segunda-feira, 10 de novembro de 2014

A Marta - Conto de Daniel Teixeira

A Marta - Conto de Daniel Teixeira

Pensava muito eu, dizia-me ela, «Pensas e pensas, mas não é só da reflexão interior que as coisas saem. Se eu não tivesse tanto que fazer levava-te pela noite fora pelos bares até de madrugada…depois, bem, depois levavas-me a casa e talvez eu te convidasse a subir e tomar mais uma bebida…talvez, talvez…!» e depois ria-se naquele jeito sugestivo que eu tão bem lhe conhecia, acariciava-me as mãos, revolvia-me o cabelo e acabava por vezes com um beijo na testa.

Nunca daria em nada, em nada de especial, pensava eu, o sexo estava quase naturalmente afastado da nossa relação naquela altura e eu sabia bem, tinha aprendido isso tudo sem ter feito qualquer tentativa e aprendera também que era bem melhor nem sequer o tentar.

O receio de quebrar a estátua com algum grau de sacralidade que para mim era a Marta fazia-me conter, escolher caminhos de diversão e repetir constantemente para mim mesmo que o risco de tentar era demasiado elevado por maiores e mais sugestivas que fossem as acções e as palavras dela.

Talvez tenha esperado de mais, não sei, ou talvez tenha esperado justamente o tempo necessário. Eu não sei e acho que essas coisas nunca se sabem antes de terem o seu lugar. É sempre melhor guardar esta incerteza, esta indefinição…é sempre melhor não se ficar com a sensação que se perdeu alguma coisa, ou que se perdeu muito.

O meu problema, a minha falta de entendimento desta realidade derivava do facto de durante bastante tempo ter tomado os seus jogos sensuais como prova de uma ligação entre mulher e negócio, o que ela fazia, de facto, mas tendo sempre presente, de forma pouca clara ao observador, que este tipo de sensualidade era antes um instrumento e nunca uma forma profunda de sentir.

Não representava propriamente dois papéis nem ela mesma tinha dentro de si duas faces, a de mulher e a de editora, mas conseguia muito bem uma coisa que era manter esses dois campos convivendo dentro dela e projectá-los para uma exteriorização bem nítida que só ela sabia desenhar.

Eu limitei-me a conhecer a existência dela, dessa demarcação, desse traço que separava a sensualidade instrumento da sensualidade expressão de sentimento. A partir de uma dada altura aceitei bem o princípio que me parecia consequente de que nenhum destes dois campos competia ou prejudicava ou anulava o outro porque viviam mesmo em campos diferentes embora a sua forma de expressão fosse a mesma. E daí talvez não fossem as mesmas, talvez fosse eu, o observador, que unificava.

E fora então, depois de me dizer do engraçado da terriola para onde me mandava para acabar o romance que tinha em mãos que a Marta cruzara as pernas, como ela costumava fazer, a saia subia-lhe e expunha as coxas, como ela fazia muitas vezes, fazendo-me desviar os olhos.

Era difícil dar uma idade bem definida à Marta, tinha um corpo forte, pernas fortes e bem elegantes e era bonita, tinha uma cara bonita, bem bonita mesmo. E tinha umas coxas extraordinariamente belas e sugestivas e ela não só sabia disso como sabia tirar partido disso.

Ela conhecia-me bem e conhecia bem o que os homens pensavam que as mulheres pensavam deles ou podiam pensar e sabia que eu reagiria assim, que eu ficaria embaraçado por pensar que ela pensava que eu estava a olhar-lhe para as coxas e depois eu saí do seu gabinete com o papel rabiscado com as indicações do local que ela achou que eram suficientes.

Quanto à sensualidade demovente, como eu lhe chamava, a Marta era assim mesmo, nunca tinha tido a coragem de lhe dizer que sabia o que ela fazia com aquela coisa de mostrar as coxas, ou mesmo os seios quando estava inclinada à minha frente, ou à frente de outros homens, mas eu sabia que era uma forma que ela tinha de se desembaraçar de momentos ou perguntas que lhe não convinham.

Eu via-a a fazer isso mesmo em festas, ou recepções, ou nas sessões de autógrafos e ficar depois a rir-se para si mesma com o embaraço dos outros e eu sentia mais que via o seu sorriso interior. Pessoas que a respeitavam muito, como eu, e que não pensariam nunca que aquelas posições e aqueles gestos tinham outra causa senão o descuido. E era uma sensação que ela explorava muito bem, porque era uma mulher muito inteligente a Marta.

Quando me retirava dos embrulhos das conversas de grupo que me aborreciam ela agarrava-me pela mão, puxava-me para um canto ou contra uma parede e afagava-me o cabelo carinhosamente. Por vezes encostava o ventre dela ao meu e nem ela sabia a sensação de embaraço e não só que isso me dava. «Vamos provocar um bocado estes gajos» – segredava-me. E sobretudo as gajas – não dizia mas eu entendia – fazendo-me ali e daquela forma virtualmente seu, exclusivamente seu.

Havia assim já bastante tempo que a Marta me dava sinais do seu  interesse por mim só que eu não os interpretava dessa forma, achava que aquilo que ela fazia não devia ser só comigo, quer dizer, ela representava vários escritores, tinha duas poetizas, três romancistas incluindo eu e um ensaísta, fora os ocasionais que iam e vinham mas era a maneira dela e nunca pensei que fosse mais que isso, nunca pensei mesmo que ela só fizesse aquilo comigo daquela forma e com sentimento mas agora era agradável pensar assim, sentir-me especial, sentir ter sido diferente aos olhos da Marta.

Nunca se casara, segundo se sabia e ela mesma dizia e eu não sabia qual era a sua vida para além da sua função de editora, nem eu nem ninguém, ao que penso. Sempre achei que a Marta não se interessava mesmo por relações duradouras ou não: tinha a sua carreira que geria com sucesso, com escritores e poetas de sucesso, que acarinhava. Eu talvez fosse a sua mais recente «aquisição» e já havia dois anos que trabalhava com ela quando tudo aconteceu.

Aconteceu daquela forma que qualquer pessoa julga que é possível acontecer dado o que disse atrás: foi ela que avançou, foi ela que quebrou o gelo da cautela que me envolvia, foi ela em quase tudo e só depois fui eu.

Ainda hoje, que já passou algum tempo, penso, por vezes, qual terá sido o momento exacto em que ela, a Marta, saiu do campo do seu faz de conta erótico para entrar no campo da nossa realidade amorosa e penso que talvez desde sempre as coisas entre nós se passassem neste nosso campo agora aqui definido.

Talvez ela estivesse também receosa, não sei, tal como eu estava.

Enfim...há muita coisa que é possível mas não há nada que eu possa afirmar como certo.
Mas as coisas depois não se passaram como nos contos de fadas: fomos muito felizes, sim, essa parte existiu, mas não tivemos nem muitos meninos nem felicidade para sempre e tudo acabou percorrendo o caminho inverso daquele como tudo tinha começado.

E eu também não sei qual o momento exacto ou a razão exacta, se é que nestas coisas há razões, para que tudo tenha acabado. Posso supor mas não há nada que eu possa dizer com certeza.

E hoje, sentado nesta esplanada à frente da qual tantas mulheres e tantos homens passam e estando eu pensando em mim e na Marta, penso que eles, aqueles que por aqui passam, todos eles, sabem os momentos exactos em que as coisas começam e sabem os momentos e as razões, quando as há, para que as coisas acabem. E eu acho que talvez nunca o saiba.

Daniel Teixeira


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