terça-feira, 13 de agosto de 2013

O meu romance

 
 
O meu romance
 
Ainda hoje me pergunto como foi que aquilo aconteceu, como foi possível que eu deixasse passar aquele romance, como foi possível que aquelas palavras não tivessem sido apresentadas por mim. Era o meu romance, asseguro e tenho provas escritas que já mostrei a vários amigos e amigas de que era o meu romance. Que fui eu que o fiz, linha por linha, palavra por palavra, quase.
 
Entre aquilo que eu escrevi e aquele romance que tinha tido nas mãos quase nada havia de diferente; talvez houvessem algumas palavras colocadas num outro contexto, talvez alguns momentos de emoção vividos de outra forma, mas no conjunto tudo dava certo, princípio, meio e fim eram precisamente iguais, as personagens apenas tinham nomes diferentes mas sentia-se que eram as mesmas, que diziam a mesma coisa, que se comportavam da mesma maneira.
 
E eu, por uma questão de dias, talvez menos de um mês, não estou bem certo, deixei escapar aquele romance para as mãos e para a ideia de uma outra pessoa. Pessoa essa que agora ali não estava, na apresentação do livro, numa sala repleta de gente e alguns críticos de orgãos importantes da cultura nacional.
 
Caramba, que azar o meu! Detive-me demasiado tempo a arranjar pontos e vírgulas, a reconstruir algumas frases, a fazer coisas que levam o seu tempo, a aprimorar o dicionário que nunca estava certo para mim mas finalmente acabei por dizer a mim mesmo «vai já assim» mas quando me disse isso a mim mesmo já era tarde, demasiado tarde.
 
O outro já tinha o livro feito, correra a entregar as provas, penso, deve ter corrido, ultrapassara-me e embora não seja muito próprio utilizar estes termos nestas questões culturais digo que ele chegou à meta que era a Editora primeiro que eu.
 
Não quero acreditar que ele tivesse adivinhado que eu estava a fazer um livro que era igual ou quase igual ao dele, isso é impossível, vivemos os dois relativamente perto, é certo, mas a distância que nos separa em termos físicos é enorme.
 
Entre a casa dele e a minha há um riacho lamacento que é práticamente inultrapassável no Inverno e dar a volta ao riacho implica andar a pé quase meio quilómetro, pelo menos. E posso sempre perguntar-me como e porque razão ele viria espiar o que eu escrevia, porque razão ele precisava da minha ideia para fazer um livro, que fosse - como era - quase igual ao meu.
 
Não cabe na minha cabeça, essa ideia, não cabe mesmo, há milhões de histórias para contar, podem-se inventar outros tantos milhões e logo comigo, comigo acontecia isto, haver um indivíduo que tinha escrito o meu romance, aquele romance que eu escrevia havia meses, todos os dias.
 
Todos os dias acrescentava qualquer coisa, por vezes eram só algumas palavras ou alguns pontos, burilava as frases, arredondava os sons repetindo em voz alta as alterações que fazia e tinha uma obra perfeita, a meu ver era perfeita, talvez ainda insuficientemente perfeita mas estava bem, estava mesmo boa.
 
No conjunto nunca precisei de mexer, quer dizer, na história em si, ela partia de alguns factos reais, e aquela realidade era só minha, pensava eu e a ficção que daí partia só podia ser igualmente minha, de mais ninguém.
 
E ali estava eu com o meu manuscrito na mão, sabendo que não o poderia nunca publicar, que me deixara ultrapassar por uma coincidência quase impossível que era haver duas pessoas a pensarem e a escreverem da mesma forma a mesma coisa.
 
Bem, quase da mesma forma, diga-se com algum ênfase. Nas poucas páginas do exemplar exposto, que tinha a foto dele na contracapa e que era motivo de tantos encómios da parte dos apresentadores e críticos que iam desfilando pelo microfone eu vira algumas diferenças, bastantes até, achava que havia coisas que eu teria escrito na mesma mas que faria de uma outra forma, quer dizer, o pensamento nesses casos era igual, a forma é que seria diferente da minha nalguns pontos, poucos, naquelas poucas páginas que eu li.
 
E eu sabia quem ele era, o autor do «meu» livro, descia duas paragens antes de mim no autocarro, um sujeitinho de óculos arredondos que lhe pousavam quase na ponta do nariz, baixote, gordinho, quase fisicamente o meu oposto. Não estava ali, talvez tivesse sabido que eu ia lá estar e temia um confronto, mas como, como saberia ele que eu tinha um livro igual ou quase igual ao dele?
 
Não podia mesmo saber...se ele não estava ali seria por uma outra razão qualquer. Talvez um achaque, uma constipação, uma dor de cabeça ou mesmo timidez. Caramba, eu também não lhe iria dizer nada, mesmo que ele ali estivesse, não lhe ia dizer que tinha um livro escrito igual ao dele, ou quase, mesmo quase, igual. Isso não lhe ia dizer, não.
 
Mas foi muito bem recebido o livro: o pessoal que lá estava, bastante gente mesmo, desfazia-se em encómios ao autor, elogiava a sua capacidade inovadora, a plástica do conteúdo, o lirismo, tudo, tudo era elogiado e eu ali a ouvir sem sentir qualquer ira ou raiva. Afinal era também o meu livro, pensei, mesmo que o não fosse. Tudo aquilo que era dito de bom sobre o livro dele era como se fosse dito sobre o meu impublicado.
 
Afinal eles eram quase iguais ou iguais mesmo, o autor é que era diferente, quer dizer, o nome escrito na capa e a pessoa que o tinha acabado antes de mim. Deixei chegar a sessão até ao fim e nos corredores ainda se falava naquela obra excelente, havia até quem falasse que era um livro marcante e que talvez destapasse uma nova forma de encarar a literatura, enfim, quase uma obra prima, houve quem dissesse.
 
Enquanto ia enrolando e enrugando nas mãos a pastinha que continha o meu manuscrito ia pensando que afinal talvez não fosse assim tão importante ter sido outro a publicar o «meu» livro. O que interessava é que ele estava publicado, fosse de quem fosse o nome no estampado da capa. 
 
Estava feliz e infeliz ao mesmo tempo e ainda nos corredores do salão acho que falei e ri um bocado alto demais. Algumas selectas pessoas estacaram e olharam para mim com um ar surpreso quando cantarolando repeti várias vezes uma lenga lenga que me veio à cabeça.
 
«Pardalito, pardalito...
o primeiro milho é para os pardais,
é para ti é
o primeiro milho,
come-o, come-o, ai iu é,
pardalito, pardalito!»
 
 

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