sexta-feira, 22 de novembro de 2013

A tempestade - Conto de Daniel Teixeira

 
A tempestade - Conto de Daniel Teixeira
 
Naquela noite houve uma forte tempestade e logo depois houve uma mulher nua sentada no sofá à minha frente.
 
O dia teve uma temperatura normal e um céu relativamente limpo e nada augurara tamanha fúria da natureza mas o facto é que cerca da meia noite rebentou uma tempestade como eu pouco tinha visto e as coisas aconteceram como vou contando.
 
Quando a tempestade rebentou, eu que moro no topo de um pequeno prédio de dois andares recebi em visão quase aberta o relampejar consecutivo que se emaranhava no céu e ouvi em todo o som o troar dos trovões. Em certo sentido não tendo propriamente medo lembrei-me que morava no topo de um edifício e que havia antenas de televisão desactivadas por todo o lado nos telhados à volta e mesmo algumas destroçadas parabólicas pontuando aqui e ali.
 
De nada servia ficar preocupado, pensei, e disse a mim mesmo que Deus estava zangado e que eu talvez não estivesse num sítio ideal para tamanhas fúrias. Logo em seguida ouvi o toque da campaínha. 
 
Não foi um toque qualquer, um toque normal. Para além de ser pouco esperável ter visitas àquela hora quem tocava mantinha o dedo no botão e não o retirou até que eu abri a porta.
 
E eu vi então a mulher nua, que verdadeiramente aterrorizada e balbuciante me foi dizendo que tinha acabado de tomar duche quando a tempestade rebentou e tendo entrado rapidamente e fechado ela mesma a porta atrás de si, já sentada no sofá foi-me dizendo que só tinha tido tempo de vestir aquele casaco e subir em direcção à minha casa iluminada.
 
Quando já tinha passado algum tempo ela perguntou-me se podia ficar ali a noite caso a tempestade não parasse ou mesmo que parasse porque ela tinha medo, muito medo e não sentia coragem para voltar para sua casa e depois a tempestade voltar, caso ela entretanto parasse.
 
Disse-lhe que sim, que podia ficar, que podia até dormir na minha cama e que eu estaria ali mesmo, no sofá longo onde ela se sentava em frente a mim, nua, completamente nua, se é que existe outra forma de se estar nu sem se estar completamente nu.
 
A mulher, cujo nome só vim a saber mais tarde, chamava-se Catarina, tinha talvez trinta anos. Pediu-me desculpa por me incomodar e voltou a falar no casaco, que era azul e que eu via que ela não trazia e acrescentou que tinha terror das tempestades.
 
Deveria ter-lhe dito que não havia casaco azul nenhum, acho que deveria ter dito isso, mas ao mesmo tempo achei que talvez ela se sentisse mal se eu lho dissesse abertamente.
 
Ela acreditava ou queria fazer-me acreditar que tinha um casaco azul vestido, estava verdadeiramente aterrorizada e a mim só me restava rodear o seu pudor comprometido e sugeri-lhe que talvez fosse melhor eu trazer um cobertor para que ela se sentisse mais confortável e aquecida.
 
Disse-me que não, que aquele casaco era bem quente, era reforçado a feltro por dentro, e que tinha aquela gola de malha grossa que me mostrou não  mostrando esticando duas imaginárias abas junto ao pescoço e disse-me que estava bem assim mas que aceitava de bom grado um chá para tentar acalmar-se um pouco. Com a caneca com chá na mão foi-me então dizendo que tinha um terror grande das tempestades e começou a explicar-me as razões de tão elevado terror.
 
Depois da morte da sua mãe, ela era ainda miúda, fora viver com uma tia cujo marido tinha morrido fulminado por um raio e a tia não se cansava de referir isso em lamentos saudosos que preenchiam parte de todos os serões que passavam juntas e isto durante muitos anos.
 
Para além do mais, levara anos a acompanhá-la de vela na mão a rezar pelos quartos e pelos corredores da casa, fazendo o sinal da cruz a cada relâmpago e a cada trovão. Era um exorcismo disse-me a Catarina e no qual a tia parecia acreditar piamente.
 
Ela disse-me que embora não tenha nunca acreditado na possível eficácia do exorcismo acabara por interiorizar cada vez mais o terror pelas tempestades e agora ali estava, na minha casa, um pouco menos assustada porque eu estava ali mas agarrando sempre a gola do seu imaginário casaco azul para tapar os olhos cada vez que a luz dos relâmpagos penetrava pelos frestas das portas e pelo que restava em aberto nos vidros das janelas dado eu ter corrido todos os estores.
 
E a mulher nua, a Catarina, continuava a falar, quase ininterruptamente como se quisesse abafar em si o ruído que vinha lá de fora. Era relativamente bem feita, de seios médios e uma face bem bonita e de quando em vez parecia puxar as abas do imaginário casaco para cobrir os joelhos. Mantinha as pernas cruzadas e mostrava umas coxas bem torneadas e só muito amiúde descruzava as pernas mostrando então a púbis.
 
