O cavalo que morria devagar - Conto de Daniel Teixeira
Havia um cavalo pastando e um velho sentado numa pedra olhando o cavalo.
Havia também os dois netos do velho e um pequeno prado murado e com muitas pedras soltas musgadas. Parecia um prado tão velho quanto o velho. Ou talvez mais. Eu sempre o conheci assim, aquele prado e aqueles muros meio derrocados.
Poderia ter perguntado ao velho quanto velho era aquele prado e aquela cerca que o cercava quase por completo. Porque havia uma parte do muro que arrendava dois finos troncos cruzados que o velho certamente levantava e baixava para fazer entrar de manhã cedo e fazer sair à tarde, já quase noite, o cavalo.
Podia ter perguntado a idade daquelas pedras ali assim colocadas e talvez ele me soubesse responder. Mas o velho estava absorto, pensava naquelas coisas que os velhos pensam e cofiava o bigode e remexia o solo com o seu grosso cajado.
Não sei no que os velhos pensam quando estão assim absortos mas achei melhor não lhe perguntar nada e deixei que ele continuasse a pensar no que pensava.
Os dois netos dele, esses não tiveram o meu cuidado, eram crianças e as crianças nem sempre resguardam os tempos de pensamento de cada um e eu sei isso porque já fui criança, já tive filhos que foram pequenos e um dia, se calhar terei também netos como os dois netos do velho.
Os miúdos tagarelaram um pouco entre si e eu percebi que eles iam fazer uma pergunta ao velho: esticaram o pescoço como se quisessem ficar mais próximos do velho e disseram: «Avô!! É hoje que o cavalo vai morrer?»
O velhote voltou-se então para eles, como se fosse surpreendido pela sua presença ali, ou pela pergunta, não fiquei a saber, mas ele pareceu acordar de um mundo que era o dos seus pensamentos e ficar desperto num outro que demorou um pouco a parecer perceber.
Depois respondeu aos seus netos: «Não me parece que seja hoje, o cavalo está a comer bem e quando se come bem não se está a morrer.» Não percebi logo se a última parte da frase era também um subtil conselho aos netos mas acho que é verdade que quando se come bem não se está a morrer.
Os netos abriram os olhos com um misto de entusiasmo e de alegria, disseram mais algumas coisas entre eles e partiram em direcção à meia dúzia de casas que ficavam logo ali. Iam brincar, certamente: talvez tivessem os amigos por ali. Poucos, certamente, deviam ser poucos os seus amigos porque a aldeia estava quase deserta de vida e isso eu tinha visto logo que cheguei.
Reparou então em mim o velho e reconheceu-me. A mim, eu que já havia tantos anos que ali não ia e isso mesmo também foi o que ele disse logo. Sem se levantar da pedra onde estava sentado fez-me um aceno como se fosse um cumprimento e eu entrei então na cerca e no prado para o cumprimentar.
Já há mais de vinte anos, disse-lhe eu, há mais de vinte anos que aqui não venho. «Pois está tudo na mesma, como vês, quase nada mudou. O pessoal foi-se indo embora para as cidades, outros morreram, mas o resto ficou tudo na mesma.»
E para ele estava tudo na mesma, ou quase tudo estava na mesma porque quem fica não vê as coisas da mesma maneira dos que estão ausentes muito tempo. Vinte anos, repeti eu, e em vinte anos muita coisa mudara mesmo que o senhor Afonso achasse que estava tudo na mesma.
Ele não fumava, eu também não e ali ficamos um bocado olhando o cavalo que pastava. Já não era novo, não e era certo aquilo que os netos do senhor Afonso temiam: que o cavalo morresse e eu disse-lhe isso. Não quis criticá-lo por ter dito isso de o cavalo estar a morrer aos netos, longe de mim tal ideia mas ele deve ter percebido aquilo que eu respeitosamente não lhe disse.
«Tenho cá os meus netos e eles adoram o cavalo, sabes (?). Não quero que eles se afeiçoem muito a ele para não terem um desgosto muito grande quando ele morrer. Mas ele está morrendo devagar, muito devagar. Parece que sabe que eu não quero que os meus netos tenham esse desgosto e espera que eles voltem para a escola, para a cidade.»
Olhando a aldeia deserta, as hortas sem verdura, pensando nos meus que tinham ali morrido pensei sem lhe dizer: afinal tudo e todos nós morremos um pouco devagarinho a cada dia que passa e o senhor Afonso pensa que o seu cavalo morre todos os dias um pouco mais devagar.
Talvez, talvez não seja assim mas é bom que ele o continue a pensar.
Daniel Teixeira
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