segunda-feira, 3 de junho de 2013

O casal hippie

 
O casal hippie
 
Quando da minha travessia por Espanha nos anos 60 apanhei boleia de um casal hippie que tinha tudo aquilo que normalmente se diz que os hippies tinham.
 
A moça era simpática, tinha uma cara mesmo linda, lourinha, mas via-se que o cabelo havia tempo que não via água o que me fez depressa adivinhar que o resto do corpo dela também não, embora aquele intenso perfume marroquino, o patchouli, no qual ela parecia ter-se banhado, afastasse qualquer onda de outro adivinhável mau cheiro.
 
Ele não lhe ficava atrás embora não me parecesse que usasse o tal perfume.Tinha cheiro a suor puro, intenso e devia ser gorduroso também, pois, de barba desgrenhada, o cabelo derramava-se sobre os seus ombros em pastéis de cabelo colado tal como a barba.
 
Os caracóis dele e uma fita vermelha a barrar-lhe a fronte disfarçavam um pouco o desarrumado pessoal composto ainda por um colete em imitação de cabedal com negruras gordorosas nas mangas, nos bolsos, no colarinho e sabe-se lá onde mais.
 
Tinham uma daquelas carrinhas volkswagen e na parte traseira, que foi onde ficámos os dois, eu e ela, havia um colchão preso por elásticos à parte lateral do furgoneta. Talvez por simpatia ela optou por vir fazer-me companhia na parte traseira, o que achei bem, mesmo que ela tivesse aproveitado a oportunidade para acender um charro e tentado partilhar com o condutor e comigo uma passa ou duas.
 
Eu não aceitei e simpaticamente disse quer era asmático e ainda tossi rouco um bocado para confirmar, mas para ela tudo bem, era verdadeiramente uma simpatia e resolveu fazer a parceria exclusivamente com o seu cara metade.
 
Fizemos cerca de duas horas de viagem juntos, o carro não era propriamente um fórmula 1 como se entende e acabámos por parar uns minutos enquanto eles entusiasmados tiravam fotos a uma enorme e solitária estátua de um pastor de ovelhas numa região perto de Vitória que teria esse seu símbolo.
 
Mais à frente à beira da estrada um indivíduo fardado fazia sinal para parar com a mão em palma o que assustou um pouco os meus companheiros ocasionais que começaram a murmurar «polícia, policia». Mas à medida que nos aproximávamos reparei que ela aí deitar qualquer coisa pela fresta da lateral porta de correr.
 
Eu já tinha achado estranho que a polícia, mesmo a espanhola e para mim estrangeira, não trabalhasse em patrulha dupla e à medida que nos aproximávamos vi que era um soldado, um tropa que teria vindo passar o fim de semana a casa e que aproveitava a farda para conseguir boleia através daquele interessante expediente.
 
Enquanto que eu e todo o usuário deste meio de deslocação metia o polegar à estrada, ele fazia o alto, tipo polícia mesmo e safava-se, pelos vistos. Ali safou-se...
 
Depois de eu ter dito que era «apenas» um soldado o «material» voltou ao lugar donde tinha saído, algures de entre as inúmeras saias que a jovem trazia vestidas e «acabámos» por dar boleia ao rapaz, que por acaso depois mostrou ser bastante humilde e de bom trato.
 
Largámo-lo nos arredores de Vitória, onde próximo deveria ser o seu quartel e foi depois dele se ter ido embora que eles me começaram a agradecer pela informação, que lhes tinha salvo o material que levavam e que seria difícil e dispendioso arranjar de novo.
 
Isto é uma pequena história, que tem um fundo moral, apesar de eu ter ajudado numa coisa que não é muito regular embora na altura fosse relativamente usual entre aquele pessoal.
 
O que me faz imaginar esta história é que aqueles dois ainda miúdos, de dezoito vinte anos no máximo, certamente fizeram como quase toda a gente daquela altura que eu conheci: tiraram um Curso Superior e transformaram-se ou em empresários ou quadros superiores de qualquer empresa.
 
De quase certeza um dia encontrarão num baú esquecido num sótão as tais fotografias da estátua do pastor de ovelhas, que depois largarão rindo muito alguns segundos porque estão com pressa. É fim de semana e têm de sair com os filhos e os netos.

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