segunda-feira, 20 de maio de 2013

O soldado e o engraxador

 
O soldado e o engraxador
 
Alcântara - Lisboa, onde eu vivi alguns anos, mantém ainda o largo que antecedia a linha férrea e que era, e deve ser ainda, extremamente movimentado sobretudo ao domingo de manhã.
 
Naquele tempo (anos 60/70) independentemente da sua profissão de origem quem queria fazer mais uns cobres, para alinhavar o dia ou a semana, pegava numa caixa de engraxador, fácil de fazer com uma caixa de sabão e meia dúzia de pregos, mais o material necessário para os sapatos, como será claro e plantava-se encostado a uma parede ou onde desse mais jeito.
 
Que eu me lembre havia à volta de uma vintena, pelo menos, de profissionais desta arte e apesar da concorrência ser forte não havia luta de preços, tanto custava engraxar aqui como ali, o preço era sempre o mesmo e não era muito elevado pelo que chegava a haver fila à frente de cada um destes biscateiros.
 
O forte da afluência de clientes era de pouca dura, talvez duas ou três horas no máximo, entre as 9 horas e o meio dia e embora o serviço não saísse prejudicado no seu cuidado, notava qualquer um que aquilo era chegar e embarcar e que «os caixas» não tinham mãos a medir.
 
Ora um dia, estava eu na fila e era o próximo e estava logo a seguir a um soldado fardado que tinha um saco na mão. As botas da tropa são enormes, como se sabe, e naquelas condições não havia tabela ao centímetros quadrado pelo que «o caixa» já havia um bom bocado que olhava de revés para o soldado.
 
Eram ambos moços novos, «caixa» e soldado mas eu já estava à espera que houvesse pelo menos alguma discussão, ou um acelerar exponencial do preço base de forma a que o soldado desistisse e tentasse procurar preço mais apetecível noutro lado.
 
Era um trabalho que não convinha ao engraxador porque enquanto engraxava um par de botas era bem capaz de engraxar três pares de sapatos.
 
Pois bem, não chegou a haver discussão de preço: o soldado quando chegou a vez dele puxou do saco um par de botas cheias de lama, que deveriam ter vindo directas de alguma instrução lamacenta, pintalgadas pelo cano acima e com as solas com uma camada razoável de crosta de terra endurecida.
 
O engraxador foi aos arames, recusou-se a fazer o trabalho, o soldado protestava que era a função dele engraxar pelo que tinha de fazer ficar a luzir as suas botas, enfim, houve troca de socos, apitos da polícia e um bom rebuliço naquele largo onde os frequentadores que ali cirandavam davam muito por uma boa cena de acção.
 
A actividade do engraxador era ilegal e com a chegada da polícia todos os seus colegas debandaram como ele, uma vez que a polícia tinha por hábito apreender as caixas e o dinheiro feito.
 
O soldado ficou com as botas na mesma e eu com os meus sapatinhos também. Nesse dia já não houve graxa para ninguém...

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