quinta-feira, 2 de maio de 2013

O Natal do Mendigo - Conto de Daniel Teixeira

 
 
O Natal do Mendigo
 
Conto de Daniel Teixeira
 
 Tinha amealhado durante os últimos dias tudo aquilo que lhe fazia falta. Pouco a pouco, em caixotes de lixo, em sacos semi - despejados à porta das casas e na rua, nas calçadas ou nas sarjetas.
 
Por vezes encontram-se coisas com valor nas ruas. As pessoas são descuidadas, por vezes, nem sempre metem as coisas com cuidado nos bolsos e no silêncio da noite ou no ruído da cidade elas caem no solo e vão ficando, por ali, por vezes muito tempo.
 
Achava muitas coisas: relógios, envelhecidos pelo tempo que tinham passado nas calçadas, à chuva ou ao calor por vezes, velhos ornamentos, brincos, sobretudo, coisas de pouco valor, sempre, nunca lhe davam muito dinheiro por nada que encontrasse.
 
Em certo sentido ele pensava que se fosse ouro os outros pensavam que mesmo sabendo que era ouro, que o ouro que ele trazia valia menos que o outro ouro que as ourivesarias vendiam ou que o seu ouro não valia quase nada.
 
 Não se importava muito nem discutia com o senhor Armando aquilo que ele lhe pagava por aquilo que ele lhe levava: as coisas vinham sempre em mau estado e era ainda uma sorte para ele que ele quisesse ficar com elas e lhe desse algum dinheiro em troca. Recebia o que lhe davam, não protestava, nem tinha que protestar. Um mendigo não reclama, um mendigo pede, e as pessoas dão aquilo que podem ou querem.
 
Gostava de pensar que as pessoas davam tudo o que podiam. Era uma ideia que os seus amigos na sopa dos pobres por vezes gozavam e chegava a haver discussões sobre isso entre eles. «Dão o que querem!!» e «Alguns nunca dão nada», diziam. Não valia a pena - dizia - não vale a pena discutirem por causa disso, cada um pensa como quer.
 
Era a ideia que tinha da liberdade, era a sua liberdade. Ele conquistara-a, também, à sua maneira mas conquistara a sua liberdade. Ela não lhe caíra do céu. Fizera a tropa, na Guiné, mas não se deu muito bem com o clima e com as coisas que via e com as que ouvia. Não achava jeito as pessoas andarem a matar-se uns aos outros quando afinal o mundo é tão grande e há espaço para todos. E ainda sobra, sobra muito espaço mesmo.
 
E depois foram os amigos que foram morrendo, uns com tiros, outros com minas, outros que se mataram...não aguentavam mais. Aquilo era muito forte, para muitos foi mesmo muito forte.
 
Aquela incerteza de não se saber se era naquela dia ou não que iam lá ficar dá cabo das pessoas. E dera cabo dele, reconhecia. Fez a tropa toda, nunca levantou problemas lá, fazia o que o mandavam fazer, gostasse ou não.
 
Depois apareceu aquela miúda novinha, talvez para aí com catorze anos em frente à sua espingarda: os seus olhos tinham um branco muito branco à volta das pupilas quase apagadas.
 
Era cega, soube depois, mas disseram-lhe: «Dispara caraças, dispara» e ele disparou. Não gostou mesmo nada mas não disse nada também.
 
E era ela a sua companhia nesta noite da Natal, como todos os anos. Era a sua família. E tinha tudo preparado para ela também.
 
Dispôs um bocado de pano branco no chão a fazer de toalha, dispôs dois garfos de plástico que lavara na bica, mais um bocado de queijo que encontrara nas traseiras de um restaurante, duas pernas de frango assado, e ao centro o bolo, tinha um bolo de Natal, era um bolo rei. Comprava-o todos os anos.
 
Depois, passado um bom bocado acendeu a vela. Estava na hora, era sempre àquela hora que ela vinha, nunca se atrasava, e logo que acendeu a vela ela chegou.
 
Sangrava do peito, sangrava sempre, tinha ficado com essa marca no peito, e não saía mesmo, por mais que ele a quisesse lavar, por mais que ele tentasse estancar o sangue. Aquele sangue não se apagava e corria sempre, sempre, e era muito vermelho...muito vermelho mesmo.
 
Ela sentou-se no chão à sua frente e comeu um pouco do queijo, do frango e do bolo. Não disseram uma palavra. Ela nunca falava com ele, nunca lhe dizia nada. Depois, um pouco depois, cantaram como sempre faziam ao Menino Jesus:
 
«Alegrem-se o céu e a terra
 cantemos com alegria
 já nasceu o Deus Menino
 filho da Virgem Maria»
 
Daniel Teixeira

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