terça-feira, 13 de agosto de 2013

Conto sentido

 
Conto sentido
 
Era uma vez uma família pequena, só pai, mãe e dois filhos um dos quais ainda de peito. Viviam numa pequena quinta que era propriedade do senhor e pagavam pelo arrendamento um terço das suas colheitas. Pai e mãe trabalhavam muito.
 
O filho mais velho, com apenas cinco anos, ajudava no que podia com a sua idade, tratando do irmão quando a mãe tinha de ir trabalhar, indo buscar água ao poço, dando de comer às galinhas e a um porco que tinham num chiqueiro, que é assim como que um cercado que era só dele, porco, e onde ele chafurdava e tinha duas gamelas, uma para a água e outra para os restos dos alimentos que sobravam das parcas refeições em casa.
 
Andava um dia o porco a chafurdar na terra e o seu focinho sentiu uma coisa mais dura do que as pedras que encontrava quando ia mais fundo tentando desbravar as raízes das plantas. Não chamou ninguém para ir ver do que se tratava, porque não falava e nem sequer isso lhe viria à ideia caso falasse, e se tivesse ideia.
 
Mas ficou curioso como só os porcos sabem ficar: quer dizer, a maneira que os porcos têm de se mostrarem curiosos e intrigados é voltarem várias vezes ao mesmo sítio e insistirem - neste caso tentando por a descoberto - e ver e cheirar o que os intriga.
 
Foi, o porco, fazendo uma buraco cada vez mais fundo mas também cada vez mais largo e a tal coisa mais rija que as pedras que encontrava enterradas ia-se mostrando cada vez maior, mais larga e mantinha-se tão rija quanto antes.
 
Não pensava - se pensasse - o porco, em pedir ajuda para por a descoberto aquilo que o intrigava e pensava (se pensasse) em tudo o que era possível: uma caixa cheia de cenouras era o mais provável que ele pensasse se pensasse uma vez que gostava muito de cenouras e isto de falar aqui de cenouras como hipótese é o narrador a imaginar porque neste tempo já os animais tinham sido desprovidos do dom de falar tal como do dom de pensar como foi visto mais acima.
 
Eram tenrinhas, as cenouras, e davam-lhe descanso aos dentes para além de escorregarem facilmente para o seu estômago pois quase se desfaziam na boca.
 
Levou nisto bastantes dias, o porco, talvez três na vida dos homens e não se sabe quantos na vida dos porcos e enquanto resfolgava cansado deitado perto da sua casinhota ia sonhando (se sonhasse) com um rico manjar de cenouras rosadas, com rama, de preferência - fazia questão disso, de terem rama, as cenouras. Para ele cenouras sem rama eram tão raras que praticamente achava que eram frutos (não sabia o que eram tubérculos) defeituosos.
 
Ora aquele porco era um suíno que tinha uma grande consideração pelo miúdo, pela dona e pelo dono mas lastimava a falta de cuidado que eles tinham na comida que lhe davam: já tinha acontecido darem-lhe comida quase podre ou mesmo podre o que o ofendia sobremaneira. Sentia-se ultrajado, mesmo, mas pensava (se pensasse) que se tratava de descuidos pontuais e depressa esquecia.
 
Se falasse, e não falava a língua dos homens e falava certamente a língua dos suínos, pelo que aqui também o narrador pouco pode acrescentar, mas pode sim o narrador imaginar, que ele lavraria protesto quando se deparasse com mais frequência com casos desses da comida estragada. Não só era uma ofensa à dignidade (se os porcos tivessem aquilo a que os homens chamam de dignidade) mas também um perigo para a sua saúde e para a saúde dos seus donos.
 
Por isso era um suíno (porco) tolerante.
 
E era também um suíno compreensivo e solidário para com os humanos, sobretudo para o miúdo que lhe trazia a comida por vezes num balde tão grande e tão pesado quanto ele, miúdo.
Bem lhe queria dizer para ele dividir aquilo (o conteúdo do balde) em várias remessas, que ele não se importava de esperar, mas o miúdo tinha também outras preocupações e não podia perder muito tempo pois normalmente deixava o irmão a dormir e num saltinho ia dar de comer ao porco.
 
