segunda-feira, 3 de junho de 2013

Uma história inacreditável

 
Uma história inacreditável
 
Esta história foi-me contada por um amigo e eu tive e ainda hoje tenho alguma dificuldade em acreditar nela e até em mim mesmo naquele sentido em que hoje não sei se era de facto eu, um racionalzinho de cepa que estava ali a ouvir a história ou se era um outro eu, neste caso concreto um «eu» imbecilizado.
 
Como não aceito a segunda hipótese (a do «eu» imbecil) optei por, a partir daquela altura, me tornar mais cuidadoso sobre as histórias que ouço, chegando por vezes e nos casos mais duvidosos a pedir que me digam primeiro o final da história.
 
A conclusão a que cheguei é que por vezes a história contada pode paulatinamente possuir-nos e fazer de nós, ouvintes, aceitantes passivos do narrado e em certo sentido apanhar-nos e inserir-nos no campo do ficcionado fazendo-nos crer que tudo é real. Muito cuidado pois...e eu agora tenho-o, o cuidado, todo o cuidado
 
Não era ficção, esta história do meu amigo, assegurou-me ele desde o início e eu que nem um patinho acabei por ouvi-la toda e ouvir e ver em imaginação algumas coisas e por acreditar não só no que me era dito como no que via imaginando, coisas essas que era suposto eu não ouvir nem ver.
 
Bem, já fiz responsavelmente os meus avisos e se acha que não deve ler esta história do Vasconcelos não leia, nem sabe o que perde, mas enfim...Ele começou assim:
 
«Não devia ter disparado, pá, agora sei isso mas na altura pareceu-me que não fazia mal e até achei que teria alguma piada, eu, um pobre diabo humano, com pouco mais de oitenta quilos, fazer jus à minha condição de espécie superior e meter a correr a sete pés uma manada de búfalos.
 
Não sei exactamente quanto pesavam eles todos juntos, mas a uma média de quinhentos quilos cada um dava certamente uma quantidade de quilos assim a atirar para os milhões.
Era muito peso que eu ia movimentar, pá, os meus oitenta quilos iam por a mexer muitas toneladas e achei que saberia bem ao meu sedento ego mostrar um pouco da minha superioridade, ainda por cima nesta altura de crise, pá. Se bem que ajudado pela minha velha espingarda, vale sempre uns pontos, conta sempre nos cálculos da auto-estima, e depois a espingarda é uma coisinha de nada, pá, quase nem dá coice.
 
Faz um barulho do caraças,isso faz. Aliás como sabes eu não sou muito cuidadoso com essas coisas, com quase nada, como sabes, e nem sequer limpo aquilo com regularidade. Devia haver ferrugem por todo o lado, mas sabes que há uma série de gente que morre ao limpar as armas e eu sempre achei melhor não arriscar. Dou uns tirinhos para o ar de vez em quando e lá se vai a ferrugem, penso eu.
 
Bem, regressando aos búfalos é claro que os animais estavam na sua vidinha roendo a erva que lhes crescia mesmo à medida debaixo dos pés, assim tipo relva dos campos de futebol, verdinha, polpuda, suculenta mesmo. Agora que penso nisso acho que daquela erva até eu comeria de tão lavadinha que estava.
 
Tinha chovido na noite anterior e embora houvessem umas poças lamacentas espalhadas pela pradaria o ambiente geral era de erva limpa, ou seja, a erva boa, comestível, era a regra e as poças lamacentas a excepção.
 
Bem, como disse não devia ter disparado, não me devia ter armado em parvo porque com estas coisas do ambiente natural e com a vida animal não se brinca e por vezes, como desta vez, por detrás de uma pedra pode saltar uma cobra, e neste caso aqui podia saltar uma manada de búfalos chateados como aqueles parecem ter ficado.
 
Por isso, um conselho, se encontrares uma manada de búfalos, não te armes em esperto, passas nas calmas assobiando, porque se deres um tiro as coisas podem sair-te pela culatra.
 
Neste meu caso e quando vi a coisa mesmo mal parada, os gajos a avançar em direcção ao sítio donde tinha disparado o primeiro tiro tomei depois mais decisões estúpidas: repeti a dose uma vez, duas vezes, três vezes e quanto mais eu disparava para o ar mais os búfalos corriam em direcção a mim.
 
Vi que estava feito, não propriamente ao bife mas feito por toneladas de bifes. Os animais vinham numa velocidade doida, nunca pensei que os búfalos corressem tão depressa devo dizer e numa pradaria daquelas com uma extensão a perder de vista como se vê nos filmes americanos nem um calhauzinho havia para me proteger quanto mais um rochedo daqueles que obrigam as manadas a tornear o obstáculo.
 
