segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A História Interminável do Diário de Irene

A História Interminável do Diário de Irene

Ela não era bonita, nunca tinha sido bonita, nunca seria bonita o que me leva à constatação de que há pessoas que nascem, crescem e morrem sem nunca serem bonitas. No caso dos homens o problema resolve-se, penso eu, corre por aí que as mulheres não se importam muito com essas coisas, mas no caso da Irene (ainda por cima se chamava Irene) ser feia era um traço que lhe tinha sido escrito em cima por algo que se pode chamar destino.

Mas tratava-se ainda, nesta altura que refiro, quando ela tinha cerca de trinta anos mais ou menos (não sou muito bom em datas) de pensar num percurso de feiúra ainda a percorrer. Qualquer mente, mesmo sem ser muito dotada para a imaginação sentia-se quase na obrigação de projectar para ela um percurso crescente de feiúra: era fatal, penso eu, que alguém não visse, desde a primeira vez que via a Irene que o que lhe restava a ela pela frente era ser precisamente igual à sua mãe, boa senhora, por sinal, conformada com a sua fatalidade.

Quando se olhava para a Irene via-se logo o realce em zoom e profundidade das rugas à volta dos olhos, o crescimento dos chamados papos, o encarquilhar lento mas irremediavelmente progressivo dos lábios, agora ainda relativamente carnudos, empurrados para dentro dela pela perca de alguns dentes (primeiro os sobressaídos da frente) e aligeirado o afundamento pela colocação de uma daquelas placas em prótese branquérrima, denunciando, não (!) clamando (!!) em voz alta desde logo a sua artificialidade.

Via-se perfeitamente que a placa descolaria do céu da boca quando ela se risse muito, coisa que fazia agora, rir sem complexos, e sabia-se que o queixo dela se afundaria cada vez mais, misturando-se com as rugas do pescoço (se engordasse talvez se misturasse com o papo) mas o que interessava era que por mais voltas que a sua fisionomia desse nunca ela ou outros veriam decrescer aquele nariz enorme, um autêntico triângulo bermudiano apontando para uma distância incalculada nos mares à sua frente, uma penca desproporcionada, uma verdadeira intrusão de um corpo num espaço roubado, um geométrico apêndice de arestas afiadas no perfil, uma agressiva e quase cortante intrusão no espaço vital de quem a visse de frente.

Pois...a Irene não tinha passado de beleza, não tinha presente de beleza e o futuro era ainda mais ameaçador para ela. Mas, e há sempre um mas que merece ser metido em altura oportuna, consta que constava que a Irene confidenciava repetidasmente às suas amigas, já trintona nesta altura em que escrevo, um segredo que era simultaneamente sentido como um chamamento: " Tenho de casar rapidamente!"- dizia - como que a constatar aquilo que eu tenho descrito atrás e acima. "Tenho de casar rapidamente, antes que a minha feiúra progrida ainda mais!"- era o qe a Irene queria dizer, digo eu.

Possibilidade de fazer plásticas não havia: a Irene era apenas e só economicamente remediada: tinham, ela e a mãe - o pai falecera oportunamente - algumas rendas de pequenas propriedades, de casas antigas, algum dinheirito a render, pouco, seguramente e trabalhar por conta de outrem não era tradição na família nem sequer sei que actividade poderia exercer a Irene porque nunca a essa ideia se dedicara e o tempo normal de começar estas coisas já tinha passado.

Não sei exactamente como tudo se passou antes, nem quais os preparativos que a Irene terá eventualmente feito e também não consta que tenha dado conta de alguns desses preparativos às amigas mais chegadas, mas o certo é que um dia a Irene foi num cruzeiro à Ilha dos Narigudos.

Eu calculo que possam os meus escassos leitores achar absurdo o rumo que esta história está a levar, mas confesso com toda a sinceridade que não acrescento nem deturpo nenhum ponto a esta história: nem eu mesmo sabia que havia uma Ilha dos Narigudos antes do amarelecido diário da Irene ter chegado às minhas mãos.

Um livrinho com cerca de 500 páginas, manuscrito numa letra extremamente feia, uma letra à Irene, ao fim e ao cabo. Mas o volume que me chegou, infelizmente, apenas abrange algum tempo do período seguinte à sua viagem à Ilha dos Narigudos o que me leva a fazer este reparo que se segue, não sem antes dizer que fiz todos os esforços para conseguir o volume ou volumes anteriores e mesmo posteriores se os houvesse, (os posteriores) e o que recebi não vinha numerado.

Pois bem... (início do reparo) tendo eu conhecido a Irene, a sua vida, por contactos relativamente próximos: éramos e somos, penso eu, pessoas da mesma geração, é na parte do seu diário, naquela parte que ela desenvolve e que me chegou às mãos, que é a parte da sua vida após o cruzeiro à Ilha dos Narigudos, que eu ponho a Irene a falar na primeira pessoa.

O que antecede este reparo foi obtido através de ilações deduzidas de algumas palavras escritas no seu diário misturadas com observações pessoais do nosso tempo de vida relativamente próxima. (Fim do reparo).

Entretanto, e isso soube-se como seria normal num pequeno meio como o nosso, a mãe da Irene faleceu no período que antecede imediatamente a viagem da Irene em cerca de três meses.

Sabe-se também que não foram tempos fáceis para a Irene encarar tão grande fatalidade: a sua vida com a sua mãe era talvez o elo mais sólido da sua vivência e as amizades que ela tinha nunca conseguiriam ajudar à necessária superação de tal perca.

( Continua )

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