segunda-feira, 8 de julho de 2013

O homem que sabia demais

 
O homem que sabia demais
 
Ele era uma pessoa simples, - foi o que me disse - extremamente simples - acrescentou: quem falasse com ele não se aperceberia nunca que ele sabia demais.
 
Não o dava a entender espontaneamente nunca e só o fazia, só mostrava que sabia demais, não mostrando que sabia demais, quando para isso era solicitado, quer dizer, quando alguém lhe perguntava uma coisa que como sempre ele sabia.
 
Nessas alturas ficava conhecido como o homem que sabia muito e nunca como o homem que sabia demais.
 
Só ele mesmo sabia que sabia demais. E agora eu - acrescentou apontando-me para a peitaça e espetando levemente o dedo indicador entre a quarta e a quinta costela.
 
Achava que não era delicado estar a dizer que sabia demais, confidenciou-me, mas dentro dele cada vez que algumas pessoas abriam a boca à sua frente num ambiente normalmente intelectualizado ou selecto e pretensamente culto ele sentia remexer dentro de si aquelas odiosas palavras que lhe dançavam no cérebro como flechas prontas em arco retesado: «Grande estúpido, Parvalhão! Grande camelo!» etc. etc.
 
O «aparecimento» daquelas palavras quando se encontrava em frente ao seu interlocutor e com as quais lutava havia muito faziam-no enrubescer, pigarrear, torcer as mãos e os dedos, contorcer um pouco a face e temia - ó se ele temia e como ele temia - que um dia não conseguisse conter dentro de si aquelas palavras e outras do mesmo género (as etc.etc. acima) que lhe vinham à ideia e que umas e outras se escapulissem cá para fora e fossem ditas.
 
Seria uma grande bronca, convenhamos, eu como ouvinte desta história e vocês como leitores estaríamos seguramente de acordo se estivéssemos em diálogo.
Mas não estamos...quem dialoga aqui comigo é o Gabriel, o homem que sabe demais.
 
Recomeçando: ele sentia-as, sentia essas malditas palavras construirem-se tecla a tecla nas cordas vocais, escorregarem-lhe sinuosas pela língua, pressionarem-lhe os lábios e daí os trajeitos faciais em forma de bochecha plena que apontava aos circundantes.
 
Mostrou-me como era, o Gabriel, e francamente achei ridícula a sua cara. Nem um trompetista consegue tal amplitude bochechal.
 
Fazia tudo o que era possível - disse-me - para virar a face, olhava discretamente para o tecto como se procurasse palavras exactas, lembrava-se do seu cão, do cágado da filha e até de acontecimentos funestos, mas nada resultava, para ele nada resultava porque o homem sabia realmente demais, muito demais e nestes casos não dá mesmo.
 
Procurava fugir aos acontecimentos sociais precisamente por causa disso mas era tudo trabalho impossível porque a sua mulher, para azar maior seu, uma socialite descarregada de uma família pequeno burguesa subitamente enriquecida, insistia em mostrar o sabichão do seu marido aos amigos e conhecidos e todo o pessoal que aparecesse numa das suas numerosas recepções e jantares.
 
Obrigava-o a calcular de cabeça números ao calhas ditos pelos presentes, seiscentos e dezasseis vezes sete mil novecentos e catorze, raízes quadradas e cúbicas e outras coisas em que ele nem precisava de utilizar o seu dom (e a sua maldição) de saber demais porque normalmente as pessoas (parvas) repetiam os mesmos números e as mesmas perguntas por vezes com variantes insignificantes em que bastava acrescentar ou um número aqui ou uma palavra ali.
 
Começava a estar farto não de saber demais mas farto porque os outros sabiam de menos, eram estúpidos, ignorantes e todo um rol de adjectivação que ia debitando dentro de si mesmo e que me repetiu com um olhar lastimoso. Deu-me pena ver o Gabriel assim e teria até mostrado um ar pesaroso se não soubesse que ele ia considerar isso uma parvoíce.
 
Ainda se ele amasse a sua mulher, pensava, dizem que o amor resolve muita coisa, ainda se ele a amasse, podia ser que conseguisse conviver com o facto de saber demais, talvez a força dos sentimentos amorosos o forçasse a arquivar por segundos, minutos ou horas parte de tudo aquilo que sabia, talvez o amor o levasse a pensar apaixonadamente, que, como toda a gente sabe, não é um pensamento de razão, embora ele soubesse que não era bem assim e que isso era uma figura de estilo do parvo do Camões.
 
Mas não a amava, não amava a sua mulher, nem podia, ela era a imbecilidade em forma de gente e nunca poderia amá-la, como é claro, para além de outras razões todas elas relacionadas com a fraca capacidade de encaixe mental da sua mulher. Fisicamente era um borracho - rematou em estilo de compensação.
 
Tinha casado contra vontade, fora aquilo a que se chama «apanhado a laço» e depois de um descuido excessivamente erótico que redundara no rebento que agora tinham. Embora gostasse bastante da miúda lamentava que fosse por causa daquele descuido que ele estivesse agora a sofrer o que sofria.
 
Gabriel!!! Chamava a sua dita cara metade: diz lá aqui ao Alfredo em que ano o D. Afonso Henriques descobriu o caminho marítimo para a Índia. «Estúpida, parvalhona, o D. Afonso Henriques nem sequer sabia nadar...».
 
Mas isto não dizia, é claro, desfazia o engano, colocava as coisas historicamente certas, juntava uma plateia razoável à sua volta, era aplaudido no final da sua intervenção e mais uma vez conseguia reter os palavrões que lhe dançavam freneticamente ultimamente em ambas as bochechas.
 
Encontrei o Gabriel depois de longos anos, fomos colegas de escola, na primária, onde ele era um cábula preguiçoso e o recordista da classe a levar reguadas. Contou-me assim por palavras dele a sua vida, desgraçada, como ele a nomeou.
 
Disse-me que teve um vipe, um dia, ou uma noite, não se lembrava bem e que no dia seguinte sabia demais. Disseram que foi milagre, e eu para mim fui-me dizendo : «realmente só um milagre faria deste gajo alguém que soubesse alguma coisa e para saber demais seriam necessários pelo menos uns dez ou vinte milagres».
 
Aconselhei-o a fazer um crosse todo o terreno em locais desertos todos os dias e a dizer um daqueles malditos e ao mesmo tempo desejados e contidos palavrões a cada passada. Acho que esta forma de desabafar, ele, o homem que sabia demais, não sabia.
 
E despedimo-nos com pancadas nas costas, obrigadinhos do Gabriel e ele afastastando-se de dedo indicador levantado num ok modernaço.
 
Daniel Teixeira
 
Série Humor Assim Assim

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