sábado, 8 de dezembro de 2012

ALCOUTIM - Recordações (Crónicas e Ficções Soltas) I - Por Daniel Teixeira

 

ALCOUTIM - Recordações (Crónicas e Ficções Soltas) I - Por Daniel Teixeira

Pedindo as minhas desculpas ao amigo José Varzeano por estar a retirar-lhe a integralidade da página / tema gostaria de recordar aqui algumas das minhas memórias recolhidas neste Monte da Mesquita referida por ele, terra da naturalidade do meu avô materno.

(ver texto do José Varzeano aqui)

Conforme referi no meu texto geral sobre esta região e nas minhas demasiado curtas memórias já escritas no Alcoutim Livre sobre estes locais onde passei vários meses todos os anos, devo agora à distância confessar que sei ter algumas memórias destes meus tempos de infância e juventude, mas...por estranho que eu mesmo acho ser, tenho uma recusa quase instintiva em aprofundar muita coisa.

A explicação que eu tenho encontrado vacila muito entre o desejo de guardar desse «meu» outro Monte (Alcaria Alta) uma boa memória e prende-se também com o facto de que agora, tudo visto à distância, os laços de afinidade, eclipsando-se com o tempo e com o desaparecimento das gentes - levei muito tempo a ir regularmente a Giões a funerais de familiares directos e indirectos e seus e meus amigos - acabam por fazer definhar esses laços, acabam por os fazer perecer, e a gente, estando por lá ou falando de lá, pergunta-se interiormente, mais vezes do que gostaria, por aquelas pessoas de quem gostava e gosta tanto...

Por onde andará o meu velho avô que nas minhas memórias ainda me aparece claramente, deitado, de chapéu tombado sobre a cara, no poial da pequena cerca da arramada, de cabeça encostada a uma albarda, de botas surradas e onça de tabaco espreitando no bolsinho do colete?

Que é feito do seu ar envergonhado pedindo-me ajuda para subir o para si já pesado arado para cima da albarda do burro? O que é feito do seu ar comprometido a bater com uma esteva as redondezas do nosso poiso nocturno em noites de dormir ao relento em folhas de terra mais distantes? Seria porque já fora picado por lacraus e ele mesmo tinha medo dessa dor horrível ou seria para que isso me não acontecesse a mim?

Que é feito de minha avó, por onde andará ela, a mulher que mais cedo se levantava em Alcaria Alta e que percorria ainda noite os caminhos para chegar ao romper da luz às hortas, regar e repartir para uma outra e outra e outra antes que o sol começasse a queimar?

«Sentindo passos atrás de si, não muito longe de si, na noite escura como breu, agarrou numa pedra maior que as suas  mãos e gritou: - Quem quer que venha aí que passe para a minha frente e que mostre a cara! - Sou eu Ti Virgínia - o João!»

Este, coitado, esteve uma enormidade de anos na Alemanha, comendo o pão que o Diabo amassou, para vir morrer de ataque cardíaco não muitos anos depois do seu regresso...por isso, também, que é feito da vida que eu tive nesses sítios ? O meu amigo Juanito, morto no Ultramar, o Antonico igualmente já falecido, o seu irmão mais velho falecido há poucos anos aqui no Hospital de Faro e que na violência do seu mal nem sequer me reconheceu?

Eu, sem mal que me apoquente, não me reconheço nem reconheço a «minha» Alcaria Alta de hoje: para mim desde há alguns anos, desaparecido o laço que me mais fortemente me ligava a ela, a minha mãe, recuso-me a aceitar a Alcaria Alta de hoje.

Há tempos, li num blogue de uma pessoa que penso ser a filha da Odília Guerreiro - filha do João Baltazar  - que o senhor Zézinho Martins andava a pastar o seu próprio gado: um dos homens mais ricos de Alcaria Alta, um lavrador que enchia a cozinha ao almoço e ao jantar com pelo menos uma vintena de ganhões em tempo de arado, ele mesmo, a dar pasto ao seu próprio gado (duas ou três reses pelo que percebi).

Não é que lhe caiam os parentes na lama, não se trata disso, mas é porque não há gente para ajudar (trabalhar) e porque apesar de tudo é preciso fazer continuar a vida mesmo que ela nos escorra pelos quadradinhos do calendário. O Zé Lourenço, seu «criado» (por vezes zangava-se e ia trabalhar para a «concorrência» - o outro lavrador do Monte) que tinha medo das trovoadas e que largava tudo assim que começava a trovejar, estivesse onde estivesse: largava tudo menos as bestas, e lá vinha ele, de chapéu na mão, aterrorizado, arrastando as arreatas, sem outra reacção que não fosse rezar a Santa Bárbara...

Zé Lourenço...o «pão de centeio», talvez o último serviçal, aquele que nas noites de trovoada dormia no quarto do patrão rezando até de manhã.

Pois eu, se bem me lembro daquilo que me lembro das deslocações com meu avô ao Monte da Mesquita, é de um facto cuja importância este texto do José Varzeano me fez afinal fundamentar sobre uma percepção esquisita que eu tinha desse Monte da Mesquita. Não se via vivalma...e havia ainda gente no Monte...

Habituado à franqueza daquelas casas portuguesas que conhecia pelos montes ao redor, com oferta insistente de cafezinho e pão com queijo e presunto, com as portas das cozinhas sempre abertas - chegávamos a tornear algumas passagens por termos a barriga a estourar - na Mesquita ali ficávamos os dois, recolhendo as azeitonas, as alfarrobas e comendo solitários do farnel: nem pessoa se aproximava e no entanto meu avô era de lá, quer dizer, tinha nascido lá: deveria haver alguém que pelo menos o conhecesse ou que ele conhecesse, mas não: acho que aquele Monte já estava moribundo mesmo, desabitado mesmo que estivesse habitado, sem alma, sem memória viva.

Acontece...os Montes são quase como algumas pessoas...podem eles também morrer muitos anos antes de morrerem de facto.


Publicado pela primeira vez no Jornal Raizonline 102 de Janeiro de 2011

 

2 comentários:

  1. Muito lindo, este texto, que só descobri agora, Cheio das nossas memórias. Todos os que nomeias fazem parte das minhas vivências de infância. Tão bom recordar... Grata, Daniel Teixeira.

    ResponderEliminar