segunda-feira, 10 de novembro de 2014

O café suspenso - Conto de Daniel Teixeira

O café suspenso - Conto de Daniel Teixeira

O homem espreitou pela porta entreaberta e perguntou ao senhor do balcão se havia algum café suspenso que ele pudesse tomar e este respondeu-lhe que não havia nenhum café suspenso mas que ele podia arranjar. Ele que entrasse, disse-lhe.

A pastelaria estava vazia e o senhor que estava atrás do balcão e que limpava copos com um pano branco perguntou então ao homem que tinha já entrado se ele não queria outra coisa, talvez uma sandes e um galão, disse.

Ele disse que sim, o homem, disse que agradecia. Não lhe disse, nem iria dizer a ninguém que não fosse um mendigo como ele e se isso calhasse em conversa, que era já o quarto café que pedia nos estabelecimentos da zona e que até ali não tinha encontrado nenhum café suspenso.

Agora tinha ali a sorte de lhe sair uma oferta de uma sandes e um galão em vez de um só café, como buscava, o que era bem melhor, conforme também tinha dito o senhor que estava atrás do balcão. E era verdade, certo que era verdade.

O facto de ser aquele o quarto estabelecimento onde perguntava por um café suspenso, era coisa para ele pensar para si mesmo ou para falar com outros amigos mendigos se calhasse a jeito porque estas e outras coisas menos boas os mendigos não dizem a ninguém que não seja mendigo.

E não dizem a mais ninguém senão a mendigos, explicava-se ele a si mesmo enquanto ia entrando na pastelaria, porque se o dizem ninguém os ouve e se os ouvem fazem como se não ouvissem. 

Nada deve ser mais insignificante para aqueles que não são mendigos do que as palavras de um mendigo, porque só os mendigos entendem os mendigos. Ele sabia bem isso quase desde sempre. Os outros, os que não são mendigos, têm muita coisa em que pensar e se jogam uma moeda para o boné que ele mete no chão fazem-no quase mecanicamente, sem consumirem uma nesga do seu pensamento.

No fundo devem ter pensado um dia, há muito tempo já e isso ficou-lhes gravado na memória reflexa para sempre, que um ser que arrasta a sua miséria pelas ruas tem não um dom mas o defeito de ser pouco visível, de não contar mesmo como gente.

Por vezes, pensava ele, que se retirasse o boné do chão à sua frente ninguém notaria que ele estava onde estava. Gostava de pensar assim estas coisas, que seria, sem o boné no chão, um obstáculo a contornar assim como se contorna um cesto de papéis ou uma caixa de cartão abandonada no solo.

No último café onde tinha assomado o homem do balcão até o tinha insultado, e esse tinha mesmo reparado nele ao contrário dos outros dois anteriores que responderam com um curto «não» à sua pergunta por um café suspenso. Tinha esse homem corrido em direcção a ele vindo lá do fundo contornando as mesas mas a presença dos dentes afiados do seu lobo, como ele lhe chamava, levou-o a recuar vociferando. «Deixa, Lobo, não vale a pena...» disse então ele ao cão afagando-lhe a cabeça e puxando-o pela trela.

Ali, onde agora estava sabia que era bem melhor, o galão, é claro: era cedo, para aí sete horas e pouco da manhã e desde o jantar na Misericórdia às sete da véspera ainda não tinham comido nada nem ele nem o lobo que aguardava obedientemente na rua, perto da porta e à volta dos sacos.

Tinha passado a noite no local do costume, entre as escadas e o vento frio que enregela os ossos e tinha dormido aos poucos uma hora agora, meia hora depois, respondendo por vezes aos rosnares do lobo, que dormia e fazia a guarda dos poucos haveres de ambos.

Fazia-lhe uma festa na cabeça logo que se apercebia que era falso alarme, mas noutros dias nem sempre era falso alarme. Mas os dentes do lobo e o seu corpanzil metiam respeito mesmo.

Havia bêbados e meninos mimados que se aproximavam por vezes e até mesmo outros mendigos recém chegados à cidade ou de outras zonas daquela que frequentava e que não respeitavam nada nem ninguém.

