segunda-feira, 3 de junho de 2013

O passeio

 
O passeio
 
As coisas estavam a correr bem, pelo menos era assim que eu pensava e tudo levava a crer que nada de mau poderia acontecer.
 
O Fernando ia à frente, fazendo de batedor, a seu gosto e com algum prazer apesar do potencial perigo. O resto do pessoal vinha todo em fila indiana atrás de mim e eu por meu lado tentava seguir os sinais das pisadas das botas grossas do Fernando.
 
Era um hábito dele, andar sempre de botas tipo tropa, quase, se descontarmos uns cordões de aperto coloridos e em fiapos que ele se recusava a trocar por outros novos sob argumento de que aqueles lhe davam sorte.
 
Mas não era por causa dos cordões das botas do Fernando e por causa da sua fé neles que eu achava que se tudo tinha corrido bem até ali, tudo correria bem dali para a frente.
 
No bar da vilória onde tínhamos estado antes dissemos que queríamos ir por aquele caminho para a casa que tinha sido da mãe da Ilda, recentemente falecida, e aí foi- nos dito que talvez não fosse boa ideia.
 
Um velhote com cara de patriarca destacou-se na cadeira de uma mesa e de voz um pouco pastosa disse-nos que os caçadores furtivos espalhavam ratoeiras para caça grossa em locais que só eles conheciam e que por vezes perdiam os traços das suas sinalizações pelo que havia ratoeiras perdidas espalhadas um pouco por todo o lado.
 
Chamou um indivíduo fardado, de chapéu com insígnias que apresentou como sendo o seu filho mais novo, guarda florestal, e disse que ele tinha deixado lá um pé, pois quando chegara ao hospital já nada havia a fazer senão acabar de cortar.
 
Como se pensasse que nós duvidávamos, e acertou, obrigou o moço, relativamente novo, a levantar a bainha esquerda das calças que mostrou então uma prótese, articulada um pouco acima do tornozelo.
 
Lamentámos o sucedido e agradecemos o aviso e dissemos que iríamos tomar cuidados. O velhote voltou-se então para a Ilda e disse-lhe:
 
«Você não se lembra de mim, mas eu era grande amigo do seu pai e da sua mãe. Eram boa gente, os dois, não desfazendo dos presentes. Você tem quase a mesma cara dela!»
 
Uma parte de nós, mesmo confrontados com a prótese, que podia resultar de um qualquer outro tipo de acidente também, e com as palavras simpáticas do velhote para com a Ilda, achámos que aquilo das ratoeiras podia ser uma das usuais conversas que eram abundantes em meios pequenos quando se tratava de tentar assustar o citadino.
 
Mesmo assim quando saímos e pelo sim pelo não o Fernando ofereceu-se logo para fazer de batedor.
 
Já tínhamos estado na casa que era agora da Ilda havia uma semana, mas nessa altura tínhamos ido pela estrada. Ficámos de tal forma entusiasmados com aquele quase palacete e pelo enorme terreno circundante, bordejado por um lago que acabámos por aproveitar a primeira oportunidade para nos juntarmos num pequeno grupo de seis amigos para passarmos lá uma parte das férias. Quase todos trabalhávamos ou estudávamos e eram mesmo férias.
Só a Ilda tinha acabado o curso e procurava emprego e o João não precisava de trabalhar mesmo: limitava-se a tocar guitarra dias inteiros e a ir ao banco buscar a mesada que o pai lhe dava.
 
Na vila onde tínhamos ouvido os tais maus augúrios tinha-mo-nos separado e a Helena tinha seguido com o jeep carregado de víveres. Ela tinha dificuldade em andar tanto tempo a pé porque era um pouco gordinha, um pouco ou muito, é tudo uma questão de perspectiva. Mas era uma alegria de moça e aceitara bem a ideia de ser ela a ir pela estrada.
 
Caminhávamos silenciosamente e o final daquele passeio que depois se foi transformando em provação estava cada vez mais ao alcance. Faltavam para aí uns dois ou três quilómetros, não mais, pelas minhas contas era isso.
 
Tínhamos de chegar antes do anoitecer e a tarde já ia avançada mas estava tudo certo em termos de cálculos.
 
Se anoitecesse antes de chegarmos ao nosso destino tínhamos mesmo de parar e fazer o resto do percurso no dia seguinte, ou arriscar-mo-nos a caminhar sem claridade o que era um grande transtorno para além de poder ser perigoso sobretudo depois da conversinha que tínhamos ouvido no Bar.
 
