segunda-feira, 8 de julho de 2013

Numa aldeia na montanha

 
Numa aldeia na montanha
 
Conto de Daniel Teixeira
 
Era um aldeia algures por Deus e pelos homens colocada no topo de um monte que ficava no topo de uma montanha. Os Tempos, Deus e os homens tinham mantido aquela aldeia tão isolada durante tantos dos últimos anos que eram agora nenhuns os contactos que aquela gente tinha com as gentes das aldeias mais próximas, estas também colocadas por Deus e pelos homens no topo de outros montes que ficavam noutros topos da montanha.
 
Apenas, e de quando em vez, e quando Deus e o Vento ajudavam, se ouvia, sempre ao longe, muito ao longe, o tocar dos sinos das Igrejas: por vezes era ao Domingo, era o dia das Missas, outros dias, sem dia nem hora marcada, eram os dobres de finados que soavam, tilintando uma morte, lá longe, muito ao longe, mesmo muito ao longe, ou cá perto, dentro da pequena aldeia.
 
Os caminhos, íngremes, pedregosos e talhados nas encostas pelas botas grossas dos homens, pelas rijas tamancas das mulheres e pelo casco dos animais eram difíceis de percorrer e eram longos, aqueles caminhos, eram mesmo muito longos e aquilo que se via, aquela horta além, aquela árvore ali, aquele pasto ao fundo, e que pareciam ficar logo ali, nunca ficavam mesmo logo ali, onde a vista os via, era sempre mais longe, tinha sempre mais caminho a percorrer, havia sempre um caminho que parecia estender-se cada vez mais e mais à medida que se o pisava.
 
Estivesse alguém por lá que se lembrasse de falar nisso, ou que soubesse o que se passava, ou que quisesse mesmo dizer o que se passava e saberia dizer que as pessoas daquela aldeia, e das outras à volta certamente, iam ficando menos rijas, mais maduras, mais enrugadas na pele e nos membros e que quando as pessoas amadurecem o seu corpo, as suas pernas e os seus braços tornam os caminhos mais longos. Assim é a vida e assim era naquela aldeia.
 
Só o Padre tinha sempre presente a consciência disso, só ele podia dizer isso àquela gente que não queria sentir ou falar nisso. Mas ele nunca o disse, nunca falou na natureza dos homens, da fragilidade da vida terrena: sabia bem, ele, que ninguém ia querer falar nisso e falava-lhes de Deus e do Céu, das alegrias do Amanhã.
 
Ele também já estava bem maduro e por ali tinha ficado desde quando era novo: durante alguns anos ainda fora à sede da sua paróquia, que ficava longe e foi ficando cada vez mais longe e um dia nunca mais lá voltou. «Não serve de nada!» - disse - «o que por lá se diz não tem nada a ver com a minha gente e com a minha aldeia». E por ali ficara: «para sempre» - murmurou.
 
E estava a ser, quase, estava quase a chegar o final do tempo dele: adoentado, porque desta vez o rigor do inverno tinha-lhe gelado os pulmões mais do que era costume, comia a canjinha que a senhora Maria lhe trouxera: «Desculpe senhor Padre, mas hoje não há outra coisa...» dizia muitas vezes e ele respondia sempre: «Deixa minha filha...não te preocupes: Deus dá o apetite no tamanho certo daquilo que se tem para comer.»
 
E a senhora Maria, viúva e e com um único filho, que tinha um defeito na cabeça, era pouco esperto, lá levava a sua vida de viúva e mãe de um moço que não sabia fazer nada, calcorreando todos os dias o caminho até à Igreja, vinda lá da outra ponta da aldeia, com aquilo que ia conseguindo dos alimentos dela e dos vizinhos.
 
A senhora Maria já nem se lembrava de quando levara ao senhor Padre um almoço mais farto. Já havia algum tempo, sim, muito tempo...e agora com ele doente...e os caminhos cheios de neve, quando quase ninguém saía de casa para ir às hortas geladas apanhar o que por lá ainda estivesse vivo.
 
