Reflexão - Texto/Conto de Daniel Teixeira
O terreno à minha frente está escuro, acinzentado. Parece que por ele passou labareda. E passou mesmo, digo-o a mim enquanto olho para aquele espaço tristemente defunto. Passou o fogo dos dias tórridos de um estio que não sei bem se destrói ou se purifica a terra. Ou faz as duas coisas, destrói e purifica, deve ser assim que as coisas se passam, penso eu agora.
Deve ser por isso que os traços do tractor revolveram as raízes do que quer que lá havia, e um tractor não risca os solos sem ter uma razão, uma lógica, um princípio. São assim os homens e os tractores, pensam de igual modo, pensam sempre o mesmo uns e outros.
O homem e o tractor arrancaram ao que quer que ali havia o alimento que lhes vinha da terra e deixaram os caules de raízes expostas à sorte que se calhar todos os anos lhes é destinada. Eu não conheço os terrenos, não sei como as coisas se passam nas terras nem o que se passa dentro delas: apenas posso reflectir e é isso e só isso que faço.
Se calhar estrumarão a terra, pode dizer-se, farão isso, entranhando-se mortos na terra e renascendo-se aos poucos aqui e ali quando as chuvas começarem a cair no composto. O solo matizar-se-à então naquele cinzento escuro com verde dos rebentos, primeiro, depois ficará tudo verde e não haverá mais cinzento queimado até ao ano seguinte.
Mas ainda não, não há verde que desponte no solo. Apenas há três ou quatro canas encostadas ao declive que se transforma num estreito ribeiro no Inverno. Erectas e muito verdes entre as outras amareladas que se deitaram, são o verde que por aquele lado há.
O homem passeia o cão ou o cão passeia o homem do cajado. Tem um boné que lhe tapa os olhos mas parece-me ser já velho, certamente que é, vejo pelo andar dele, um pouco arrastado.
Tem uma trela na mão mas a trela não conduz o cão. Este corre com a liberdade que os chamamentos do velho lhe permitem. Logo ali à frente há a estrada por onde corre veloz um trânsito que leva muita gente e mercadorias.
Um carro foi deixado ali, no terreno, um pouco à direita, um carro que já foi azul e que agora tem a cor da sucata azul. Ninguém o mexe e ele já não vai mexer-se por si mesmo. Está ali plantado no bordo das laranjeiras pequenas que não cresceram mais. A nora está tão morta como o solo escurecido e já não rega nada.
Foi uma horta verdejante, isto que eu vejo e agora já não é. Vai para construção, certamente, é o que acontece a todas as hortas verdejantes por estes lados. Aqui, donde eu vejo o que hoje vejo dentro de anos não haverá mais ervas que renascem, nem laranjeiras, nem carro morto.
Só o velho de cajado continuará a passear o cão ou o cão a passeá-lo a ele, espero.
Daniel Teixeira
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