segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

A História Interminável do Diário de Irene VI

A História Interminável do Diário de Irene VI

Através do relacionamento dos mais velhos com os miúdos e destes com ela mesma ao puxar-lhe o nariz nos primeiros dias a Irene não se apercebeu daquilo que seria evidente e que qualquer psicólogo exploraria desde logo: havia uma extraordinária capacidade de tolerância e uma margem grande para o perdão naquela pequena sociedade que roçava a impunidade. Os putos faziam o que queriam, não adquiriam a identificação separadora entre o bem e o mal e numa sociedade moderna poderiam tornar-se em perigosos sociopatas. Mas, pela leitura do Diário de Irene tanto o psicólogo como eu teriamos de chegar a uma outra conclusão.

Não havia reprimenda para os putos, que por vezes davam caroladas fortes nas cabeças dos mais velhos, porque naquela sociedade não havia a necessidade de haver a ancestral separação entre o bem e o mal. Tudo era bem porque tudo estava bem: não havendo diferenciação entre mais poderosos e menos poderosos, mas sim uma distribuição da autoridade que se manifestava sob a forma de sugestão e da exploração da especialização - como explicarei melhor à frente - o conflito era desnecessário porque as coisas compunham-se no tempo tal como tinha acontecido com os puxões dos putos (e pitas) ao nariz de Irene.

Os moços cansavam-se da "brincadeira" e  sem me socorrer de estatísticas (que a Irene não fez, como é claro!) é de adivinhar que os objectos das caroladas dos putos variassem de tal forma no tempo que calhasse, por exemplo, um carolada mensal a cada um dos habitantes da ilhota. Ora uma carolada por mês não é nada...e qualquer psicólogo reconhece isso.

Mas a Irene, que é a protagonista principal por enquanto desta história (e mais à frente falaremos do Mabula), começou a acarinhar a sua cubata, sempre de "janelas" abertas. Era assim como que uma base redonda tapada até meia altura de  madeira e "palha" seca das árvores, com quatro paus enterrados na areia solidificada por acalcamento e molha entranhadora e um tecto do tipo colmo, daqueles que se vêm em África, mas composto por uma mistura de ramos e raminhos secos muito bem atados entre si que protegiam da chuva miudinha e da humidade da noite.

Não tenho notícia, no diário que li, de uma chuvada mais forte e nem sequer de uma ventania. O acaso colocara aquela ilhota num ponto morto geográfico onde as tempestades caraibianas  não chegavam, segundo constatei depois por consulta. E ainda bem, tanto para o habitantes da ilha como para a Irene porque calculo que ela sucumbisse ao primeiro tufão de escala abaixo de zero, tal o seu hábito citadino de se recolher debaixo dos toldos dos cafés e das lojas ainda antes de começar a chover.

Ora a acção da Irene em relação à sua cubata foi a de dividir a mesma com os lençóis que tinha trazido em três partes: quarto, sala de entrada e cozinha. Era certo que não cozinhava nada, as mulheres indígenas tratavam disso tudo, mas à cautela resolveu fazer uma cozinha, até porque achava que uma casa sem cozinha não é casa. A sala de estar, bem mais acomodada com as esteiras que colocou tinha à altura da vista um tronco seco de topo plano com uma caixa de cartão rectangular em cima para lhe fazer lembrar a televisão.

O quarto, esse, refúgio da sua intimidade mais íntima estava envolto a toda a largura, na parte da "janela", por um grosso emaranhado de ramos feito por ela com um buraquinho propositadamente deixado para quem quisesse espreitar, coisa que não parece ter ocorrido nem sequer às traquinas crianças durante os primeiros dias.

Por uma razão que ela desconhecia a população local não mostrava grande interesse em conhecê-la mais do que aquilo que ela mesmo mostrava, e isto ela não compreendia, embora eu, como observador externo (e um bocadinho mais inteligente que a Irene, convenhamos) me tenha apercebido que a indiferença simpática a que a Irene estava votada se devia ao facto de ela ser extraordinariamente magra para a sua idade, segundo os canones culturais da ilhota.


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