Tão linda que é a Paula
E é assim como vou dizer que as coisas se passam e devo logo dizer que há muito tempo que não escrevo, assim como estou a escrever agora e que não sei se vou conseguir dizer tudo o que quero, mas vou tentar, vou tentar ser claro, vou tentar fazê-los compreender como as coisas se passaram, todas as coisas, desde que conheci a Paula.
É linda, ela, muito linda e ainda hoje acho que ela é linda mesmo que não a possa ver lá onde ela está todos os sábados, precisamente às dez horas da manhã, quando vou vê-la. Quer dizer eu posso vê-la, posso olhar para ela, posso ver se a sua face se alterou e posso saber até que ela hoje é ainda mais linda, sempre mais linda, porque isso é possível, é possível que uma pessoa linda seja cada vez mais linda, mas isso não posso descrever aqui porque embora a veja não posso vê-la como me vejo a mim mesmo e nem sei se ela me pode ver a mim.
Tenho que imaginar a Paula e só posso imaginá-la assim, cada vez mais linda sem a ver vendo-a na mesma. Não me explicaram isso e deviam explicar como é que aquele vidro grosso que nos separa todos os sábados, às dez horas, infalivelmente às dez horas, porque é que aquele vidro grosso não me deixa vê-la mesmo, assim como me vejo a mim.
Deviam explicar isso às pessoas, acho eu, deviam dizer quem vê quem através daquele vidro grosso e se nenhum dos dois pode ver o outro. Deviam explicar isso muito bem, deveriam dizer-me a mim e eu não sei se eles não me disseram a mim e não explicaram também à Paula. Por isso acho que eles não devem ter explicado a nenhum de nós como as coisas se passam.
Já perguntei à Paula se ela me vê mas não tive resposta, por isso acho que não há som que passe aquele vidro grosso onde estive há poucos minutos. São dez e vinte agora e deixaram-me lá ficar só quinze minutos. Quinze pequenos minutos para que duas pessoas estejam próximas quando estiveram juntas toda a sua vida, até aqui. Agora estamos divididos: eu para cá do vidro grosso e ela para lá do vidro grosso. Acho que deviam explicar o porquê disso tudo mas não explicam.
E deviam dizer porque me dizem para entrar naquela sala todos os sábados aqueles quinze minutos se eu não posso ver a Paula e não sei se ela me pode ver a mim. Sei que ela não me responde, isso sei porque eu falo sempre com ela, falo muito, pergunto como está a passar, pergunto se ela me ama muito (ela gostava muito que eu lhe perguntasse isso sempre, todos os dias, muitas vezes por dia). Mas talvez não achem isso importante, acho eu, explicar estas coisas.
Eu escrevia muito, muito mesmo, estava quase sempre a escrever e agora tenho de lhes pedir que me desculpem se eu não me fizer entender, porque acho que não escrevo claro. A minha escrita era até muito clara, foi o que a Paula me disse logo no início, quando nos conhecemos. Foi bom e agora ainda é bom mesmo assim como estou, sem ver a Paula tal como me vejo a mim, mas sei que ela continua linda, sempre foi linda. Acho que não deve haver pessoa mais linda que a Paula.
Estou mesmo apaixonado por ela e ela está apaixonada por mim e quando podíamos falar os dois ela dizia-me que eu escrevia muito bem, mesmo muito bem. Não tenho a certeza, estes tempos assim, tempos de felicidade, não se contam, mas acho que foi durante dois anos, pelo menos que ela achou que eu escrevia bem e me dizia isso sempre. E dizia-me que me amava.
Depois, bem, depois talvez passados esses dois anos as coisas foram mudando um pouco, mas a gente amava-se sempre. O que mudou foi uma coisa simples que era importante para mim e para ela mas que não era importante para as nossas vidas. Foi quando ela começou a dizer-me que eu escrevia muitas vezes a mesma mensagem, e eu perguntava como e ela dizia-me para ver a linha dez e a doze e a quinze, acho que primeiro foram essas e eu lia e via que estava lá escrito «ela deve morrer».
No princípio ainda lhe disse que as palavras eram para ser lidas no contexto em que estavam e que nós não devíamos estipular os nossos próprios contextos, mas ela insistia e encontrava sempre as mesmas palavras em três linhas, sempre separadas, sublinhava-as e estava lá sempre «ela deve morrer».
Bem tentei que aquela conjunção de palavras não aparecesse nunca, primeiro deixei de escrever morrer, mas a Paula encontrava «morte» e «merece» e dizia-me que era a mesma coisa, que eu escrevia a mesma mensagem com outras palavras. E não encontrei maneira de continuar a escrever sem que as palavras que a Paula encontrasse não dissessem quase sempre o mesmo, de muitas formas, e ela entendia que era uma mensagem para ela, que era aquilo que eu queria, que era aquilo que eu desejava, que ela morresse.
Eu amo a Paula, nunca pensaria uma coisa dessas, ela é a minha companheira e tínhamos tudo o que precisávamos, mas eu também tinha de escrever, era isso. Eu não conseguia deixar de escrever e comecei a esconder os meus escritos e foi pior ainda quando fiz isso.
A Paula descobriu-os um dia e foi então que ela me disse, depois de ler todas as páginas, e eram muitas as páginas que eu tinha escrito que «se era isso que eu queria, que ela morresse, então ela ia morrer mesmo», foi o que ela me disse.
Depois não me lembro mesmo daquilo que se passou em seguida naquela dia. Não me lembro mesmo, dou-vos a minha palavra. Só me lembro de ver pessoas na rua a afastarem-se de mim enquanto eu caminhava não sei para onde. Depois um polícia, daqueles que estão fardados, disse-me que eu tinha a minha roupa cheia de sangue.
Ele achou que eu estava ferido, acho que ele pensou isso mas depois viu que eu não tinha ferida nenhuma e perguntou-e onde eu morava. E as pessoas sabiam, as pessoas que se juntaram à minha volta e à volta do polícia sabiam isso porque eu nem me lembrava onde morava mesmo. Era para ali, certamente, mas eu não sabia onde.
Agora, neste momento, sei que estive naquela sala onde vou todos os sábados, às dez horas em ponto e dizem-me que é para ver a Paula que eu não vejo. Penso que ela me vê e ajeito sempre o meu cabelo, componho a minha camisa e sorrio, sorriu muito, tento dizer-lhe coisas mesmo sabendo que ela pode não me ouvir mas pode ler os meus lábios, isso ela sabe, sempre soube ler nos lábios, nos meus lábios.
Lembro-me que um dia me disseram que a Paula morreu, e disseram-me isso naquela sala onde me levam todos os sábados às dez horas mas não me disseram nunca porque há aquele vidro grosso naquela sala. Aquele vidro que eu toco e sinto ser muito grosso. Por vezes dou pancadas no vidro para chamar a atenção da Paula que está do outro lado do vidro. A Paula pode não me ver logo, penso, mas nem sei se ela me vê mesmo.
Talvez um dia me expliquem tudo isso, porque vou ali todos os sábados às dez horas para ver a Paula e não a vejo como me vejo a mim mesmo. Tenho esperança que um dia me digam tudo isso, me expliquem mesmo. Têm de explicar acho eu. Não podemos perder a esperança, não é(?).
E isso de me dizerem que a Paula morreu eu não acredito, nunca acreditei e sei que vou ver a Paula um dia, que vou tocar-lhe de novo e que vamos rir muito como fazíamos antes e que eu vou ver a face linda da Paula como me vejo a mim mesmo...
Tão linda que é a Paula.
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