segunda-feira, 19 de agosto de 2013

A garagem

 
A garagem
 
Ah! Como os carros eram bonitos, todos brilhantes, alinhadinhos, tão alinhados que pareciam ter sido ali metidos com as mãos como os carrinhos em miniatura das colecções, com os espaçamentos calculados quase ao milímetro e as riscas brancas cuidadosas a delimitar cada pneu, todas elas direitinhas, encostadas aos rodados todas à mesma distância, talvez vinte centímetros ou mesmo trinta para cada lado, e a realçarem do solo, quase como se tivessem espessura e não fossem antes um minucioso tracejado de tinta sem falhas.
 
Lindo, simplesmente lindo - repetiu para si mesmo. Estava contente, e tinha razões para isso. Ao fim de quase dois anos a penar no desemprego tinha-lhe surgido aquela oportunidade e era o seu primeiro dia naquele emprego.
 
Um amigo da Faculdade, daqueles amigos que não esquecem os amigos nunca, tinha-lhe falado de uma vaga na empresa onde trabalhava: era uma coisa para desenrascar- disse-lhe - ser vigilante na garagem era a mesma coisa que não fazer nada, era estar atento simplesmente, ser simpático com as pessoas e andar por ali...e ele andava ali, naquele primeiro dia e via os bonitos carros, via a geometria perfeita do lugar. Impecável, simplesmente impecável, tudo impecável.
 
O amigo era um quadro superior na empresa, tinham sido colegas na faculdade, tinham tirado o mesmo curso e tinham acabado no mesmo ano. Depois cada um foi para a vida dele. A vida do Quaresma tinha corrido bem, a dele não tanto ou quase nada, mas não interessava agora, tinha um emprego, tinha um salário e o Quaresma segredara-lhe que as pessoas costumavam dar gorjetas, por vezes, dependia dos dias, da disposição dessas pessoas: ele só tinha que se mostrar prestável para além de se mostrar simpático e de estar «sempre sorridente» - acrescentara o Quaresma - «sempre a sorrir, percebes? - é meio caminho andado para a gorja ».
 
E ele mostrava um belo sorriso, quase igual àquele que tinha nos tempos de Faculdade e que tanta miúda lhe garantiu...«mas lá tens de me tratar por Dr. Quaresma - e essa coisa de termos andado juntos na Faculdade não interessa andares a dizer, aliás não interessa sequer que digas que andaste na Faculdade.» - rematou. Tudo bem - respondera, o que lhe interessava é que aquele amigo, daqueles que nunca nos esquecem lhe tinha arranjado um emprego. Caramba, que sorte!
 
Na primeira conversa que tinham tido, dentro do carro dele, ainda antes de ter o emprego certo o Quaresma dissera-lhe uma coisa que o tranquilizara e da qual se lembrara logo quando o vira ao fim de tantos anos e quando começaram a conversar: Nada de ressentimentos por causa daquela miúda que ele tinha «gamado» ao Quaresma. Era linda, simplesmente linda, - disseram eles quase ao mesmo tempo - mas olha, estás a ver como eu estou, sem emprego e sem dinheiro e sem a tal miúda linda.Nem essa nem nenhuma...
 
Primeiro parecera-lhe que o Quaresma estava com dificuldade em lembrar-se dele, afinal tinham passado tantos anos sem se verem e estavam os dois diferentes. Ele também não andava com roupas muito boas, aliás tinha umas calças de ganga e uma t shirt enquanto que o Quaresma andava de fato e gravata - e caramba como estava calor mas o fato era daqueles de tecido leve, de marca é claro, nem podia ser de outra forma.
 
Pronto e agora ali estava ele admirando aquela beleza de garagem, talvez com uma centena de carros, ainda não tinha visto os registos no computador: só à noite é que se fazia a conferência: «carro entrado tem de sair ou ter uma justificação para cá estar depois das oito da noite» - dissera-lhe o encarregado que o tinha posto ao corrente do seu novo trabalho. Era prestável e simpático o senhor Barroso. Tudo bem, tudo numa boa...
 
Quando saiu à noite, já passava das oito, e apesar de ter levado um lanchinho para atamancar até à hora de jantar tinha apetite de novo, o apetite tinha-lhe voltado e sentiu-se grato: afinal o mundo não é assim tão mau como o pintam e como ele o pintou durante dias, semanas e meses a fio. Até nisso o Quaresma lhe tinha dado sorte, havia dias em que quase não conseguia comer e outros em que nada tinha para comer, mas aguentou sempre. Sabia que tinha de aguentar, que a moeda da vida um dia lhe mostraria a outra face.
 
Em casa, numa casa quase vazia de tudo, pensou em meter-se a pensar no que teria de comprar quando recebesse o primeiro ordenado para compor um pouco mais as coisas por ali mas acabou por comer e sentar-se na cama, simplesmente.
 
Viu mentalmente de novo os carros alinhadinhos na garagem, os riscos brancos no solo e num relance calhou a olhar para a Diploma ainda pendurado na parede em frente à cama. 16 valores era o que tinha lá sempre estado. Lembrou-se então dos parabéns dos colegas, fora o melhor do curso. Muita bebida lhe pagaram nesse dia, ainda se lembrava bem.
 
Depois, e sem saber porquê, sem ter razões para isso, num dia tão feliz como aquele em que finalmente arranjara um emprego viu-se com as mãos entre os joelhos, primeiro a soluçar e depois a chorar abundantemente...bem repetia que não havia razões para isso, que estava tudo bem, que agora estava tudo certo, que as coisas tinham entrado nos carris e muito mais disse a si mesmo mas o choro não o abandonou senão quando o sono o venceu.
 
(Série - Urbanos)

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