sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A migração no concelho de Alcoutim

 
 
A migração no concelho de Alcoutim

Daniel Teixeira
 
 
Na região de Alcoutim, mais concretamente em Alcaria Alta, num Monte da Freguesia de Giões, todos os anos passava pelo menos um mês das largas férias que então a Escola Primária e depois a Escola Secundária proporcionavam, e isto enquanto não comecei a trabalhar.
 
A agricultura da qual viviam os meus avós, melhor ou pior, era então vista em certas regiões como sendo «a arte de empobrecer alegremente» o que de facto acontecia com eles, por razões também externas ao próprio facto agrícola mas de alguma forma com ele relacionados em termos estruturais.
 
As migrações eram quase uma opção de evidência comparativa e durante os primeiros anos da minha infância passaram por minha casa (a minha mãe tinha sido das primeiras a migrar) talvez duas ou três dezenas de pessoas, todas fazendo parte daquele conceito de família alargada que já não se usa. Mesmo quando havia necessidade de recorrer ao Hospital de Faro (agora Misericórdia) era a minha casa que essas pessoas iam bater o que acontecia quase naturalmente.

Como vivíamos numa casa composta por várias casas agregadas, um quintal enorme rodeado de casas que se tornavam habitáveis, mantiveram-se por lá algum tempo primos, primas e mais os eventuais que cobriam o seu tempo enquanto não arranjavam trabalho e habitação que se lhes ajustasse. Ora estas migrações tinham sangrado o ambiente rural, extremamente pobre em termos de produtividade e com uma falta de entusiasmo e iniciativa desoladora.
 
Lembro-me que sempre achei estranho e que referi várias vezes, mesmo criança e posteriormente jovem, que não compreendia porque é que as pessoas todas no monte não aproveitavam a água que escorria dos telhados durante as abundantes chuvadas de Inverno através da colocação de algerozes e bidões (não havia naquele tempo, de plástico) ou outras vasilhas (em barro eram abundantes e com tamanhos e formatos muito diversos).

Tínhamos (eu e meus irmãos) de alguma forma de «pagar» a nossa estadia e aligeirar um pouco a tarefa dos ainda não muito velhotes pelo que colaborávamos nas tarefas de agricultura na medida das nossas possibilidades e saber e idade.
 
A organização familiar, em termos económicos, respondia às necessidades e constrangimentos do tempo, segundo aquele velho princípio que se aponta à vida campesina: comida não falta, dinheiro é que não há. Lembro-me do meu avô se revoltar quando recebia o talão de pagamento do Imposto anual: 14$00 o que eu achava uma ninharia (meu pai ganhava na altura sensivelmente 400$00 por mês).
 
Minha avó, vinda de uma família remediada casara com o meu avô igualmente vindo de uma família remediada, mas sendo ambos de famílias numerosas o que lhes coubera como herança eram dois remedeios médios / reduzidos. Por opção acabaram por vir viver para a terra da minha avó que era simultaneamente o monte onde a maior parte da propriedade estava situada e onde o meu avô comprou casa (mil escudos ou dez notas) estando o restante da propriedade comum na terra (local de naturalidade) do meu avô situado a cerca de duas a três horas de marcha a pé, ainda que montados, no meu tempo já em burros.
 
As deslocações ao seu Monte, Mesquita (Freguesia de Vaqueiros), muito episódicas, processavam-se apenas em período de recolha dos frutos de algumas árvores, estando o resto do solo (que não era muito) sem tratamento ou cultivo. A nossa deslocação era feita praticamente a voo de pássaro (vol d’oiseau), se não tivéssemos de ter em conta os desvios que era necessário fazer para seguir os terrenos menos acidentados através de um caminho talhado a passo de pessoas e de bestas.
 
Quando referi acima que íamos (quando íamos) montados em burros é para esclarecer que quando mais jovem o meu avô (e a minha avó) tinham possuído uma égua, uma parelha de muares (mulas), duas vacas e um pequeno rebanho de ovelhas e algumas cabras. No meu tempo estavam reduzidos neste plano do gado a dois burros…
 
O facto de só terem tido filhas sobreviventes não deixa de ter aqui a sua importância: minha avó teve sete filhos três dos quais faleceram praticamente à nascença e morreu-lhes uma filha já com cerca de 20 anos.
 
Assim e como apanhado geral destas linhas temos que em termos de migração o pólo de atração, pelo menos final, parece ter sido Faro sendo que as causas da mesma se devem neste caso ao facto dos meus avós maternos não terem tido quem desse continuidade ao seu cultivo por não terem tido filhos do género masculino.
 
