segunda-feira, 8 de julho de 2013

Ana

 
Ana

Por vezes a gente lê ou ouve histórias e acha que as coisas se podem passar assim como se conta nas histórias. E por vezes também sabemos que as coisas não se passam assim e que não poderiam nunca passar-se assim, mas que é bom acreditar que as coisas se passam daquela forma que ouvimos ou lemos.

Acho que é bem melhor acreditar que as coisas se passam como as pessoas dizem ou escrevem nas suas histórias. Muito melhor, mesmo. Podemos dizer que era bom que se passasse assim, que as coisas fossem assim tal como nos dizem ou como lemos.

E podemos também dizer que ainda bem que as coisas não se passam assim como lemos ou ouvimos quando não gostamos. Mas as coisas, todas as coisas,  equilibram-se sempre, porque há sempre um equilíbrio.

Quando isso tem lugar, quando não gostamos daquilo que ouvimos ou lemos dizemos para nós mesmos que as coisas deveriam passar-se de uma outra forma, daquela forma que nós gostaríamos que se passassem.

E então ficamos a gostar da nossa ideia sobre a forma como as coisas se deveriam passar. E desta nossa ideia já gostamos e esquecemos que ouvimos ou lemos aquela coisa de que não gostámos. Assim é que as coisas se passam, sempre, acho eu.

Comigo acontece isso sempre e não me lembro de alguma vez não ter gostado de uma história. Acho que só agora, há pouco tempo, comecei a duvidar disso, de que gosto de uma história, contada ou imaginada, sempre.

Bem, o que eu digo é que por vezes não é da história que foi contada ou lida que eu gosto, mas sim da história que eu imaginei contrariando a outra história.

Por causa do equilíbrio, eu já disse isso, é preciso sempre estar em equilíbrio, é preciso nunca perder o nosso equilíbrio. Fomos feitos assim e temos de manter sempre a forma como fomos feitos.


Se não fosse assim perdíamo-nos, primeiro no nosso mundo e depois no mundo à nossa volta. E é isso que eu sempre disse à Ana.

Disse-lhe sempre isso, que precisamos de manter o nosso equilíbrio, que temos de acreditar no que lemos ou ouvimos ou naquilo que imaginamos a partir do que ouvimos ou lemos.
E que esse imaginado - disse-lhe sempre, e foram tantas as vezes que lhe disse- se deve conter dentro do equilíbrio de que tenho falado aqui, daquele equilíbrio que nos faz gravitar em redor de um eixo e que nos não deixa perder-nos em nós mesmos ou no mundo.  

Mas eu acho que a Ana nem sempre acreditava nesta verdade tão simples, tão óbvia, tão clara.

Acho que a Ana pensava que podia pensar por ela mesma aquilo que podia ser melhor ou pior para ela. E eu não estava e não estou de acordo, como será claro. Penso sempre e repeti-lhe sempre que ela deveria pensar aquilo que eu penso.

Não exactamente o mesmo, ela não deveria pensar precisamente tal como eu penso, é claro, mas a Ana devia seguir o método. O mesmo método que eu sigo sempre e desde sempre, acho eu.
Disse-lhe vezes sem conta que ela não deveria imaginar aquilo que não é imaginável. E tudo isto, repito aqui como repetia à Ana, para manter o equilíbrio, para não nos perdermos, para sabermos sempre o que somos.

Mas ela achou que podia ir além do imaginável.

Assim e infelizmente ela acabou por perder-se no mundo. Hoje nem me ouve sequer, não ouve os meus conselhos, não segue os caminhos que poderiam, talvez - isso não sei - trazê-la de volta, de volta ao imaginável, ao dito e ao escrito, ao real, ao fim e ao cabo.

Tenho bastante pena da Ana. Cheguei mesmo a gostar dela daquela forma, quer dizer, daquela forma que um homem gosta de uma mulher. Não me lembro bem mas acho que foi isso, gostei mesmo dela dessa forma.

A Ana nem sempre vem. Penso que seja para não ouvir aquilo que eu lhe digo sempre sobre a necessidade de equilibrio. Mas a maior parte das vezes acho que ela não consegue arranjar comida e então vem ver-me mesmo.

Ela sabe que eu lhe dou sempre comida, nunca faltei, nem uma vez. Mesmo quando estava mais irado com ela dei-lhe sempre comida e vou continuar sempre.

Mas já não gosto dela, isso é verdade, para mim ela representa aquela parte das histórias que se ouvem ou lêem de que eu não gosto. Infelizmente não consigo também ler nela a outra face da história tal como faço com as histórias de que não gosto.

Não consigo. E esta sensação estranha de impotência perante a vontade de alterar a história da sua vida perdida no mundo é um suplício para mim.

No fundo acho que ainda gosto um pouco dela, daquela forma que um homem gosta de uma mulher...talvez seja por isso, talvez venha daí esta vontade que não se concretiza de ter a outra face da sua história.

Talvez eu goste dela tal como ela hoje é.
 


 

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