domingo, 30 de novembro de 2014

O gato preto


O gato preto

A Arminda vivia no décimo andar de um prédio cujo elevador se mantinha entaipado havia anos. Os condóminos, por razões que todos achavam certas, variavam nas suas objecções ao arranjo do mesmo, razões essas que me não cabe a mim desenvolver aqui. Aliás, nem moro lá - caso isso não tenha ficado subentendido até agora. 

Apenas sou, no que à questão residencial se refere, visitante da Arminda e quando cheguei a casa dela desta vez estava não só derreado como estava irritado e sentia na pele da face agora crestada a falta do ar condicionado dos outros dias e aquela aragem pequena mas refrescante que o contínuo mandava do rés do chão rodando o botão para o lado do sinal mais por ser para mim.

Era bom cliente, eu, naquele prédio e o porteiro sabia-o mas desta vez pareceu-me ausente não de corpo, porque ele estava lá, com a sua farda cheia de medalhas e galões à tropa, mas porque estava e não estava no seu posto.

Ou seja, o corpo dele (e os galões e as medalhas) estavam lá plantados no sítio do costume, atrás de um balcão coberto a fórmica, mas o espírito, a alma, o sopro vital dele, aquela coisa que distingue as pessoas vivas das pessoas mortas, a respiração, o bafo, andavam nos limiares do coma, e acabei por apressar o passo no Hall. 

Disse-me depois a Arminda que lhe tinha falecido um gato, um pretinho que frequentava o terceiro andar e que eu não devia conhecer porque ele nunca ia para as escadas mas eu disse-lhe que não senhor, que era capaz de ser aquele que eu tinha visto na última vez que lá tinha estado entre o primeiro e o segundo andar embora tivesse visto um gato preto como veria outro gato preto qualquer porque os gatos pretos são todos iguais.

A Arminda disse-me então que sendo assim era bem provável que eu até o tivesse visto no dia da sua morte porque ele, o porteiro, tinha encontrado o seu corpinho desfalecido precisamente na zona do rés do chão, entre as caixas vazias de uma arrecadação.

Mas deixemos isso, disse-me ela enquanto me enchia um copo de vinho do Porto para me fazer subir a alma, disse ela, coisa que eu bem precisava, de uma alma subida depois daquela subida de dez andares e peço perdão pela redundância.

Os processos de luto do porteiro eram assim, isso eu sabia de raspão, mas para ela, Arminda, este era mais profundo, acrescentou: ela já lhe tinha conhecido vários lutos felinos o que lhe permitia - e eu aceitava - pronunciar-se agora da forma peremptória como o fazia.

Ele, o porteiro, tinha vários gatos, mas o que morrera agora, um dos pretinhos, era especial como o eram todos os outros, não por ser preto, havia mais pretos, mas porque - no dizer que ele tinha dito à Arminda - era um gato que lhe tinha sido oferecido por uma pessoa que ele considerava especial e de certa forma pode dizer-se agora, sem grande dificuldade, que ele, porteiro, via talvez naquele gato um pouco daquilo que via na pessoa que lho oferecera.

Amor (?) pela pessoa ou simplesmente um respeito respeitoso ? - Perguntei eu à Arminda quando já ia no segundo copo de Porto. Ela não conhecia a pessoa, nem sequer sabia se era homem ou mulher e o porteiro nunca fora além daquelas singelas palavras: fora-lhe oferecido por uma pessoa de quem ele muito gostava e vocalizava um lento ponto e uma vírgula para não dar o irrespeitoso ar abrupto do ponto final.

Quando a Arminda tentava puxar dele um pouco mais, naquela curiosidade quase natural para tentar descortinar algo mais daquilo que haveria para dentro da farda castanha, dos botões igualmente castanhos, das medalhas coloridas e dos galões dourados ele desviava a conversa dizendo que aquele gato (o agora falecido) não lhe dava nenhuns problemas praticamente desde que viera para aquele prédio.

Tinha - dizia ele como se ela (Arminda) não soubesse - a sua caixinha próximo da janela da sacada onde fazia as suas necessidades, uma caminha em pano acolchoado com um padrão de florzinhas brancas sobre fundo azulado (o que não condizia com o gato - ciciou-me no momento a Arminda com alguma ironia) e duas tigelas também junto à janela: uma com água e outra com ração que comia parcimoniosamente. 

Normalmente o porteiro (é melhor dizer o nome do homem agora) senhor Jorge Kovac em anteriores períodos de luto felino desinteressava-se das coisas e não valia a pena insistir com ele porque ele olhava-nos (disse ela) com os olhos vazios, abanava a cabeça como se tivesse percebido tudo mas no final não tinha percebido nada porque não conseguia perceber.

Mas desta vez, no caso deste grato preto, o processo estava a prolongar-se no tempo e na intensidade por razões que embora se admitissem dificilmente se suportavam sobre a estreita mas sólida base do minimamente exigente profissionalismo, do brio e até do desapego que deveria haver pelas coisas pessoais durante as horas de serviço.

E eu que o dissesse, da falta de profissionalismo do Kovac - frisei à Arminda - pois tinha tido a recente e dolorosa experiência própria subindo os dez andares de escadas sem assistência suplementar de ar condicionado coisa que nunca tinha acontecido no verão e nem sequer no inverno. 