Os bêbados, os meninos mimados e os mendigos estranhos eram quase iguais para ele, tinham quase o mesmo valor que para ele era nada. Mas eram um nada diferente daquele que ele era, como mendigo, porque há várias formas de se ser nada.

Era assim, grande e sempre vigilante o seu lobo, como lhe chamava. Já havia anos que o tinha encontrado, magro e sujo e cheio de fome e frio numa ruela escura catando o lixo de um contendor e fora amizade à primeira vista, como costumava dizer para si mesmo. Ele e o lobo naquela noite estavam ambos sozinhos neste mundo e cada um deles precisava do outro. Foi assim que isso começou.

Cuidara dele como pudera, aos poucos foi tratando da papelada, das vacinas e hoje estava tão legal como ele se é que ele estava mesmo legal o que nem sempre sabia porque nestas coisas um mendigo tem um estatuto à parte, bem mais exigente do que aquele do comum dos cidadãos.

Tinha estudado e lembrava-se bem que havia um autor que tinha dito que havia seres humanos que eram mais iguais que outros, mas sempre que pensava nele, como agora estava a pensar, dizia para si mesmo que ele se esquecera, esse autor, que para além desta desigualdade entre iguais havia ainda mais desigualdades. Na verdade há desiguais que são mais desiguais ainda que outros desiguais e ele reaprendia isso todos os dias.

O senhor fez então a sandes e o galão e disse-lhe para ele se sentar ali mesmo, ao balcão. Sempre estava melhor, acrescentou enquanto olhava para a montra e via o cão espreitando cuidadoso. Perguntou então se o cão era dele e ele disse que sim acrescentando que ele não ia entrar na pastelaria, que estava bem ensinado.

Mas não era isso que o senhor da pastelaria queria saber e acabou por lhe perguntar se o cão não teria fome também e o sem abrigo, que era ele, respondeu que lhe ia dar a metade da sandes que tinha posto de parte no prato.

Pode comer a sandes toda , disse o senhor do balcão que devia ser o dono do café, que eu arranjo-lhe qualquer coisa para o cão. E abriu uma porta que estava por detrás do balcão e começou então a juntar numa embalagem de alumínio alguns rissóis arrendados e pastéis de carne, daqueles compridos cobertos de pão ralado.

Eram da véspera acrescentou o dono do estabelecimento - só podia ser o dono, pensou - mas estavam bons, ele mesmo os comia durante o dia porque a clientela só quer coisas frescas e a brilhar. E ele, o mendigo, não gostava de falar muito com pessoas assim, que não fossem tão desiguais como ele, mas balbuciou então que sim, que estavam mesmo com bom aspecto, os rissóis e os croquetes.

Acabou de beber o galão e de comer a sandes e encaminhava-se já para a porta com a os pastéis que dariam para ele e para o cão ao mesmo tempo que ia agradecendo - isso dizia sempre - quando o homem saiu de trás do balcão e lhe disse para esperar um pouco ao mesmo tempo que metia a mão num bolso das calças e dizia «Tome lá dez euros, não é muito mas é o que posso dar a esta hora, ainda não fiz nada de caixa.»

O mendigo pensou se devia ou não devia aceitar mas não podia recusar também, ficava mal e ainda disse que era muito, mas o homem meteu-lhe mesmo os dez euros na mão e regressou para trás do balcão.

Chegado à rua tratou de dar logo dois pastéis ao lobo e já a meio da rua, enquanto arrastava os sapatos na calçada, disse ao lobo no tom peremptório que ele entendia bem:

«Não vamos voltar aqui, lobo, nunca mais. Nunca mais, ouviste!?» e como se ele, o lobo, ainda lambendo a boca e olhando para ele lhe tivesse perguntado porquê respondeu-lhe: «As pessoas que dão muito mais do que aquilo que se lhes pede, não são aquilo que parecem e nem são boa gente. Têm, sim, muito contrabando na alma que querem que lhes seja perdoado!»

Daniel Teixeira

1 comentário:

  1. Bom retrato do carinho tão frequente entre sem-abrigos e cães, aqueles que os amam sem julgar. E um final inesperado, uma conclusão estranha que deixa espaço para refletir.

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