Embora eu começasse a acreditar cada vez mais que ela se agarrava à ideia de ter o tal casaco azul vestido, sabendo interiormente que o não tinha de todo acabei por mudar de ideia logo em seguida e ficar a pensar que de facto ela nem tinha consciência de estar ou não vestida.
 
Em rigor talvez ela mesma não soubesse completamente sequer onde estava embora soubesse fortemente porque estava num local qualquer. Por causa da tempestade, isso sabia ela, certamente, ou talvez a tempestade tivesse despoletado nela um terror que ultrapassava em grandeza o próprio terror da tempestade.
 
Os fusíveis rebentaram e a Catarina soltou um grito e sabendo quanto  aterrorizada ela estava pensei que no silêncio que se seguiu na escuridão ela tivesse desmaiado. Mas não, quando acendi uma vela, vi-a de pé, de mãos postas recitando baixinho uma lenga lenga imperceptível para mim.
 
Quando fui em direcção ao quadro electrico para tentar repor a ligação ela seguiu-me passo a passo, sempre rezando e rezando e num passo cadenciado fazia o sinal da cruz a cada trovão ou relâmpago que estalava na noite enquanto exclamava um mais sonoro «Deus nos salve, tia!».
Acabei por repor a electricidade e a casa iluminada de novo mostrou-me então o seu corpo esbelto dobrado às preces e ao terror que o varria, fazendo-a tremer de forma descontrolada. 
 
Eu antes tinha achado pouco possível que alguém estivesse sinceramente convencido que tinha uma dada roupa vestida e no caso tinha pensado que ela se tinha realmente precipitado escadas acima empurrada pelo terror e que só muito tarde, já depois de eu lhe abrir a porta tinha reparado que tinha feito o percurso completamente nua e que ali estava perante um desconhecido como Deus a trouxera ao mundo, nesta sua idade já acrescentada dos atributos próprios que os anos vão construindo.
 
Perante o embaraço não me pareceu a mim muito conveniente estar a desfazer-lhe a ilusão que ela criara para se proteger e restava-me levar aquela involuntária representação pelo mesmo tom.
 
Quando lhe ofereci o cobertor para se aquecer ela tinha rejeitado uma boa oportunidade de pelo menos atenuar a ilusão que criara, tinha pensado, mas como a mente humana é mesmo muito complexa achei que talvez ela pudesse ter interpretado isso como uma aceitação do desmascaramento de uma situação que já estava criada e que achava já estar ali consolidada havia algum tempo.
 
Por outro lado eu por vezes achava que ela acreditava mesmo que estava vestida, mas não notava qualquer traço de um possível distúrbio mental na sua conversa que fundamentasse a ideia e para além do desmesurado terror que mostrava cada vez que ribombava um trovão ou relampejava um relâmpago a Catarina parecia-me absolutamente normal nestas circunstâncias anormais.
 
Quando ela se acalmou um pouco perguntei-lhe o que fazia noutros dias em que havia tempestades e ela respondeu-me que vivia com uma colega e que entre as duas conseguiam equilibrar a situação, mas que a sua colega tinha ido visitar os pais e que aquela era a primeira vez que era apanhada por uma tempestade sozinha em casa.
 
Voltou a referir a tia, a quem apelidou de paranóica e que tinha tornado a ela também paranóica e acrescentou que estava a tentar vencer o medo e rindo nervosamente rematou com um pelos vistos ainda lhe faltava muito para vencer realmente aquele terror. E faltava mesmo, acrescentei eu dizendo-lhe que havia que continuar a esforçar-se.
 
Já iamos pelas três da manhã quando ela adormeceu. Achei melhor não a acordar e deixá-la ficar ali no sofá. Fui então buscar um edredon e tapei-a convenientemente e confesso que antes de o fazer, por segundos, por poucos segundos mesmo, tentei imaginá-la com um casaco azul vestido, ou seja, tentei ver o seu casaco azul.
 
Como nada a minha imaginação construíu e como nada vi acabei por pousar e aconchegar-lhe o edredon. Depois ri-me um pouco de mim mesmo porque achei que lá no fundo eu tinha pelo menos uma pequena dúvida sobre a existência real do tal casaco azul.
 
Pensei isso mas acho que foi um pensamento que resultava do meu cansaço já àquelas horas. E hoje ainda penso porque pensei nisso, na possibilidade de imaginar ou ver um casaco azul na então adormecida Catarina.
 
Quando acordei no dia seguinte já a Catarina tinha saído.
 
Até hoje, passado mais de um mês, nunca mais a vi tal como nunca a tinha visto antes daquela noite. A minha ainda curta vida naquela vivenda criaram tudo o que se passou antes e os horários seguramente desencontrados o que se foi passando depois.
 
Mas neste tempo sempre pensei que mais dia menos dia ela viria tocar-me à campaínha e imaginei a possibilidade de ela trazer nas mãos um bolo de oferta e vestir um casaco azul.
 
E esperando sem esperar penso também que talvez quando trovejar e ela esteja sozinha em casa ela suba de novo as escadas e me bata à porta. As coisas por vezes são mesmo complexas e podemos esperar que tudo aconteça assim como podemos também esperar que nada aconteça.
 
        
 

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