Estava muito grata ao senhor Padre, aliás toda a gente naquela aldeia estava muito grata ao senhor Padre, mas ela estava ainda mais, se fosse possível: ele arranjara maneira de manter o filho ocupado, fizera-o sineiro, o homem que toca os sinos tanto pela oração como pela morte. E tinha uma paciência de santo: já havia dois anos que todos os domingos e finados lhe dizia como devia fazer: «puxas duas vezes por esta corda e três vezes pela outra, depois repetes ao contrário, três vezes pela primeira corda e duas vezes pela segunda». Havia mais...mas nem os mais simples ele aprendia.
 
Punha-se então ao lado dele e ia-lhe dizendo: duas vezes, três vezes, três, duas e o Toninho fazia o que o senhor Padre dizia. O que o Toninho gostava de ouvir era o senhor Padre dizer-lhe «Toca com a alma...não é só com as mãos e os braços, toca com a alma» e quando acabava gostava ainda mais de ouvir o senhor Padre dizer-lhe que tinha tocado com a alma: «Hoje tocaste mesmo com a Alma!» e ele corria a dizer à mãe, corria a dizer a todos os que encontrasse pelas ruelas, ria-se muito, o contentamento enchia-lhe o rosto, enrubescia-lhe a face e por minutos, por curtos minutos, parecia uma criança como outra qualquer que crescera mais que os outros.
 
O que me contaram depois de me terem contado o que eu não via, quando fui a essa aldeia, alguns anos depois, é que tinha havido ali um milagre. O esperado falecimento do senhor Padre teve lugar numa noite muito escura em que nem as pessoas se viam umas às outras nas ruelas.
 
Todas se dirigiram a casa do senhor Padre, que era um santo homem, como me foi dito por todos várias vezes. O milagre teve lugar quando o Toninho se agarrou às cordas dos sinos e começou a dobrar a finados, sozinho e sem ninguém, lhe dizer nada.
 
Todos pensavam que ele não quereria e nem seria capaz de tocar os sinos. Mas foi. Foi capaz mesmo. E disseram-me que foi comovente, que todos se comoveram ao ver o Toninho sob a torre a puxar as cordas e a dizer bem alto, repetindo a cada toque: «Toca com a alma Toninho, toca com a Alma! Com a Alma Toninho!»
 
(Série contos da montanha)
 
 

O meu encontro com a Mi...

 
O meu encontro com a Mi...
 
Foi em Nova York recentemente e numa das muitas vezes em que me desloco lá para tratar dos meus negócios. Vestia o meu fatinho à Wall Street, levava uma gravata lavrada com raminhos e sapatos de uma marca italiana que não vou aqui dizer qual é para evitar estar a fazer publicidade.
 
Ia de pastinha, todo feito para chegar à Bolsa antes do toque da sineta porque acho que se leva multa se se chegar atrasado e apressava-me para atravessar uma passadeira no meio de uma aglomeração de cerca de duas centenas de pessoas todas à espera do sinal verde quando ouço um grito, ou um gritinho, para ser delicado, que me pareceu ser assim: «Oi pá, espera aí!»
 
Se não fosse uma voz feminina é provável que eu nem ligasse, não ia interromper o cálculo da passada para atravessar a zebra e estava já concentrado havia alguns segundos para avançar o já semi suspendido pé direito assim que o verdinho aparecesse. Tinha eu, assim, as pernas em alerta amarelo e dependentes apenas daquela fracção de segundo que leva a mudar a cor do sinal que até já começara a piscar o vermelho final do lado de lá.
 
De esclarecer que atravessar uma rua em Nova York requer muita concentração e sobretudo é preciso não ter hesitações porque pode ser a morte do artista, isto dito em sentido figurado, é claro, porque em Nova York não se morre atropelado. Bem, regressando ao gritinho do «ói pá» olhei para trás e perdi o sinal, é claro, porque quem vinha na minha direcção acenando-me era nada mais nada menos que a Mi...
 