Tinha tudo sido calculado para dar certo e a nossa passada era bem cadenciada: sobretudo da parte das duas moças, a Ilda e a Cristina, ouviam-se umas reclamações do género «ainda falta muito?» ou «nunca mais chegamos!» e mais uns suspiros fundos, tudo coisas sem importância e que eram afinal esperadas.
 
O outro companheiro que seguia comigo atrás e eu não dávamos sinal de fraqueza e aproveitávamos os desabafos das miúdas para as encorajar embora se pudesse notar pelo nosso andar arrastado que nós também estávamos já a precisar de encorajamento.
 
O azar aconteceu um quilómetro ou dois depois da vila, quando já tínhamos entrado na mata mais fechada e quando estávamos para aí a quilómetro e meio do nosso destino... deparámo-nos com o «nosso batedor» Fernando encostado a uma árvore e fazendo-nos sinal para nos mantermos abaixados.
 
Segredando foi dizendo que tinha visto gente acampada lá mais à frente e que esse pessoal não lhe inspirava confiança nenhuma.
 
Eram seguramente caçadores furtivos, pelo que ele disse, eram três e bastante mal encarados e estavam numa de ficar por ali pois já tinham acendido uma fogueira e bebiam que nem uns desalmados. Por ele continuava tentando contorná-los, foi o que disse, mas tinha um sério receio de que fossemos descobertos.
 
Nós éramos da cidade, nunca ali tínhamos posto os pés e eles deviam conhecer a mata. Colocar as moças e a nós mesmos em perigo era o nosso grande receio e com caçadores furtivos era difícil adivinhar qual seria o comportamento deles e o mais provável era que não fosse um comportamento cordial.
 
A Ilda, uma mocinha pouco vivida, tremia como varas verdes e a Cristina sendo mais voluntariosa não deixava de mostrar um ar preocupado. O que fazer? Não tínhamos resposta, mesmo. Ficar ali a noite até que eles se fossem embora, deviam partir ainda de madrugada, era o que seria pensável e era a opção mais viável, mas tínhamos de nos afastar deles recuando um bom bocado.
 
Por outro lado tínhamos pouca roupa de cobertura e durante a noite devia fazer muito frio. Estivemos nisto alguns minutos, meia hora talvez, meia hora de indecisão. Colocámos a possibilidade de passar por eles, cumprimentá-los de longe e tudo correr bem, mas era uma possibilidade que achávamos cada vez mais remota.
 
As gargalhadas e os palavrões que vinham do lado dos caçadores foram-nos dando cada vez mais a convicção de que essa não seria uma boa opção.
 
Restava-nos recuar e passar a noite por ali, mesmo com o frio que iríamos passar era certamente a melhor solução.
 
Foi quando começámos a ouvir os tiros, cadenciados, um, dois, três e segundos depois um quarto. Ficámos paralisados, não sabíamos o que se passava, mas os disparos não pareciam ser de arma de caça, de cartuchos e chumbos ou zagalotes. Pareciam ser antes tiros de espingarda, de um rifle de bala normal.
 
Minutos depois lá foi o Fernando esgueirando-se tentando ver o que se passava logo um pouco mais à frente e voltou poucos minutos depois com o terror espelhado na face: «Estão todos mortos, os três. Dois estão voltados para cá e têm um buraco mesmo no centro da cabeça. Aquilo não foi entre eles, aquela guerra, foi alguém mais que anda por aí.»
 
A coisa estava a tornar-se mais complicada ainda e fora eu que tinha tido a ideia de fazermos aquela exploração por aquele lado da quinta da Ilda.Não sabíamos se devíamos voltar para trás ou seguir em frente.Já não sabíamos nada, estávamos todos aterrorizados.
 
Foi quando ouvimos uma voz ao longe dizendo: «Já podem passar, pessoal da cidade, eh pessoal da cidade, já podem passar!».
 
Embora as circunstâncias não estivessem de molde a fazer-nos seguir a sugestão sem pensar muito bem ficámos por ali um bom bocado até que ouvimos perto de nós o rastejar de calças a bater nas ervas e o som de botas.
 
A cerca de dez metros de nós, escondidos no matagal, vimos então um vulto entre as folhagens e as árvores que seguia de espingarda com mira telescópica ao ombro em direcção à Vila. ~
 
Não vi muito bem, nenhum de nós viu e todos vimos. Quem quer que fosse era uma pessoa que coxeava.

 

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