É claro que as filhas poderiam ter casado lá, na sua terra, substituindo assim essa necessidade, mas por aquilo que entendo as condições de futuro já eram fracas e a produção da propriedade detida insuficiente. Aliás essa migração já se desenhava havia anos através das expedições temporárias do meu avô e da minha avó e filhas: o meu avô trabalhou na construção dos caminhos-de-ferro (linha do Sul) e na construção da estrada que liga actualmente (ainda que renovada) Castro Marim a Alcoutim. A minha avó e as suas filhas, entre as quais ainda a minha mãe, faziam deslocações em tempo de ceifa ao Alentejo.
 
Acrescentou ainda o meu avô alguma actividade (na altura relativamente inocente) de contrabandista com Espanha – ovos, queijo e outros produtos alimentares – e uma outra de comerciante no sistema de trocas de utensílios de barro (feitos em Martinlongo) por outros produtos, muito nomeadamente figos secos vindos da Serra de Tavira.
 
Ora e tentando resumir o retrato parece-me evidente que o cultivo na serra algarvia não era de muita rentabilidade e que se tratava sobretudo de uma agricultura de sobrevivência a roçar já os limites mínimos: batatas, couves, tomate, feijão, etc. (entre os irrigáveis), trigo, centeio, cevada, tremoço (entre o sequeiro).
 
A falta de água era um handicap notável, e embora chovesse em abundância no Outono e no Inverno os lençóis freáticos não se abasteciam o suficiente e a água na sua grande parte, circulando em terrenos argilosos, era encaminhada para a Ribeira da Foupana, afluente na Ribeira de Odeleite e esta por sua vez afluente no Rio Guadiana.
 
A Ribeira da Foupana por sua vez tinha um caudal largo e tumultuoso e surpreendente – quer dizer, não era de confiança a vista de um caudal tranquilo uma vez que ela descia toda a Serra desde o planalto de Martinlongo cerca de 15 a 20 kms de curso – o que a tornava inultrapassável no Inverno mas ficava quase totalmente seca no Verão com excepção de alguns pegos onde se ia pescar (à lapa, quer dizer metendo as mãos nos buracos onde os peixes – e cobras – se aninhavam).
 
Em quase toda esta região foram plantados eucaliptos e pinheiros mas não tenho notícia que isso tenha alterado a forma de vida das pessoas na região residentes: os meus tios e tias avós continuaram a viver da mesma forma – mal – com uma situação adocicada pelas reformas da Segurança Social (antes Casa do Povo) e com dinheiros dos regressos da emigração de alguns.

Havia duas famílias «ricas» em Alcaria Alta, quer dizer, com maior posse de terra: um descendente de uma dessas famílias ainda procurou lutar um pouco contra a maré, comprou um tractor e outras alfaias mecanizadas, tinha um pequeno camião para transporte de gado e durante uns anos ainda tentou lutar contra a maré (talvez porque tivesse mais a perder perante o colapso) mas mesmo com o influxo da emigração regressada que de alguma forma veio trazer um maior manuseio financeiro e algum consumo à região isto de pouco terá servido.
 
A Associação In – Loco, que tive oportunidade de consultar e entrevistar na pessoa da sua então Directora Executiva (agora Prof. Doutora Alice Newton), co – Fundadora da Associação conjuntamente com o Dr. Alberto Melo, (pela últimas informações que obtive Director do Gabinete do Programa Sócrates da Universidade do Algarve) isto no princípio dos anos 90 de Sec. XX, tinha como perspectiva ajudar à fixação no local das populações residentes mas tinha a meu ver projectos utópicos; na altura estava a tentar resolver o problema da tradicional matança do porco através da compra de um atrelado matadouro que se deslocaria, segundo ela, na altura própria pelas aldeias e montes fornecendo condições higiénicas e seguras suportadas por Veterinários para que a mesma não fosse considerada, como era já na altura de «abate ilegal».
 
Ora o tal de atrelado, sem contar com o pessoal que lhe ficaria adstrito e a manutenção do mesmo implicavam um custo que qualquer mente mesmo contabilisticamente mal formada rejeitaria, mas estávamos nos tempos dos Programas Financiados pela C.E. e todo o sonho era possível, mesmo os impossíveis.
 