Vou esclarecer que não sou gago, mas não consegui pronunciar nem uma vez o nome todo da Mi. Podia escrever, certo, mas eu estou a contar uma história e tenho de ser fiel ao que se passou de facto. Por isso é Mi e será Mi forever (nesta história).
 
Bem, a Mi eu não conheço senão dos jornais e da televisão. É casada com um gajo muito conhecido mas era mesmo a mim que ela se dirigia. O «ói pá» passou a «estás porreiro» e a uma beijoca na face. Não estava bem porreiro ainda mas fiquei logo porque a senhora transpirava alegria por me ver. Sorri também, por minha vez, disse o clássico «vai-se andando» e acrescentei «então e tu?» porque é como se costuma dar seguimento às conversas.
 
Ela estava porreira também, numa boa e cheia de genica, o marido tinha ganho uma coisa qualquer havia dias e ela puxou-me forte pelo braço e anda cá, vamos ali tomar uma bica e por a conversa em dia.
 
Repito que não conheço a Mi senão dos jornais e tinha de ser mesmo ela, a Mi, porque dois matulões de fato cinzento acercaram-se então de mim, apalparam-me todo, ela riu-se, pediu-me desculpa mas não conseguia fazer nada daqueles gajos, disse, eles apalpavam toda a gente com quem ela falava e era assim a vida dela; só falava com apalpados e quando disse isto partiu o coco a rir.
 
Estava ali uma tasca mesmo a jeito, por acaso de um descendente de italianos como dizia no placard o que era bom para mim porque aquele pessoal sabia tirar uma bica de jeito e embora estivesse ainda surpreso pela inusitada, inesperada e antes improvável abordagem da Mi mandei vir e ela começou a debitar as «nossas» recordações de jovens.
 
Falou daquela vez em que ela estava quase a cair do cavalo e que eu a tinha sustido pela cintura e segredou-me que fui parvo porque o traseiro estava mais a jeito, enfim, ao fim de dez minutos de blá-blá eu já estava convencido que conhecia a Mi praticamente desde criança.
 
Passou a ser aquela mocinha negrinha que apareceu lá no bairro, com uma dentadura de fazer inveja e que descascava as caricas para a malta, que brincava com a gente tipo maria rapaz e dava umas arrochadas valentes quando jogávamos futebol. Essa era a Mi, a minha conhecida Mi que até nem se chamava Mi.
 
Foi só meia hora, para meu bem, porque eu só dizia Mi, e yes e all right. Aliás ela nem me dava tempo para dizer mais se eu conseguisse. Depois chegou a limousine, ela deu-me outro chocho, agora na testa, duas pancadas nos ombros, um soco no estômago e já me tinha dado três caneladas com os sapatos de bico. Agora tinha que ir a uma Conferência e a gente via-se por aí.
 
Bem, para o mês que vem tenho de ir a Nova York...mas à cautela já deixei a barba ir crescendo.
 
(Série humor colorido)

O homem que sabia demais

 
O homem que sabia demais
 
Ele era uma pessoa simples, - foi o que me disse - extremamente simples - acrescentou: quem falasse com ele não se aperceberia nunca que ele sabia demais.
 
Não o dava a entender espontaneamente nunca e só o fazia, só mostrava que sabia demais, não mostrando que sabia demais, quando para isso era solicitado, quer dizer, quando alguém lhe perguntava uma coisa que como sempre ele sabia.
 
Nessas alturas ficava conhecido como o homem que sabia muito e nunca como o homem que sabia demais.
 
Só ele mesmo sabia que sabia demais. E agora eu - acrescentou apontando-me para a peitaça e espetando levemente o dedo indicador entre a quarta e a quinta costela.
 
