A estranheza
O Vasconcelos vivia numa habitação toda em madeira – tinha-me dito o homem já com ar de reformado que andava por ali e tinha uma enxada – e era em madeira polida, vi eu depois, era em madeira polida e brilhante, onde o sol batia naquela hora em que lá fui e onde quase se via a nossa imagem na parede.
Era uma casa que parecia não ser uma casa ali posta para que pessoas vivessem nela e se sentissem bem embora tudo estivesse bem, tudo estava certo e a casa era perfeita mesmo, bonita, mas mesmo assim dava aquela sensação de ser provisória. Não parecia um lar, não era um lar mas quem ali vivia talvez visse nela um lar, não sei, nunca soube.
Depois, quando o vi a ele, Vasconcelos, quando o vi tal como ele era fisicamente, a sua casa acabou por se tornar também tão esquisita quanto ele, coisa que eu talvez nem reparasse ou não pensasse muito nisso se ele tivesse uma figura normal.
Talvez por ser em madeira, por estar implantada sobre estacas, por se verem as suas fundações logo ali, por elas darem aquela sensação de nudez estrutural, aquela sensação de vazio, aquela sensação de ser, não sendo, uma casa.
Aquela casa não parecia uma casa onde pudesse viver outra pessoa senão ele mesmo, o Vasconcelos e ele, com a sua quase nudez, talvez ele a considerasse um lar. Mas nunca lhe perguntei e nunca fiquei com a sensação de que ele pensava isso. Acho que não, que não pensava isso.
A estrutura de uma casa como a estrutura de uma pessoa devem ficar escondidas pelos tecidos, pelos acabamentos, ficando assim tudo o que é das suas fundações coberto e de forma a que se veja aquilo que faz de uma casa uma casa e de uma pessoa uma pessoa. Uma casa e uma pessoa devem mostrar a sua forma, não os seus ossos.
Ele não tinha culpa, era assim mesmo, era um resto de homem ou aquilo que resta num homem com uma doença grave, daquelas doenças que transformam as pessoas numa parte reduzida do que elas já foram. Ele nada podia fazer contra isso, era certo, mas ficava com aquele ar de nudez interior e de fragilidade, expondo os seus ossos cobertos apenas por uma pele finíssima com as veias muito vermelhas.
Nele, Vasconcelos, estava tudo logo ali, era uma coisa que eu preferiria não ver mas estava tudo mesmo ali, era impossível ver o Vasconcelos, olhar para ele sem ver isso. Tal como a sua casa ele também mostrava a sua estrutura e só a estrutura. Embora pudesse dar-me pena isso não evitava que eu o achasse esquisito, exposto, permeável.
Havia, na casa dele, uns blocos rasteiros que pareciam ser de cimento, cuidadosamente pintados de branco como que a dizer que «aquilo» era um acabamento. Nele, Vasconcelos, não consegui ver nada que me dissesse o mesmo, nem nos seus olhos que eram mortiços, nem nos seus gestos que eram todos lentos, muito lentos.
Não era propriamente o esperado, não era aquilo que eu esperava, não era suficiente, os blocos de cimento muito brancos deviam saber isso, mas estavam acabados, lustrosos, geometricamente perfeitos e serviam de suporte às estacas. O Vasconcelos dava a sensação de finitude, de deperecimento. Os blocos brancos da casa queriam, pelo menos queriam, ser um acabamento, algo que se acrescenta, queriam ser o «a mais» do que já está feito.
Talvez tivessem razão para se sentirem orgulhosos, aqueles pequenos blocos de cimento: tinham uma função nobre, suportavam a casa e o branco muito branco da sua pintura queria dizer que ela, essa sua pintura, tinha sido o retoque final. Depois dela nada mais fora acrescentado àquela casa. Só o Vasconcelos.
Não teria mais de dois ou três anos a casa do Vasconcelos e sobre os blocos brancos de sustentação, havia um emaranhado de troncos cruzados que conseguia ser harmonioso, é um facto, tudo muito direitinho, mas mesmo isso não lhe dava aquele ar de estabilidade e durabilidade que havia nas outras casas que eu conhecia. Era mesmo uma casa só para ele, pensei de novo.
E é este o problema quando se mostram as estruturas, as nossas estruturas e na casa dele as estruturas da sua habitação. Nunca se devem mostrar as estruturas, nunca se deve dar mais essa margem ao observador. Talvez por pensar assim eu seja ficcionista e não historiador, por exemplo, ou cientista de alguma coisa que tenha de dissecar o real.
Opinamos sobre a beleza e sobre a solidez e isso não deve ser facultado ao observador, deve ser tapado, escondido, não se pode dar ao outro a possibilidade de ter muitos motivos para emitir opinião e sobretudo sobre estruturas porque é aí que ele vai seguramente colocar defeitos, porque as estruturas suportam as coisas mas não são as coisas. São o mais frágil que existe antes que uma coisa seja uma coisa.
E a casa tal como os ossos do Vasconcelos eram seguramente frágeis, sabia-se isso logo que se olhava para uma e outro porque nos mostravam desde logo a sua fragilidade.
As pessoas divagam quando são chamadas ou quando têm a oportunidade de opinar sobre o real e aqui a estrutura representava o real da casa do Vasconcelos, mas ele não representava o real dele mesmo, era uma parte do que já fora e nele não se podia sequer imaginar como tinha sido.
Para mim ele vivia numa estrutura de uma casa com uma casa em cima, pois era isso que a casa do Vasconcelos era. Ele não, ele era uma pessoa cuja fundação interior se dava a conhecer, que se expunha, expondo uma parte que era agora o seu todo. Nada mais havia nele além disso.
E ele tinha razões suficientes para estar ali, todas as razões, assenti para mim mesmo. Podia muito bem ser aquilo que queria ser: o escritor que se afasta do público, que prefere viver como um eremita social. Era a capa que lhe servia para esconder mais, ao fim e ao cabo servia para esconder tudo aquilo que ele queria esconder.
«Este é o meu refúgio – foi o que me disse o Vasconcelos – um dos poucos lugares onde me sinto bem, onde não sou olhado como alguém estranho.
Acho que as pessoas aqui nem sabem ou não querem saber o que é estranho ou acham que tudo é estranho, acho que deve ser mais isso… para eles tudo é estranho e acaba por deixar de o ser.
Para eles, para quem aqui está, nesta aldeia, o que seria verdadeiramente estranho seria verem as coisas de uma forma normal. Já pensei muito nisto, nesta indiferença das pessoas entre si por aqui … acho que este pessoal foi plantado aqui como o são as árvores: não são de cá, são espécies exóticas e nem querem ser de cá. Todos estão por aqui a fazer passar o tempo para se irem embora mesmo que isso lhes leve a vida toda… em certo sentido estão aqui e não estão. Por isso nada lhes interessa…»
E ele, o Vasconcelos, tinha toda a razão, achei eu nessa altura. Eu tinha perguntado sempre a várias pessoas naquela aldeia por uma pessoa magra e doente e todos me responderam de forma natural, como se fosse natural ser-se assim tão magro e tão doente.
Não vi nem senti nenhum sinal ou entoação que se contivesse em cada resposta seca que recebi. Era tudo linear, rememorei. Apenas o homem da enxada, aquele que eu já disse que tinha ar de reformado me olhou com mais estranheza que os outros todos como se todos dissessem a si mesmos que era muito estranho eu andar por ali.
Daniel Teixeira
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