Por aquilo que conhecia já na altura as matanças de porco eram residuais, a electrificação da região levara ao consumo de outros tipos de carne e a rentabilidade da criação do tradicional porco estava relacionada com a actividade agrícola (os tremoços plantados pelo meu avô tinham como grande destinatário o porco de engorda) e não eram, estas matanças, tal como me pareceu que se pensava, um costume imbatível a qualquer custo.
 
O mesmo fenómeno, ainda que noutro campo, tinha tido lugar com a não menos tradicional cozedura do pão, em fornos conjuntos, espalhados pelas populações: assim que apareceram as primeiras reformas da S. Social e se começou a vender pão de aldeia a aldeia as pessoas, umas por impossibilidade física devido ao avanço da idade, outras porque fizeram as contas como eu.
 
Verifiquei que um pão de forno custava três vezes mais que um pão de padaria – feito com farinha subvencionada – não contando eu com a mão-de-obra que considerei voluntária. Logicamente depressa se entrou pelo lado prático da vida não se compadecendo esta com visões idílicas de um primitivismo rural que me parecia imperar nas visões citadinas mais «iluminadas».

Aliás foram feitas tentativas de criação de empresas cultivadores de chás medicinais de curta duração e todo um conjunto de iniciativas: este tipo de associações que eu conheci, por algum trabalho meritório que tenham feito sobretudo a nível da conservação e criação de atractivos monumentais, ou incentivos a arranjos paisagísticos, eram associações que eu mesmo nunca compreendi como podiam ser suportadas pelos fundos estruturais: 90% do seu pessoal era altamente qualificado (psicólogos, etnólogos, sociólogos, etc.) e, em rigor, não havia ninguém para trabalhar de uma forma acessível e interactiva com as populações.
 
Resultado disto, e utilizando as palavras de Jean Piaget «o bom professor não é aquele que ensina mas sim aquele que desperta a vontade de saber» estas operações destas associações passaram ao lado das populações até porque por natureza própria tinham de passar, na sua larga medida: as coisas não se implantam de fora para dentro, o orgulho da população rural não é pedra morta e o direito de dispor da sua propriedade a seu belo gosto (mesmo errado) não é fácil de vencer sobretudo por pessoas e soluções que não têm qualquer relação afectiva com a terra e o campo.
 
Como resumo intercalar, temos que a migração campo / cidade não é um impulso, que ela faz ensaios no tempo:

Temos o caso do meu avô e de dezenas, pelo menos, de colegas dele, que ela segue, como no caso da minha mãe, por ensaios (períodos da ceifa no Alentejo) e das pessoas que ficavam em nossa casa, e tem uma linha de familiaridade mais estreita ou mais larga, que mantém (caso das minhas férias anuais e da minha mãe e do meu pai no que se refere à região de naturalidade da minha mãe) ligações com a origem e que só progressivamente ela se concretiza, neste caso já na segunda geração, que é o meu caso.
 
Isto não é científico, como parece evidente, é uma percepção que se encontra ainda alicerçada no facto de que uma parte substancial dos emigrantes voltar às suas terras de origem, fazerem uma casa e viverem ali a sua pré-reforma ou reforma, ambição que também é comum aos migrantes; quase todos eles querem voltar às suas terras para passar a reforma (e morrerem lá, sic.). Os filhos em princípio não partilham dos mesmos ideais…
 
Estas ilações só têm interesse no sentido em que o diferencial atractivo campo/ cidade não é assim tão grande como isso o que por outras palavras também poderá dizer que os postos de trabalho ocupados no local de recepção migrante não são dos mais qualificados (e dos melhor remunerados), o que seguindo a mesma linha de raciocínio nos levaria à escolaridade e à qualificação profissional.
 
No que se refere, por outro lado, à minha ocupação no cuidado da terra, tema que não foi ainda desenvolvido, devo dizer que me limitei sempre a seguir os processos empregues no local, até porque dada a pouca idade e dadas as aberturas em termos imaginativos, foi certamente a melhor solução.
 
Reguei batateiras, couves, tomateiros, feijão verde, – na altura – algum dele era mesmo para secar – num sistema de recolha de água que me fez anos depois lembrar os ilhéus de Dobu: os poços, secos, tinham de ser descidos em escadas de pedra até ao fundo (normalmente não mais de três/quatro metros), as latas de zinco de recolha para trazer água de jeito tinham de ser deitadas na poça e esperar muitas vezes que a fonte debitasse mais água, algumas vezes escavava-se para tentar obter uma maior fundo livre para pouso do balde / lata e subia-se e descia-se as vezes que fosse necessário até obter um mínimo razoável de água por casola, doseando a mesma de forma a obter líquido para todas ou para a larga maioria.
 