Nada, não havia nada, nem tempo eu teria para correr mais de cinquenta metros. Estava mesmo arrumado eu e tudo por causa de uma estupidez seguida de mais algumas que não contei exactamente e que correspondiam aos restantes tiros que tinha disparado para o ar.
 
Gostava de ser mais preciso, sei que gostas das coisas bem alinhavadas, de histórias bem contadas, mas perdi-lhes a conta, perdi a conta aos tiros que disparei para o ar, mas podes escrever entre três e cinco, não foram mais,concerteza.» - E eu escrevi «entre três e cinco tiros, talvez...»
 
«Ia morrer de uma forma inglória, espezinhado por uma manada de búfalos e duvido que de mim sobrasse alguma coisa para meter na caixinha. Mas sobrou, sobrou tudo, incluindo a minha vidinha que eu tanto prezo, como já se deve ter entendido: estou aqui vivinho da silva a contar-te a história.
 
O que aconteceu foi simplesmente extraordinário e impensável mesmo. O búfalo chefe começou a travar para aí a uma centena de metros de mim, a manada foi-lhe seguindo o exemplo e para aí a cinquenta metros de mim foram estacando de facto.
 
Não sei se sabes mas aquilo é como um estouro de boiada, também como a gente vê nos filmes. Os gajos mandam-se em velocidade e não podem travar logo de estaca, têm de ir reduzindo a velocidade progressivamente senão são atropelados pelos que vêm atrás.
 
Por isso até talvez seja pouco para travarem mesmo, os tais cem primeiros e os cinquenta metros seguintes de que falei, mas francamente não estava mesmo em condições de fazer contas certas, ok?
 
Os gajos pararam, como te disse, e como deixei de ouvir o tropel ao perto deu para ouvir os urros de um urso que estava mesmo atrás de mim. Era um daqueles ursos cinzentos, para aí com dois andares de altura e duas portas de largura. A minha provisória alegria por ver os búfalos pararem foi mesmo provisória porque o urso urrava atrás de mim.
 
Não liguei mais aos búfalos, é claro, mas senti pelo ouvido que eles se afastavam. Só ficávamos eu e o urso. Pois bem o animal e aqui não vais acreditar que o azar do urso acabou por ser a minha sorte. Pelos vistos búfalos e ursos não se dão muito bem e para mais o urso estava ferido numa pata.
 
Tinha um bocado de tronco espetado na planta de um pé e quando olhei melhor vi que o animal tinha os olhos marejados de lágrimas e que o peito dele estava encharcado. Aquilo devia doer mesmo. Morto por morto achei por bem fazer uma boa acção, se tivesse possibilidade para isso, é claro, sempre contaria na sempre incerta corda bamba do céu ou do inferno.»
 
Aqui interrompi para lhe dizer que na Biblia há uma história assim mas é com um leão e ele respondeu-me logo que aquele era mesmo um urso e que ele sabia bem a diferença entre um urso e um leão. «Ok!» - disse eu para encerrar e ele continuou a sua saga.
 
«O animal acabou por se deixar cair de barriga para o ar, urrando de dores, e eu, sorrateiramente, agarrei com as duas mãos na ponta do bocado de tronco e num só golpe, trás, puxei aquela treta para fora. O gajo (era um urso, é claro, como já disse) deu um urro e desmaiou. Acho que estava desmaiado porque só respirava e nem se mexia.
 
Aproveitei para lhe borrifar a pata com um frasco de alcool que tinha na mochila e depois derramei para aí um meio litro de betadine na pata do animal.Tenho uma caixa de primeiros socorros completa, hã (!), com tesouras e pinças e tudo, para que saibas.
 
Como ele estava desmaiado ainda tive coragem para lhe enrolar a pata em ligaduras e quando ia pirar-me em grande velocidade não é que o animal acorda e diz claramente: «Se for preciso depois vou lá a casa mudar o penso...»
 
Foi a minha vez de cair para o lado. Desmaiei, mesmo, fiquei a zeros, e o resto nem sou eu que conto foi o que o meu vizinho me disse. Diz que me encontrou à porta de casa, cuidadosamente sentado e que lhe pareceu ter visto um urso andar por ali, um urso enorme com uma pata enrolada numa coisa branca, que parecia ser uma ligadura.
 
O que mais me lixou foi o meu vizinho dizer-me que o gajo que tinha feito uma ligadura tão mal feita ao pobre do animal merecia um bom par de lambadas...
 
Série humor inacreditável

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