caso de um Norueguês, por exemplo, o exótico é andar entre biquinis, toplesses, e abundância de carne exposta, ver e fotografar uns quantos marmanjos e marmanjas, estas com as mamas à mostra, de preferência, tirar a inevitável foto com uma bebida colorida num bar todo em madeira com os troncos "rústicos" à mostra e dar um chocho para o fotógrafo guardar no negativo.

Em qualquer dos olhares, português ou norueguês, ou de qualquer nacionalidade, o que se lê entre linhas, é a expressão da necessidade de mostrar ao próximo vizinho quanto felizes foram as férias, mesmo que se subentenda por vezes que a fominha passada fora das fotos foi enorme ou que mesmo os cartões de crédito levarão eternidades a ser saldados.

Gente comum não há, nunca há gente comum: quando um indivíduo, munido da sua indispensável máquina de chapear, vai ao Tibete, por exemplo, tem forçosamente de arranjar um monge, uma peregrinação, uma referência ainda que remota ao Lama do sítio, um mosteiro alcandorado nas montanhas, ou mesmo um animal daqueles que parecem camelos e se babam aos litros e quilos para a fotografia e para o fotógrafo.

O pobre e vulgar cidadão, com preocupações com o fisco ou mesmo sem possibilidades de ter essas preocupações não aparece senão quando calha em fundo de ecrã: e no entanto há tanta gente comum, tanta, tanta que são mesmo mais do que os Lamas, os professores de sky, ou as floridas havaianas.

Cheguei pois à conclusão que é impossível arranjar gente comum fotografada: gente mesmo comum. Uma simples velhinha a troco de muita insistência ou mesmo por biscate exibe o abundante relevo das rugas, esboça um sorriso talvez por gozo interior e mostra uma catrefa de dentes em falta ou simplesmente apodrecidos.

Não há, de facto gente comum senão aquela que é obrigada ou sente que é simpático mostrar o comum da sua vida ou vivência.

Uma mocinha, atingida a maior idade, não se importa absolutamente nada que a fotografem com os trajes da região (que ela vai buscar à arca a casa porque no dia a dia anda de mini saia) e com um pouco de insistência ou nenhuma mostra uma fatia da perna para decorar e dar mais interesse ao traje.

Os "profissionais" da "gente comum", esses, vão a África, arranjam pela agência uma festa tribal que pagam entre todos e batem fotografias de gente comum toda coloridamente besuntada com lama colada ao corpo, empunhando ameaçadoras lanças cuja ponta nem cortaria manteiga, e aparecem adornados com máscaras o mais mal feitas possível e alegadamente retalhadas directamente em troncos de árvore mas que alimentam a pequena indústria carpinteira local.

Mas, um dia, se Deus quiser, ainda verei na net fotos de gente mesmo comum.

Daniel Teixeira



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