segunda-feira, 21 de abril de 2014

O sorriso - Conto de Daniel Teixeira

O sorriso

Aquele sorriso, naquele dia e naquele lugar não foi igual aos outros sorrisos que ela me sorria. As coisas estavam diferentes naquele momento, certo, mas nunca esperei que ela sorrisse, naquela altura.

Não pensei também que ao fazê-lo, o sorriso, o fizesse daquela maneira, duma maneira que eu tenho dificuldade em descrever de forma a ser percebido pelos outros, que são vocês.

Mas foi um sorriso tão bonito quanto todos os outros que ela me deitava quando eu passava e a encontrava à janela, isso posso assegurar. Encontrava-a sempre à janela quando chegava e quando partia em direcção ao barco. Porque havia um barco que me trazia e me levava todos os dias e eu então passava sempre na rua onde ela estava à janela e onde ela me sorria.

Naquele dia e naquele local, que era diferente da sua janela, foi um sorriso diferente, um sorriso daqueles que se fazem quando acreditamos que o outro a quem sorrimos está a brincar connosco, com ela, neste caso, um sorriso que responde a uma brincadeira, a uma frase que se acredita ser dita e não valer, não ter conteúdo.

E eu disse-lhe que tinha de lhe ver a mala, a sua mala de mão e ela riu-se, com aquele sorriso, assim, e nada mais, sem parar o seu andar, sem uma palavra, só aquele sorriso, lindo como todos os outros sorrisos que ela sorria na sua janela, mas diferente, havia uma diferença e eu reparei bem nisso.

Para mim foi melhor que as coisas se tivessem passado assim. Eu não tinha vontade nenhuma de lhe vasculhar a mala de mão. Acho, sempre achei, que não se olha para dentro das malas das senhoras, que contêm por vezes coisas que são íntimas, que fazem parte da intimidade, mas estávamos ali para isso, para ver o que toda a gente levava em sacos e em malas.

Era estúpido, pensava eu, mas fazia parte do protocolo, foi o que disse o capitão naquele dia. Estávamos em estado de emergência, o estado de emergência tinha sido declarado e nós tínhamos de revistar toda a gente que se deslocava - podiam levar armas - disse o capitão. Continuei a achar estúpido mesmo depois de ele ter dito isso e foi com alívio que a vi sorrir daquela maneira e continuar pela passadeira em direcção ao barco.

Tinha um corpo lindo, ou pelo menos eu achava que era lindo e havia já entre nós aquele pouco mais que quase nos levava a uma cumplicidade. Quantas vezes eu a cumprimentei enquanto passava e quantas vezes a vi responder-me sorrindo enquanto eu ia prometendo a mim mesmo que no dia seguinte, o tal dia seguinte que nunca acontece no dia seguinte, que nesse dia seguinte iria falar um pouco com ela. E ela era linda.

Se eu tivesse insistido para lhe ver a mala de mão, certamente esse dia seguinte em que eu iria falar com ela e que nunca tinha acontecido nunca aconteceria, mesmo, acho eu. Não sei mas penso que ver a mala de mão dela não era nada bom para uma relação que eu e ela, se calhar, almejávamos.

Poderia nunca acontecer e eu nunca falaria com ela, nunca começaria aquela relação que eu ia imaginando ser possível. Como era possível admitir sequer que a senhora levasse uma arma? Era uma senhora mesmo, tinha porte de senhora, talvez com trinta anos, não sei.

Provavelmente viúva, pensei eu sempre, talvez viúva de um colega meu que tivesse caído no Ultramar, pensei, imaginei, não podia ser outra coisa, ela era certamente viúva de um militar que tinha falecido de armas na mão combatendo não se sabe bem o quê nem porquê.

E isso era respeitável, mais respeitável ainda, achava eu, temos sempre muito respeito pelos nossos falecidos que são assim como que maiores que nós que estamos vivos.

E eu tinha querido ver-lhe a mala de mão para procurar uma arma, uma pistola, uma coisa que tinha de ser pequena para caber na sua pequena mala de mão. Felizmente ela sorriu e continuou o seu caminho, foi bom para mim, muito bom mesmo, fiquei com a minha consciência tranquila.

Mas havia o protocolo que era preciso seguir, foi o que disse o capitão, havia o protocolo e estávamos em estado de emergência, tínhamos de ver tudo o que as pessoas levavam e já tínhamos confiscado uma espingarda de caça a um caçador já velhote.

Ele bem protestou, coitado, mostrou a carta de caçador e tudo, a licença da arma, e até o farnel para a manhã seguinte, ia para a zona de Coruche, foi o que ele disse mas era assim mesmo, estávamos em estado de emergência e ele podia ir levantar a arma ao quartel passados uns dias.

Por isso, porque estávamos em estado de emergência, fiz sinal a um soldado que estava lá mais à frente na passadeira e apontei para a minha platónica namorada dos sorrisos à janela e ele abriu-lhe a mala e não foi nada simpático não.

Acho que ela nem soube que fui eu que fiz o sinal ao soldado, penso sempre isso, tenho de pensar, porque ela continuou nos dias seguintes a sorrir-me à janela, com aquele sorriso lindo. Mas para mim deixou de existir aquele dia seguinte que nunca acontecia em que eu lhe iria falar à janela.

Daniel Teixeira

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