Para o efeito os tempos de pousio aquífero eram espontaneamente calculados de acordo com as necessidades de rega das plantas e o volume de débito do poço e era também calculado o tipo e diversidade de plantas a semear por unidade (horta). Por isso encontravam-se batatas, couves, feijão, por exemplo, em várias unidades de cultivo, doseadas espontaneamente de acordo com o potencial de água disponível, quando a lógica mandaria que em cada horta se plantasse uma só espécie preferencialmente.
 
A falta de água levava a uma organização dos poços comunais também (três, ao todo) servindo apenas um para dar de beber às bestas. Já muitos anos depois foi conseguida uma bomba de roda num dos poços e só poucos anos atrás foi de facto conseguida a alimentação de água de forma eficiente para o monte, através da reperfuração de alguns dos poços já existentes, e isto numa altura em que os habitantes do monte na sua larga parte nem sequer tem condições físicas para se deslocar a esses mesmos poços (a pessoa mais nova naquele monte tinha na última vez que fiz as contas cerca de 70 anos).
 
Por mais de uma vez assisti a tentativas de obter maior fluxo de água aprofundando à sorte através de paus de dinamite. Um senhor, o famoso Ti Zé Pereira, que foi dado como quase morto num hospital de Lisboa e que regressou a casa alegadamente para morrer com a família recuperou extraordinariamente e tornou-se no maior inventor do monte de Alcaria Alta, mas tinha um problema de raciocínio: primeiro fazia o projecto de colheita e rega exterior e depois é que tentava encontrar a água, tão confiante que estava que o poço original (quase seco) tinha potencial certo.
 
Era assim interessante vê-lo ano após ano a bombardear o fundo do poço, que deitava todos os anos um bocadinho mais, é um facto, mas não atingia o volume por ele desejado.
As batatas plantadas não eram batatas semente, assim como o resto: não havia dinheiro nem se justificava tal, pelo que eram escolhidas as sementes entre aqueles legumes que maior volume ou aspecto apresentavam à colheita.
 
Era sem dúvida uma agricultura biológica, toda estrumada, com excepção das colheitas de cereais, em que um dos lavradores ricos comprava o guano (nitrato do Chile, na altura, que também é estrume ainda que tratado e concentrado) e depois revendia às sacas. O ciclo do azoto era assim quase naturalmente obtido por força das próprias condições e hábitos envolventes.
 
A compostagem de resíduos orgânicos não se fazia porque em grande parte aquele pessoal utilizava os mesmos métodos de cultivo que os seus país e os seus avós devido a razões evidentes: os jovens não se interessavam pela agricultura (antes eram incentivados a escolher outras profissões e a partir) e a idade média do agricultor habitual não pressionava no sentido de haver modernização de métodos ou processos agrícolas. Por outro lado o volume de resíduos orgânicos era relativamente baixo: os talos das couves por exemplo eram picados para porcos e galinhas e havia a alternativa concentração de estevas apanhadas em monte que serviam em parte para o aquecimento das casas, para o forno (neste caso normalmente também loendro da ribeira) e para cozinha sendo o excedente (bastante) queimado em queimadas cujas cinzas depois se espalhavam pelos campos de sequeiro. O estrume era o mais utilizado (sendo mesmo abundante e ficando de ano para ano).
 
Não sei até que ponto a PAC (Política Agrícola Comum) terá contribuído para a desertificação e migrações mas não me parece por aquilo que sei, por experiência própria, que ela se tenha feito sentir de uma forma positiva directa junto das populações envolvidas. Todo o Concelho de Alcoutim (o mais envelhecido do País) sofreu uma razia monumental e nos últimos anos / décadas nada que tenha sido feito tem produzido o sentido inverso.
 
Em jeito de remate durante a feitura deste esboço tive acesso a estudos comparativos sobre a divisão da terra nas semelhantes zonas fronteiriças de Portugal e Espanha tendo verificado que tanto no que se refere à dimensão da propriedade, ao número de cabeças de gado e à dimensão dos núcleos semi-urbanos e urbanos as diferenças são quase abissais, pelo que a excessiva divisão da terra existente deste lado de cá da fronteira são pelo menos a causa predominante que de nossa lavra podemos apontar.
 
Fevereiro de 2010

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