terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Nadine Gordimer e James Amado, convergências em duas obras.

 
Nadine Gordimer e James Amado, convergências em duas obras.
 
Análise de Daniel Teixeira
 
Estive a ler, recentemente, James Amado e Nadine Gordimer. Em primeiro lugar devo acrescentar que não conhecia nada sobre a obra de James Amado e que sobre Nadine Gordimer também pouco conhecia, embora a minha atenção sobre ela tenha sido despertada pelo Prémio Nobel da Literatura de recebeu em 1991.
 
Em segundo lugar, e ainda sobre James Amado, soube que faleceu por estes dias, o que lamento e me faz perguntar também porque razão eu, aqui em Portugal, não sabia nada sobre James Amado, embora a contra capa da edição da Europa América (1977) nos possa revelar alguma coisa sobre este escritor e sobre o romance ao qual só agora tive acesso.
 
Claro que o problema podia ser meu, posso não estar ao corrente mas dificilmente este argumento será suficiente porque mesmo no Brasil as referências a James Amado não são abundantes, se excluirmos a edição das Obras de Gregório de Matos que preparou e deu a conhecer ao público de língua portuguesa. A obra de James Amado a que tive acesso é «O Chamado do Mar», aquele que foi o seu primeiro romance.
 
Sobre Nadine Gordimer o volume que li é «O Conservador», que obteve em 1974 o Booker Prize (inglês) e em 1975 o prémio francês Grand Aigle D'Or.
 
Ora um e outro romance, de dois autores colocados geograficamente distantes  têm, na minha opinião muitos pontos de análise que lhes são comuns, daí ter-se despertado também em mim esta vontade de escrever sobre ambos de uma forma que não pretende funcionar (nem podia) como análise literária no sentido estilístico e valoração artística.
 
Sempre se pode dizer contudo que a escrita de Nadine Gordimer é mais escorreita, facto comparativo que pode também ser atribuído ao facto de no caso da autora se tratar de uma tradução (de fio a pavio - Ana Luísa Faria) enquanto que na obra de James Amado as expressões dialectais do Nordeste Brasileiro se mantêm em muitos casos intactas o que dificulta a leitura a um leitor do português europeu, dificuldade essa que está presente em muitas obras editadas no Brasil.
 
Sobre esta questão, da escrita original das expressões e particularidades regionais do Brasil não quero ir muito longe porque é um fenómeno para o qual ainda não encontrei resposta satisfatória. De um lado sou adepto da expressão da especificidade local mas ao mesmo tempo confronto-me com a dificuldade em entendê-la num contexto de leitura universalista.
 
Entrando então nos dois volumes em referência tanto no caso de James Amado como no caso de Nadine Gordimer as personagens principais, fulcro à volta das quais giram as histórias romanceadas, são dois fazendeiros, todos eles vindos de meios diferentes da actividade rural. Em James Amado, José Alves é um ex-vendedor, balconista e negociante e no caso de Gordimer, Mehring é um industrial/negociante de Aço.
 
Ambos adoptam, de forma diferenciada a actividade agrícola e cada um deles age por razões e formas bem diferenciadas. Alves dentro de um contexto de poder e violência típica dos famosos coronéis vai construindo um pequeno império e Mehring compra uma fazenda por razões de um lado sentimentais e por outro lado também relacionadas com o cansaço e a exigência da vida citadina e da sua vida profissional.
 
Enquanto que a mulher de José Alves é por ele reconhecida pelo trabalho desenvolvido em apoio do marido quando ele dele precisou , no caso de Mehring esta sua mulher, uma ex-mulher, aparece episodicamente em recordações e algumas acções indirectas que percorrem todo o romance.
 
Um e outro, Alves e Mehring estão desadaptados aos meios onde vivem, o primeiro talvez porque adquiriu ao longo dos anos uma rotina deambulatória da qual tem dificuldade em desligar-se, o segundo, primeiro por viver num país que sente não ser o seu (não pertence à maioria branca Böer) e por mostrar um comportamento desligado das realidades envolventes.
 
Em certo sentido, no caso de Mehring, encontramos um pouco de descrição Camusiana, onde não existem objectivos primários e no fundo se trata, conforme o título, de resistir passivamente o que equivale a conservar-se.
 
Alves luta, de forma suja muitas vezes, para manter e aumentar o seu poder, poder esse que estranhamente parece ser um objectivo essencial na sua vida quando já no seu declínio acaba por se desinteressar por ele.
 
Num caso e noutro ambas as personagens têm filhos, Mehring um e Alves três, estudantes semi ausentes e ausentes, respectivamente e cuja intervenção no romance é desligada no primeiro caso e quase nula no segundo. A presença desta progenitura nos dois romances serve bem para mostrar a descontinuidade das actividades e até das pessoas, ou seja, serve para nos dizer que num e noutro romance as vidas dos protagonistas e da sua forma de vida está no fio da navalha e que não existem perspectivas de continuidade geracional, tal como não existe princípio geracional. Assim, e em qualquer dos casos, mesmo noutros aspectos, não se retrata a sociologia das pessoas e dos ambientes envolventes mas sim casos específicos e particulares. 
 
Não tão extenso no espaço de vida de Mehring o romance de Gordimer deixa em aberto o que ainda restará, tudo apontando contudo para uma continuidade da duplicidade de actividades do protagonista, semelhante ao transporte da pedra de Sísifo.
 
Alves acaba por se evadir para uma vivência onde os espíritos e as visões sobrenaturais tomam lugar, numa forma de «morte» delicada, tão recorrente na literatura brasileira.
 
Os universos descritos, num caso e noutro, não são desenvolvidos em extensão: Alves tem um extenso território do qual só se vem a conhecer no romance a casa, um capataz, uma criada entregue pelos pais para ser cuidada, imagem típica de uma forma de servidão escravizante em uso na altura.
 
Mehring tem também um espaço de terreno que pelas descrições colaterais se entende ser de alguma monta mas apenas se fica a saber sobre a casa, uma mística parcela de plantação, uma ou duas vacas reprodutoras e um capataz, negro, neste caso.
 
São dois universos que acabam por se assemelhar mais pela força das descrições dos autores do que propriamente pelas linhas condutoras gerais, o que faz aconselhar a sua leitura para que seja absorvida a maior parte das semelhanças.
 
Assim, em dois locais distantes do mundo (Àfrica do Sul e apartheid e interior do Brasil e coronelato) se passam dois romances, cada um deles interessante à sua maneira, vivendo, se assim se pode dizer da arte dos dois escritores e da sua escrita.
Daniel Teixeira

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