segunda-feira, 8 de julho de 2013

Numa aldeia na montanha

 
Numa aldeia na montanha
 
Conto de Daniel Teixeira
 
Era um aldeia algures por Deus e pelos homens colocada no topo de um monte que ficava no topo de uma montanha. Os Tempos, Deus e os homens tinham mantido aquela aldeia tão isolada durante tantos dos últimos anos que eram agora nenhuns os contactos que aquela gente tinha com as gentes das aldeias mais próximas, estas também colocadas por Deus e pelos homens no topo de outros montes que ficavam noutros topos da montanha.
 
Apenas, e de quando em vez, e quando Deus e o Vento ajudavam, se ouvia, sempre ao longe, muito ao longe, o tocar dos sinos das Igrejas: por vezes era ao Domingo, era o dia das Missas, outros dias, sem dia nem hora marcada, eram os dobres de finados que soavam, tilintando uma morte, lá longe, muito ao longe, mesmo muito ao longe, ou cá perto, dentro da pequena aldeia.
 
Os caminhos, íngremes, pedregosos e talhados nas encostas pelas botas grossas dos homens, pelas rijas tamancas das mulheres e pelo casco dos animais eram difíceis de percorrer e eram longos, aqueles caminhos, eram mesmo muito longos e aquilo que se via, aquela horta além, aquela árvore ali, aquele pasto ao fundo, e que pareciam ficar logo ali, nunca ficavam mesmo logo ali, onde a vista os via, era sempre mais longe, tinha sempre mais caminho a percorrer, havia sempre um caminho que parecia estender-se cada vez mais e mais à medida que se o pisava.
 
Estivesse alguém por lá que se lembrasse de falar nisso, ou que soubesse o que se passava, ou que quisesse mesmo dizer o que se passava e saberia dizer que as pessoas daquela aldeia, e das outras à volta certamente, iam ficando menos rijas, mais maduras, mais enrugadas na pele e nos membros e que quando as pessoas amadurecem o seu corpo, as suas pernas e os seus braços tornam os caminhos mais longos. Assim é a vida e assim era naquela aldeia.
 
Só o Padre tinha sempre presente a consciência disso, só ele podia dizer isso àquela gente que não queria sentir ou falar nisso. Mas ele nunca o disse, nunca falou na natureza dos homens, da fragilidade da vida terrena: sabia bem, ele, que ninguém ia querer falar nisso e falava-lhes de Deus e do Céu, das alegrias do Amanhã.
 
Ele também já estava bem maduro e por ali tinha ficado desde quando era novo: durante alguns anos ainda fora à sede da sua paróquia, que ficava longe e foi ficando cada vez mais longe e um dia nunca mais lá voltou. «Não serve de nada!» - disse - «o que por lá se diz não tem nada a ver com a minha gente e com a minha aldeia». E por ali ficara: «para sempre» - murmurou.
 
E estava a ser, quase, estava quase a chegar o final do tempo dele: adoentado, porque desta vez o rigor do inverno tinha-lhe gelado os pulmões mais do que era costume, comia a canjinha que a senhora Maria lhe trouxera: «Desculpe senhor Padre, mas hoje não há outra coisa...» dizia muitas vezes e ele respondia sempre: «Deixa minha filha...não te preocupes: Deus dá o apetite no tamanho certo daquilo que se tem para comer.»
 
E a senhora Maria, viúva e e com um único filho, que tinha um defeito na cabeça, era pouco esperto, lá levava a sua vida de viúva e mãe de um moço que não sabia fazer nada, calcorreando todos os dias o caminho até à Igreja, vinda lá da outra ponta da aldeia, com aquilo que ia conseguindo dos alimentos dela e dos vizinhos.
 
A senhora Maria já nem se lembrava de quando levara ao senhor Padre um almoço mais farto. Já havia algum tempo, sim, muito tempo...e agora com ele doente...e os caminhos cheios de neve, quando quase ninguém saía de casa para ir às hortas geladas apanhar o que por lá ainda estivesse vivo.
 
Estava muito grata ao senhor Padre, aliás toda a gente naquela aldeia estava muito grata ao senhor Padre, mas ela estava ainda mais, se fosse possível: ele arranjara maneira de manter o filho ocupado, fizera-o sineiro, o homem que toca os sinos tanto pela oração como pela morte. E tinha uma paciência de santo: já havia dois anos que todos os domingos e finados lhe dizia como devia fazer: «puxas duas vezes por esta corda e três vezes pela outra, depois repetes ao contrário, três vezes pela primeira corda e duas vezes pela segunda». Havia mais...mas nem os mais simples ele aprendia.
 
Punha-se então ao lado dele e ia-lhe dizendo: duas vezes, três vezes, três, duas e o Toninho fazia o que o senhor Padre dizia. O que o Toninho gostava de ouvir era o senhor Padre dizer-lhe «Toca com a alma...não é só com as mãos e os braços, toca com a alma» e quando acabava gostava ainda mais de ouvir o senhor Padre dizer-lhe que tinha tocado com a alma: «Hoje tocaste mesmo com a Alma!» e ele corria a dizer à mãe, corria a dizer a todos os que encontrasse pelas ruelas, ria-se muito, o contentamento enchia-lhe o rosto, enrubescia-lhe a face e por minutos, por curtos minutos, parecia uma criança como outra qualquer que crescera mais que os outros.
 
O que me contaram depois de me terem contado o que eu não via, quando fui a essa aldeia, alguns anos depois, é que tinha havido ali um milagre. O esperado falecimento do senhor Padre teve lugar numa noite muito escura em que nem as pessoas se viam umas às outras nas ruelas.
 
Todas se dirigiram a casa do senhor Padre, que era um santo homem, como me foi dito por todos várias vezes. O milagre teve lugar quando o Toninho se agarrou às cordas dos sinos e começou a dobrar a finados, sozinho e sem ninguém, lhe dizer nada.
 
Todos pensavam que ele não quereria e nem seria capaz de tocar os sinos. Mas foi. Foi capaz mesmo. E disseram-me que foi comovente, que todos se comoveram ao ver o Toninho sob a torre a puxar as cordas e a dizer bem alto, repetindo a cada toque: «Toca com a alma Toninho, toca com a Alma! Com a Alma Toninho!»
 
(Série contos da montanha)
 
 

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