domingo, 30 de novembro de 2014

O preço dos figos - Conto de Daniel Teixeira


O preço dos figos - Conto de Daniel Teixeira

De calças compridas dali onde estava, eu nada percebia no seu corpo levantando-se e baixando-se sob uma figueira. De costas abaixadas aqui rente ao chão, a pessoa que eu via logo levantava o dorso mais além num emaranhado de ramos e ramagem onde despontavam pequenos pontos arroxeados. 

Virou-se então um pouco e ainda ao longe na minha direcção e eu, incerto, penso ter divisado um volume de seios. Talvez fosse uma mulher que colhia figos e que olhava de quando em vez em redor de si e das figueiras como se estivesse receosa. E devia estar, pensei eu.

As figueiras que pontuavam pelo pequeno monte não eram daquela pessoa, isso eu sabia e talvez fossem - e isso eu não sabia bem - de um homem de meia idade parecendo um pouco sujo e de barba salteada que por ali cirandava de quando em vez com um feltro escuro na cabeça e um colete sobre a camisa.

E então a pessoa que apanhava figos deslocou-se para uma outra árvore que estava mais perto do local onde eu observava e eu então vi perfeitamente que se tratava de uma mulher de cabelo enrolado em quase carrapito e um chapéu de palha que me pareceu desfiado nos bordos que transportava duas largas cestas de verga. 

Eu não tinha nada a ver com isso, quer dizer, nada tinha a ver com os figos e eles eram tantos ao longo das figueiras na pequena encosta que mesmo que estivessem a ser roubados pouca diferença fariam ao homem um pouco sujo do colete e do chapéu de feltro, se ele fosse mesmo o dono das árvores o que eu não sabia.

E a mulher aproximou-se ainda mais e eu, na sacada da minha varanda, três andares acima do solo que ela pisava, vi aproximar-se um miúdo, talvez com seis ou sete anos. Não deveria ter mais que isso, com certeza e tinha vestidos uns calções de ganga com suspensórios e disse-lhe «Mãe, dá-me um figo».

A mulher, talvez porque não esperasse que o miúdo ali aparecesse pareceu ficar um pouco mais assustada do que aquilo que me parecia antes e segundos depois deu-lhe um figo que o miúdo quase mastigou de uma vez. «Mãe, dá-me mais figos» disse logo em seguida o miúdo. 

Ela então respondeu-lhe que não podia dar-lhe mais figos, que os figos eram para ela ir vender mas mesmo assim o miúdo repetiu o pedido: «Mãe, dá-me mais figos» e a mulher então colocou as mãos nos quadris e disse-lhe que com o dinheiro da venda dos figos ia comprar pão e leite e massa para ele e para os irmãos e deu fim ao pequeno discurso com um autoritário «Vai para casa».

O miúdo encolheu-se um pouco mais na sua pequenez, tentou fazer outra tentativa para que a mãe lhe desse mais figos, isso eu percebi pela postura dele, mas acabou por sair dali a correr e a mulher retomou então a sua tarefa, baixando-se e levantando-se sobre a farta figueira que estava três andares de prédio abaixo de mim.

Não demorou muito que o miúdo voltasse, talvez cinco, talvez dez minutos, fazendo um pequeno ruído com os sapatos no terreno que despertou a atenção da mulher. Antes que ela tivesse oportunidade para dizer o que quer que fosse o miúdo disse-lhe então: «Mãe, vende-me figos» ao mesmo tempo que mostrava na palma da mão algumas moedas escuras.

O que ela então quis saber foi onde ele tinha arranjado o dinheiro e o miúdo respondeu que tinha sido o tio que estava à porta da taberna que lho dera, sem ele pedir, acrescentou, ele não pediu nada, ele simplesmente lho dera como fazia algumas vezes como a mãe sabia, foi dizendo.

A mulher então retirou uma mão cheia de figos de uma das cestas, com a outra mão recolheu o dinheiro e entregou então os figos, talvez meia dúzia, não mais, na concha das duas mãos do miúdo dizendo-lhe que era esse o preço dos figos, que ele fosse para casa e que se não conseguisse vender todos levaria o resto para casa, para ele e os irmãos comerem o que fez estampar um sorriso largo na face do miúdo que chamou de António.

Não pensava ficar por ali mais tempo, eu, e não teria ficado se entretanto não tivesse reparado que o homem um pouco sujo, que usava um colete por cima da camisa e um chapéu de feltro e que eu pensava ser o dono das figueiras não tivesse assomado mais abaixo junto a um canavial que corria ao longo de um ribeiro de inverno. 

Assobiou, ele, o homem, e ela, a mulher que apanhava figos olhou à volta e deixando as cestas de verga foi em direcção ao canavial. Talvez eu não devesse ter visto o que vi, talvez eu não devesse ter visto o resmalhar nas canas, talvez eu não devesse...Bem não devia mesmo. 

Há coisas que não são para se ver, mas se o não tivesse feito não teria visto a mulher regressar recompondo a recomposta blusa entre as calças, não teria adivinhado como adivinhei e depois vi as lágrimas escorrendo pela face dela e não saberia que o preço dos figos, o verdadeiro preço dos figos vai por vezes muito além do valor de algumas moedas.

Daniel Teixeira



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