quinta-feira, 2 de maio de 2013

O Larussas - Conto / crónica de Daniel Teixeira

 
 
O Larussas
 
 Conto / crónica de Daniel Teixeira
 
 O Larussas foi um cão que eu tive e não tive, ao mesmo tempo. Rafeiro, arraçado de pequinois, tinha aquela facies que é própria desta raça, com os dentes inferiores sobressaídos e o focinho escorrido, com os olhos pequeninos numa angulação ligeiramente elevada: tinha mesmo uma percentagem genética larga de pekinois.
 
E eu gostava sobretudo de ouvir a minha mãe «conversando» com ele e gostava de ver o animal de língua de fora todo contente por ter alguém que «dialogava» com ele: e a minha mãe a dizer-lhe;
 
«Ah! Larussas, que feio tu és, nunca vi um cão tão feio!» e ele abanava a cauda como se entendesse naquelas palavras o contrário daquilo que elas queriam dizer e lá lhe punha as patas no colo, descia-as depois e dava uma voltinha ou duas, acabando por vezes por correr atrás da cauda.
 
Quando encontrava a minha mãe neste «diálogo» dizia-lhe brincando para não dizer isso ao animal porque ainda o traumatizava psicologicamente ao que ela respondia mais para mim do que para o cão, como será claro, que de facto ele era tão feio, tão feio que até se tornava bonito de feio que era.
 
Tenho a certeza que esta imagem me ficou gravada também porque o Larussas para mim foi um pequeno herói da sobrevivência. Levou talvez mais de um mês até ser admitido no círculo familiar, dormindo no degrau à porta da nossa casa e recebendo em duas tigelas comida e água.
 
Mas não largou, nunca largou, nunca se afastou. Os animais podem não pensar mas sentem e ele sentia que era ali que estava a sua casa, a sua nova casa. E ganhou-a, essa casa, esse lar, se quisermos, logo que o verão acabou e começaram a cair os primeiros pingos de chuva.
 
Fizemos-lhe uma cama numa casa de arrumação no nosso quintal que lhe serviu para sempre.
 
Nunca exigiu mais e tinha condições para «exigir» espontaneamente: o outro ficava em casa, era um cão de guarda, ao fim e ao cabo e ele quando chegava a sua hora sempre preferiu recolher-se à sua «casa».
 
Perdido ou abandonado apareceu um dia na companhia do nosso cão «oficial», um enorme Serra da Estrela e na altura não se colocou a questão de ter mais um animal em casa.
 
O título de sobrevivente que eu lhe dou não se deve só a esta sua persistência: na altura frequentávamos três casas na cidade de Faro, todas elas distantes entre si e quando se sentia sozinho, enquanto o outro ficava bem onde estava só ou acompanhado este tinha de ter gente nossa à vista, por isso era um caminhante nato. De patas pequenas fazia por vezes quilómetros para nos encontrar.
 
Um psicólogo francês disse há anos que se soubessem que ele psicanalisava cães seria motivo de gozo entre os colegas, mas eu não tenho problemas com isso: na minha opinião o pobre do animal ficou traumatizado por ter sido abandonado e a memória dos cães é enorme, muito maior que a nossa, disso não tenho dúvidas e acho que ele sentia que quando não havia gente da «família» perto dele isso era um mau sinal.
 
Deve ter ficado com essa «ideia» gravada, por isso nos procurava afanosamente todas as vezes que eram necessárias, percorrendo do Bom João à Penha e da Penha à Baixa e fazendo o percurso inverso quando necessário. Encontrei-o muitas vezes nesta sua andança, reconhecia-me, cumprimentava-me, mas faltava eu estar em casa, numa casa «nossa» e ele logo repartia.
 
Andava livremente, tinha uma capacidade para se desenrascar extraordinária, sabia tornear os enormes cães que se plantavam todas as manhãs na zona exterior dos talhos no Mercado antigo à espera de um osso, sabia que o território era deles e que com o seu corpinho as hipóteses de sair dali sem mazela eram curtas e por isso fazia o percurso para o Mercado por um lado e passava para o outro lado da rua na altura própria, regressando depois ao trilho passado o potencial perigo.
 
Já tive e não tive vários cães e nenhum deles foi admitido - se quisermos utilizar o termo - por mim. A minha vez de ter um cão «meu» nunca chegou porque o lugar esteve sempre ocupado por escolhas de outros familiares, mãe, pai, filha e os cães vadios que se escolheram a eles mesmos.
 
Mas o Larussas, talvez pelo seu espírito de luta e por eu ter pensado bastante nisso ficou marcado na minha memória por estas razões. Outros ficaram por outras.
 
Mas sempre admirei a persistência e a capacidade de sobreviver, a capacidade de se cair e de se reerguer, sempre e de novo, mesmo que tudo isso seja muito difícil.
 
E o Larussas foi sempre como uma árvore, penso que ele «pensava» que quando tivesse que morrer morria, como morreu, de pé.

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