Na altura do inverno o aquecimento também me era facultado em suplemento tal como o refrescante ar extra me era facultado no verão, devo precisar, embora algumas vezes tivesse razão de queixa no Inverno porque como qualquer pessoa sabe através do esforço os corpos aquecem e a partir do quinto piso o ar quente tornava-se excessivo. 

Mas sempre perdoei ao Kovac esta sua falta de sincronização temperaturamental optando por ir tirando o sobretudo, o casaco, a blusa de gola à barco e chegando a casa da Arminda em camisa com gravata já desabotoada.

Ora - e fazendo contas simples - o J. Kovac tinha a seu cargo vários gatos, e talvez uma ou mesmo duas mortes em média anual e embora possa parecer pouco humano da minha parte referir isto seria de exigir, na minha opinião, que ele tivesse já algum calo em relação à morte natural dos seus felinos. 

Calo esse que se poderia e deveria repercutir-se sobre esta última morte mesmo sendo inopinada. Coisa que assim dita pode parecer absurda porque as mortes, salvo raras excepções, são todas inopinadas.

Mas e conforme vimos acima, e se foi verdadeira a nossa ilação de que eu tinha visto este agora falecido gato preto na última vez em que lá tinha estado (em casa da Arminda) e tendo em atenção que eu não frequentava os seus aposentos senão uma vez por semana, teremos de tirar duas conclusões que interessam ao desenrolar da história.

O gato preto tinha falecido (coitado) provavelmente no dia em que eu estivera em casa da Arminda pela última vez antes daquela, quer dizer, havia oito dias arredondados e se as coisas se tinham passado como a Arminda aventava e se a fatalidade foi detectada nesse mesmo dia (oito arredondados atrás) isso queria dizer que o Kovac estava naquele estado havia sete, oito dias, sensivelmente.

Ora isso era muito tempo de luto e alheamento social mesmo que houvesse como fundamento o caso de um gato especialmente querido. Aliás a literatura médica não trata desta questão com detalhe bastante , mas será de estipular razoavelmente para o Kovac e tendo em atenção a sua envolvência com felinos, cerca de dois, três dias no máximo de luto sentido por cada gato.

Assim sendo e fazendo uma análise apressada e muito sumária e sabido que a questão do luto do Kovac já ultrapassava as marcas da razoabilidade e atingia patamares até ali difíceis de conceber propus eu à Arminda que tratasse de se inteirar mesmo indirectamente que fosse junto dele quanto tempo mais tinha o Kovac em previsão manter aquele estado lutuoso, tendo em vista - embora possa parecer cínico da minha parte - escalar telefonicamente nova visita à Arminda numa data posterior à sua libertação depressiva.

Eu utilizava os serviços da senhora, já entradota como é normal nestas coisas, o pessoal jovem já não faz destas coisas, só querem empregos de escritório e sobretudo empregos e não trabalhos. Ora a Arminda trabalhava e meu Deus como ela trabalhava: aquilo era uma máquina autêntica, salvo seja, porque no seu métier explorava o serviço personalizado, razão pela qual eu lá ia também desde havia cerca de dois anos já.

Estávamos neste bate papo sem termos entrado ainda em quaisquer preliminares sobre aquilo que ali me levava quando ouvimos um urro, um verdadeiro urro. Era do Kovac, só podia ser ele quem estava na origem do berro seco e grosso e eu, com mais um suspiro contrariado de imediato tirei a mão do cinto das calças que ia começar a desapertar.

Estava feita a tarde, nada mais se poderia acrescentar ali na casa da Arminda, tínhamos os planos semanais furados, já abalados antes pelo meu cansaço e suprimidos agora pela necessidade de dar atenção ao rompante grito. 

Mas a coisa era grave, mesmo, tenho de reconhecer agora: alguém, por artes sádicas que só aos inumanos são atribuídas após a exemplar e irada lição de Moisés aos adoradores dos bois e outras imagens alegadamente sagradas, alguém, repito, tinha tomado a iniciativa de deixar um envelope com uma folha e letras de jornal coladas ao Kovac afirmando que ele (o anónimo) lhe tinha lançado um bruxedo por causa do gato «para ele saber que ofertas daquelas feitas por quem foram» teriam para ele Kovac, sempre, resultados funestos. 

Ciúme, certamente, ciciei eu para a atónita Arminda enquanto esta temerosa se benzia, acrescentando que ainda hoje me parece impossível que haja pessoas que, por ciúmes, se esqueçam da existência da sua própria alma.

Ressalvando a morte do pobre do animal que me ficou a roer na consciência durante bastante tempo (meses, mesmo) afastei-me por isso da minha costureira de arranjos Arminda, e por carambola do Kovac nunca mais vindo a saber nada desse pessoal. 

De facto, o meu limite, o final da minha trilha, a beira do meu precipício mental, lá onde estaco o meu cavalo é quando chego ao ponto em que um oportuno lampejo memorial revolucionário me faz ficar instantaneamente convencido de um meu absurdo comportamental. 

Para este caso e neste caso, durante dois anos fui estúpido pois que nada justifica andar a subir e a descer dez andares para ter botões cozidos ou bainhas de calças levantadas.

Daniel Teixeira



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