O porco era irracional, como todos os porcos aliás, e isto até ver nunca se sabe onde a ciência alcança, mas sabia perfeitamente que estava ali para engordar o mais possível e que passado um tempo acabaria por ir à faca.
 
Esta percepção dos porcos, segundo as informações (científicas), é genética, quer dizer, eles quando nascem trazem já o gene correspondente ao desenrolar deste destino e mais tarde sabem perfeitamente que vão morrer na ponta de uma faca, não desta forma tão elaborada, eles não sabem isso com tanto detalhe, mas vão somando (se se pode chamar isso, somar) dois mais dois e pelas conversas e pelos olhares cobiçosos dos donos vão-se apercebendo que a faca se vai afiando dia a dia.
 
Embora fosse vegetariana a maior parte da sua ementa diária sentia que os seus donos viam no corpo dele uns presuntos, chouriças, febras e banha que era o que eles usavam para fazer os fritos entre outras coisas. Pois bem e para encurtar a história o porco chegou finalmente ao ponto em que a sua descoberta que levara mesmo semanas no tempo dele a fossar se descobriu e mostrou-lhe então um génio sabichão, que sabia falar como os porcos e que lhe disse que lhe concedia três desejos.
 
Um deles era - na ideia do porco se tivesse ideia - o desejo de não morrer mas começou a pensar (se pensasse) que os seus donos passariam privações durante o ano caso não tivessem carne para comer pelo que colocou a ideia em segundo plano.
 
Uma vez que a arca donde saíra o génio estava cheia de moedas de ouro propôs ao génio a possibilidade, sujeita a discussão, de vir a falar como as pessoas de forma a poder assim dizer aos donos que estavam ricos e que não precisavam de o matar chegada a altura pois segundo pensava (se pensasse) aquele monte de moedas de ouro daria para eles comprarem tudo o que precisassem, incluindo um porco já partido em presuntos, chouriças e fatias.
 
Quando chegou aqui, e embora tivesse vivido sempre sozinho naquela pocilga lembrou-se da ninhada onde tinha vivido um curto tempo até ao desmame e desistiu logo da ideia. Se falasse com os donos eles teriam de lhe prometer que não comiam mais carne, que se tornariam vegetarianos. Ora isso era um tiro no escuro...
 
Entretanto o génio foi-lhe dizendo que ele se tinha de decidir depressa porque o seu tempo de estadia por ali era curto, não sabia precisar quanto tempo, mas normalmente era quase chegar e abalar. Pois bem, o porco - e nem todas as histórias acabam bem, e nem todas acabam mal - não conseguia decidir-se a tempo e o génio acabou por se ir embora. Desapareceu tal como tinha aparecido, fez-se em nada.
 
Mas logo voltou, o génio, desta vez munido de um calhamaço para aí com cinco mil páginas, ricamente encadernado e debruado a ouro fino e disse então ao porco: «Quando me fizeram génio supuseram que eu seria despertado por humanos e não tiveram em consideração o reino animal. Ora o animal pensa de forma diferente dos humanos e de forma mais lenta. Este livro, que é o livro das leis dos génios diz aqui (e abriu o livro para aí na metade) que os porcos têm dois dias para expressar os seus desejos. Por isso vou-me sentar aqui e vou esperar que decidas.»
 
Não vale a pena, disse o porco em língua de porco, só quero um saco de cenouras invisível aos humanos, cenouras com rama, e daqueles que a gente vai comendo e as cenouras vão ficando sempre em mesmo número.
 
Quanto aos outros desejos, como segundo quero que o baú donde saíste e que está cheio de moedas de ouro fique enterrado para sempre e como terceiro quero ficar a saber como se chora.
 
Daniel Teixeira
 
Série (Fábulas)

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