Testemunho - Conto de Daniel Teixeira
Lembro-me bem, agora que são passados muitos anos, que neste espaço de terra batida, coberta de ervas mortas e estevas secas e donde a vida se ausentou para tão longe que se não vê, lembro-me tão bem como se pudesse ser hoje, mesmo sabendo que não seja agora, que aqui havia um prado.
E naquele tempo de que me quero lembrar, porque esta é a imagem que quero guardada e não aquela que vejo, havia em tempos um cavalo branco e também um velho magro que era o meu avô que o olhava sentado naquela pedra grande que daqui se vê.
E lembro-me ainda que quando o meu avô respirava fundo os gases que trouxera da guerra, que ele respirava muito fundo, tão fundo que se ouvia ali perto e mais longe, que nessas alturas então o cavalo resfolgava e parava de pastar. Levantava ele então a cabeça e com as crinas tombadas ficava de olhar parado e o que ele então via e pensava não pensando não sei porque eu era ainda uma criança e as crianças não sabem muitas coisas como eu não sabia.
E estava eu, o neto, e olhava o meu avô e o nosso cavalo, e o prado e o céu azul e os montes e as casas brancas e os cercados e os caminhos e os valados. Mas isso era tudo o que eu via.
O meu avô e o cavalo viam aquilo que havia e aquilo que ia haver porque eram crescidos e já tinham uma idade que eu não tinha. Viam ambos todas as coisas que eu via e aquelas que um dia poderia ver também. Foi isto que o meu avô me disse, que era assim mesmo que as coisas se passavam, que para além daquilo que se vê há mais coisas, umas que já existem e não se mostram aos nossos olhos e outras que vão acontecer.
Neste tempo que quero lembrar e enquanto escovava o pelo e as crinas do cavalo branco e conversava com ele, dizia-lhe o meu avô palavras que eu, criança, procurava entender e que ele e o cavalo entendiam. E o meu avô com os olhos feitos ainda mais pequenos e ainda mais tristes disse-me que o nosso cavalo branco estava de partida para o céu dos cavalos.
Neste tempo que quero lembrar e enquanto escovava o pelo e as crinas do cavalo branco e conversava com ele, dizia-lhe o meu avô palavras que eu, criança, procurava entender e que ele e o cavalo entendiam. E o meu avô com os olhos feitos ainda mais pequenos e ainda mais tristes disse-me que o nosso cavalo branco estava de partida para o céu dos cavalos.
E enquanto falava com o cavalo o meu avô dizia-lhe para que ele não tivesse medo, que tudo ficava bem, que tudo ficaria como estava, que o prado e o estábulo ficariam ali até ao seu regresso, porque ele, o cavalo branco ia regressar, um dia, ele não sabia quando, disse-me, o meu avô não sabia quando mas sabia que havia um regresso.
O que o meu avô não me disse porque eu era uma criança é que quando se cresce muito, mesmo muito, quando ficamos com a idade do meu avô e do cavalo branco há uma altura em que se vêem muito mais coisas e que quando já se viu tudo o que havia a ver, quando mais nada de novo há para ver, quando se sabe tudo o que aconteceu e o que vai acontecer, que nessa altura se fecham os olhos e que tudo aquilo fica ali, dentro dos olhos fechados, guardado para sempre.
Um dia talvez eu soubesse também quando os cavalos estão para ir para o céu dos cavalos, pensava. Mas eu era uma criança e não podia saber ainda.
Mas o meu avô sabia e o cavalo branco também sabia e hoje, aqui em frente a este prado morto, sei também tudo isso. E ali ficava eu, muito tempo, sempre, todos os dias. Talvez eu visse o cavalo galopar subindo em direcção às nuvens, pensava.
Foi isso que o meu avô me disse, que era assim que os cavalos partiam, iam e iam e iam galopando pelo azul e subiam sempre cada vez mais até ficarem do tamanho de uma estrela. Depois todas as noites se podia ver o nosso cavalo estrela.
E ensimesmado acrescentava murmurante que para além de mim e da família o cavalo branco era agora o único amigo verdadeiro que lhe restava. Muitos, todos os seus amigos tinham partido disse nesse tempo o meu avô e eram eles agora estrelas cintilando na noite entre outras estrelas amigas de outros amigos.
E eu perguntei então como sabia o avô quais eram as estrelas dos seus amigos e ele respondeu-me que todas as estrelas que havia no céu eram suas amigas e que não havia nenhuma que não fosse sua amiga. E foi assim mesmo, com estas palavras, que o meu avô me respondeu.
Agora aqui em frente a este desolador descampado que já teve em tempos erva verde, um cavalo branco e o meu velho avô lembro-me de tudo. Mas eu tive de partir e não vi o cavalo branco correr entre as nuvens nem vi o meu avô transformar-se numa estrela também, dias depois.
Agora que já tenho idade para ver aquilo que se vê e aquilo que se não vê, aquilo que acontece e o que não se vê acontecer sei que os dois foram para o céu e sei que entre o céu dos cavalos e o céu onde está o meu avô há um prado verde e um estábulo onde eles se encontram e onde o meu avô lhe acaricia e escova as crinas e o pelo e fala com ele como falava antes, dizendo-lhe que tudo aqui será como antes, o prado, o estábulo, tudo.
Quando ele e o cavalo voltarem, porque vão voltar porque é certo que há sempre um regresso, eu já terei plantado de novo aqui erva verde, já terei reerguido o estábulo, tirarei o musgo àquela pedra onde o meu velho se sentava e farei tudo para que tudo volte a ficar como era antes.
E é essa a minha missão aqui.
E é isto que te queria dizer, hoje, aqui, porque o que te digo é o testemunho daquilo que já foi e sempre será, meu querido neto.
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