segunda-feira, 3 de junho de 2013

Sobre o Capote de Nicolai Gogol

 
Sobre o Capote de Nicolai Gogol
 
Texto / análise de Daniel Teixeira
 
Este conto / novela de Nicolai Gogol é um dos trabalhos que eu considero mais importante para uma análise deste escritor russo. De notar que não é minha pretensão ver Gogol exclusivamente por esta lupa / texto.
 
O motivo, ou os motivos, o enredo ou os enredos da novela são, em certo sentido insignificantes, como insignificante é toda a história realçando-se o dom pela escrita do autor e o seu sentido de composição e também o seu esforço para conseguir transformar uma história quase banal, repleta de banalidades, no sentido literário do termo que não tanto no sentido humano, numa história que acaba afinal por ser bem conseguida e acaba por alcançar os seus objectivos.
 
Aos objectivos da história iremos indo em frente dedicando desde já esta parte do nosso texto a um pequeno resumo inventariador daquilo que nos interessa.
 
Compreende-se logo o interesse do escritor em retirar toda a relevância ao protagonista da novela, começando desde o início com o episódio da escolha do seu nome pela sua mãe perante as sugestões calendarizadas dos padrinhos:
«— Que castigo! — disse a senhora. — Que nomes! Nunca ouvi coisa assim. Varada ou Varukh, ainda enfim, mas Triphilyi e Varakhasiy, não!
Passaram para outra página e encontraram Pavsikakhiy e Vakhtisyi. — Agora percebo — disse a velha senhora, — que isto é o destino. E uma vez que assim é, o melhor será dar-lhe o nome do pai. O nome do pai era Akakiy, portanto que o filho se chame também Akakiy.»
 
Realcemos:
 
1- a expressão da mãe de Akakiy: «Agora percebo, que isto é o destino!»
 
2- a utilização por Gogol do termo «velha senhora» (talvez um erro de escrita) a uma mãe que acabava de dar à luz,
 
3- a ausência de outra referência ao pai senão o seu cargo, sabendo-se assim também na mesma altura que quando do nascimento de Akakiy ela era viúva.
 
Nada se refere sobre a sua infância ou juventude e vamos encontrá-lo já na sua posição de «funcionário de posto estanque e vitalício.»
 
Feita referência a uma ofertada possibilidade de promoção na carreira que ele não consegue e/ou não quer gerir, realça-se a importância quer do seu amor pela actividade de copista quer da sua caligrafia. Este detalhe é retomado por Gogol no final da novela ao referir a caligrafia do seu substituto:
 
«Foi assim que souberam da morte de Akakiy Akakievitch na repartição, e no dia seguinte já outro funcionário estava sentado no seu lugar, com uma caligrafia de modo nenhum tão direita, mas mais inclinada e oblíqua.».
 
Assim Gogol não quer deixar de dar ao protagonista uma posição profissional auto-fixada como copista (trabalho seguramente de responsabilidade mas ao mesmo tempo insignificante em termos de envolvimento empreendedor).
 
Akakiy é um funcionário de baixo escalão «por destino» e também pelo destino que cumpre escrupulosamente e bem. Em suma trata-se de uma pessoa sem ambições e provavelmente sem saber o que isso significa, o que nos leva ao posterior «Estrangeiro» de Albert Camus.
 
A sua vida é quase mecanizada. De reparar a propósito no detalhe do seu mealheiro:
«Akakiy Akakievitch tinha o hábito de pôr, por cada rublo que gastava, uma pequena quantia numa caixinha fechada à chave e com uma fenda no cimo para se meter o dinheiro. Ao fim de cada meio ano contava o monte das moedas de cobre e trocava-as por prata. Já fazia isto há muito tempo e no decurso dos anos, o montante ultrapassara já os quarenta rublos.»
 
De notar o preciosismo contrastante da periodização da contagem e troca das moedas de cobre (ao fim de cada meio ano) por moedas de prata e que Gogol não refere moedas de prata mas sim prata.
 
E tanto assim é, a cultura do mecanismo e do hábito que quando forçado a mudar as suas rotinas cortando nos gastos para obter o dinheiro referente ao pagamento do capote:
«Para dizer a verdade, foi-lhe um pouco difícil no princípio adaptar-se a estas privações; mas por fim acostumou-se a elas e tudo correu sem sobressaltos.»
 
Em certo sentido Gogol acaba por compensar o seu «anti-herói» depois de anunciar a morte deste e tanto mais relevante será o diferencial no seu papel depois de morto quanto menos relevante ele for em vida do mesmo, é o princípio que poderemos retirar desta composição depois de integralmente lida a mesma.
 
Assim esta redução / vulgarização da vida do protagonista terá já engatilhado o seu ressurgimento, o que poderia acontecer em vida, note-se, nesta fase ainda embrionária da novela, despoletada neste caso através de um acontecimento marcante.
 
