segunda-feira, 8 de julho de 2013

A viúva

 
A viúva
 
Era bom que vocês se arranjassem, disse-me mais uma vez a minha irmã. Havia já tempo que ela vinha repetindo isso. Era bom mesmo que vocês se arranjassem os dois - dizia-me. Ela e tu por aí sozinhos, os dois bons moços, tu um bom rapaz, ela uma boa rapariga, tão nova e tu tão novo, fazia jeito aos dois - acrescentava a minha irmã quase em remate da conversa e antes de sair de minha casa e regressar à sua vida.
 
A minha irmã, no entender dela, tinha uma vida e eu não tinha uma vida. Ela era casada, tinha dois filhos, dois sobrinhos meus, bons miúdos, um marido que era um excelente rapaz, enfim, acho que ela se sentia bem mesmo que tivesse de trabalhar bastante. Porque ela trabalhava bastante, oito horas na fábrica e mais o que fazia antes de ir para a fábrica e depois de regressar da fábrica.
 
E aos fins de semana também trabalhava muito. Oferecera-se para tratar da minha roupa, vinha-me fazer a cama uma vez por semana, mudar os lençóis, «dar um jeito à casa», como ela dizia, porque uma mulher sempre sabe fazer as coisas melhor, acrescentava, sempre remexendo alguma coisa enquanto falava.
 
Ela tratou do marido sempre, mesmo com ele já de cama nunca lhe faltou nada, o João, o pobre do João, um dos meus melhores amigos que acabou por morrer muito cedo, de cancro. Coitado do João, era bom amigo sim senhor. Os dois fazíamos as aldeias todas, os bailaricos, as festas, as feiras e divertia-mo-nos a valer, dizia eu à minha irmã. Depois veio o cancro e o João acabou por morrer, acrescentava a minha irmã.
 
Mas o João para mim já não era o mesmo desde que se casou, não era por causa da mulher, era por causa da vida, daquilo que a minha irmã chamava vida, ser casado, ter filhos, que o João nunca teve, enfim, tinham ele e a mulher a sua vida, uma vida como a da minha irmã e do meu cunhado.
 
Mas eu tinha tido muita pena do João, coitado. Quando o vi regressar de Lisboa quase nem o conhecia. Estava muito magro, sem cabelo e sem bigode, o bigode que ele gostava tanto, que enrolava nas pontas num tique nervoso.
 
Lembro-me tão bem como se o estivesse a ver agora. Quando ele ia convidar as moças para dançar lá ia ele de dedos nas pontas do bigode e mesmo quando estava a dançar não largava o bigode. Muitas vezes lhe disse que as moças reparavam nisso, que ele devia deixar de fazer aquilo, mas ele não se continha e enrolava sempre o bigode, estava sempre a enrolar o bigode, mesmo quando já não o tinha, depois de voltar de Lisboa e até morrer.
 
Ele sempre achou que arribava, que não ia morrer, que tinha esperança, que bastava passar aquela crise e que ele voltava a ser como era. A mim disse-me que voltaria a ir aos bailes e festas comigo, que levava a mulher porque ela também gostava de bailar e ele nunca mais tinha ido a um baile desde que casara. Nem ele nem ela.
 
E a mulher ali ao lado a ouvir tudo e a dizer que sim, que sim senhor, que começavam a ir os dois aos bailes e que me levavam a mim também, que seria bonito, irmos os três aos bailes, e às festas e às feiras.
 
Quando ele morreu chorei tanto como se tivesse perdido um irmão, a minha irmã que me perdoe, mas ele era como se fosse meu irmão e depois de casar mesmo que ele tivesse a sua vida de casado a gente ainda era muito amigos, fomos sempre, só que deixámos de ser amigos como éramos antes.
 
Se ele arribasse, como dizia, tudo voltaria ao mesmo e seria bom mas ele não arribou, aquele cancro tinha-o marcado mesmo, estava ferrado nele e não o deixou arribar. E agora a minha irmã que queria que eu me arranjasse com a mulher do meu amigo João. Isso não se diz, devia eu dizer-lhe a ela mas nem era preciso eu dizer-lhe, ela sabia que isso me estava atravessado na alma, a minha irmã sabia isso tudo, ela conhecia-me bem.
 
Era um favor que fazias ao teu amigo lá no Céu onde ele está com certeza. Tomar conta da mulher dele, da mulher de quem ele gostou tanto. Eram unha com carne os dois que eu bem falava com ela e ela bem me dizia. Ela não precisa de nada, não senhor, trabalha na fábrica e o João deixou-lhe a reforma.
 
Nem precisam de casar para ela não perder a pensão. Ela precisa é de ter um homem em casa, uma mulher tão nova e sozinha não fica bem, podem começar com falatórios, sabes como é, não demora muito que comecem a falar.
 
E eu sempre sem querer fazer isso ao João, não queria arranjar-me com ela, não senhor, com a mulher dele, e não sabia como a minha irmã dizia que sabia o que ele pensava lá no Céu onde estava com certeza.
 
Foi quando apareceu o Manuel a rondar, andou a rondar a casa dela e um dia juntaram os trapinhos. Não era mau moço o Manuel, não era não, isso eu disse à minha irmã. Mas ela não ficou nada contente, a minha irmã. Para ela aquele lugar que o Manuel agora ocupava na casa do falecido João devia ter sido meu, sim senhor, tinha sido meu.
 
Vê lá bem aquela desavergonhada, disse-me então a minha irmã. Fui-lhe pedir satisfações e respondeu-me que tu nunca mais te resolvias e que ela precisava de andar com a sua vida.
 
Ainda nem passaram três meses que o João morreu e já tem um homem em casa. Se tivesses sido tu estava bem, agora o Manuel...
 
Daniel Teixeira

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