Os delírios de Akakiy Akakievitch na fase final da sua vida, escandalizando a senhoria do seu quarto que sempre respeitara, seriam uma boa altura para construir um personagem «vivo», como que ressurgido das cinzas. De notar que Gogol ele mesmo cria essa possibilidade de ressurgimento ou regeneração do personagem como podemos ler aqui e veremos igualmente mais à frente:
 
«A partir de então, a sua existência pareceu ficar de certa maneira, mais cheia, como se fosse casado, ou como se vivesse nele um outro homem qualquer, como se de facto não estivesse só e um amigo simpático tivesse consentido em percorrer com ele o caminho da vida, não sendo este amigo nada mais nada menos do que o capote com grosso forro e tecido forte que não se gasta.»
 
A sua insignificância intrínseca, é pois quebrada pelo capote, as injustiças que ele sofre em vida, e que sente mesmo como tal, como injustiças, têm todas lugar depois do roubo do seu capote.
 
São dois aspectos importantes a meu ver que são de realçar no significado que é dado ao capote: de um lado é um suplício e depois um desafio a sua aquisição, depois uma razão para o fazer viver sofrendo as privações para arranjar dinheiro para o comprar e alegrando-se até com a perspectiva de o vir a ter.
 
«Até se habituou a passar fome à noite, mas arranjou uma compensação para isso tratando-se, digamos assim, espiritualmente, tendo sempre em mente a ideia do seu futuro capote. A partir de então, a sua existência pareceu ficar de certa maneira, mais cheia, como se fosse casado, ou como se vivesse nele um outro homem qualquer, como se de facto não estivesse só e um amigo simpático tivesse consentido em percorrer com ele o caminho da vida, não sendo este amigo nada mais nada menos do que o capote com grosso forro e tecido forte que não se gasta. Tornou-se mais vivo, e mesmo o seu carácter tornou-se mais firme, como o de uma pessoa que já tomou uma decisão e estabeleceu um objectivo para si próprio. Da cara e da postura desapareceram-lhe a dúvida e a indecisão, todos os vestígios de hesitação e inconstância. Os seus olhos cintilavam e por vezes passavam-lhe pela cabeça as ideias mais ousadas e mais temerárias; por que não uma gola de pele de marta?»
 
Em certo sentido o papel da sua «esperança quase religiosa» configura-se no objectivo capote e enriquece-se nele. Este aspecto faz desde logo antever algum acontecimento funesto ao dito capote e na minha modesta opinião Gogol deveria ter-se ficado pela morte de Akakiy e não ter-lhe dado a vida imaginada que lhe dá depois. O fantástico russo um pouco usual em demasia é realmente a meu ver demasiado aqui. Kafka ou mesmo Camus teriam ficado neste ponto, a meu ver.
 
Mas Gogol não ficou por aqui e proporciona ao seu protagonista uma vingança e uma função reestruturadora do sistema. Esta parte, talvez a menos importante do conto novela tem o seu apogeu após o acontecido com a «personagem importante» a quem ele recorreu para tentar reaver o capote e que alegadamente terá estado na origem ainda que indirecta do seu deperecimento e falecimento.
 
De notar que a lenda do «justiceiro ladrão fantasma» de capotes desaparece neste momento, em que o ajuste de contas é feito com essa personagem importante mas que continua apesar disso no imaginário popular donde aliás é originária. Este ajuste de contas afinal não é mais que uma reprimenda, assustadora como cabe a um fantasma, mas não mais que isso.
 
Ora falámos de banalidades, de coisas que a meu ver qualquer um pode escrever...mas não escreveu. Falámos de Nicolau Gogol e porque não dizê-lo de um minimalismo temático que coloca todo o acento na habilidade / génio do autor para se tornar interessante.
 
A forma da escrita, dialogante com o leitor é quase epistolar, as imprecisões propositadas sobre locais ou datas procuram envolver o leitor num imaginário seu, as descrições de lugares estão agregadas a pessoas, a maior parte das descrições refere-se a personagens que interagem com o protagonista e o detalhe procura precisamente essas personagens: na verdade embora o capote seja um fulcro da história não se compreende bem uma descrição tão detalhada do alfaiate, por exemplo.
 
Por duas vezes são referidos guardas com alabarda, em dois momentos de desorientação do protagonista, uma quando ele fica a saber que tem de comprar um capote e outra quando este lhe é roubado.
 
O rapé é uma constante com demasiada relevância a meu ver no narrado (faz inclusivamente com que uma vez o ou um fantasma ladrão de capotes não seja preso) o que nos pode levar neste último caso para o universo pessoal de Gogol.
 
Uma boa história com história a mais é como eu leio este conto novela.
 
Daniel Teixeira
 
Leia o Capote de Gogol aqui em Luis Varela Pinto.

1 comentário:

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