Achava que não era delicado estar a dizer que sabia demais, confidenciou-me, mas dentro dele cada vez que algumas pessoas abriam a boca à sua frente num ambiente normalmente intelectualizado ou selecto e pretensamente culto ele sentia remexer dentro de si aquelas odiosas palavras que lhe dançavam no cérebro como flechas prontas em arco retesado: «Grande estúpido, Parvalhão! Grande camelo!» etc. etc.
 
O «aparecimento» daquelas palavras quando se encontrava em frente ao seu interlocutor e com as quais lutava havia muito faziam-no enrubescer, pigarrear, torcer as mãos e os dedos, contorcer um pouco a face e temia - ó se ele temia e como ele temia - que um dia não conseguisse conter dentro de si aquelas palavras e outras do mesmo género (as etc.etc. acima) que lhe vinham à ideia e que umas e outras se escapulissem cá para fora e fossem ditas.
 
Seria uma grande bronca, convenhamos, eu como ouvinte desta história e vocês como leitores estaríamos seguramente de acordo se estivéssemos em diálogo.
Mas não estamos...quem dialoga aqui comigo é o Gabriel, o homem que sabe demais.
 
Recomeçando: ele sentia-as, sentia essas malditas palavras construirem-se tecla a tecla nas cordas vocais, escorregarem-lhe sinuosas pela língua, pressionarem-lhe os lábios e daí os trajeitos faciais em forma de bochecha plena que apontava aos circundantes.
 
Mostrou-me como era, o Gabriel, e francamente achei ridícula a sua cara. Nem um trompetista consegue tal amplitude bochechal.
 
Fazia tudo o que era possível - disse-me - para virar a face, olhava discretamente para o tecto como se procurasse palavras exactas, lembrava-se do seu cão, do cágado da filha e até de acontecimentos funestos, mas nada resultava, para ele nada resultava porque o homem sabia realmente demais, muito demais e nestes casos não dá mesmo.
 
Procurava fugir aos acontecimentos sociais precisamente por causa disso mas era tudo trabalho impossível porque a sua mulher, para azar maior seu, uma socialite descarregada de uma família pequeno burguesa subitamente enriquecida, insistia em mostrar o sabichão do seu marido aos amigos e conhecidos e todo o pessoal que aparecesse numa das suas numerosas recepções e jantares.
 
Obrigava-o a calcular de cabeça números ao calhas ditos pelos presentes, seiscentos e dezasseis vezes sete mil novecentos e catorze, raízes quadradas e cúbicas e outras coisas em que ele nem precisava de utilizar o seu dom (e a sua maldição) de saber demais porque normalmente as pessoas (parvas) repetiam os mesmos números e as mesmas perguntas por vezes com variantes insignificantes em que bastava acrescentar ou um número aqui ou uma palavra ali.
 
Começava a estar farto não de saber demais mas farto porque os outros sabiam de menos, eram estúpidos, ignorantes e todo um rol de adjectivação que ia debitando dentro de si mesmo e que me repetiu com um olhar lastimoso. Deu-me pena ver o Gabriel assim e teria até mostrado um ar pesaroso se não soubesse que ele ia considerar isso uma parvoíce.
 
Ainda se ele amasse a sua mulher, pensava, dizem que o amor resolve muita coisa, ainda se ele a amasse, podia ser que conseguisse conviver com o facto de saber demais, talvez a força dos sentimentos amorosos o forçasse a arquivar por segundos, minutos ou horas parte de tudo aquilo que sabia, talvez o amor o levasse a pensar apaixonadamente, que, como toda a gente sabe, não é um pensamento de razão, embora ele soubesse que não era bem assim e que isso era uma figura de estilo do parvo do Camões.
 
Mas não a amava, não amava a sua mulher, nem podia, ela era a imbecilidade em forma de gente e nunca poderia amá-la, como é claro, para além de outras razões todas elas relacionadas com a fraca capacidade de encaixe mental da sua mulher. Fisicamente era um borracho - rematou em estilo de compensação.
 
Tinha casado contra vontade, fora aquilo a que se chama «apanhado a laço» e depois de um descuido excessivamente erótico que redundara no rebento que agora tinham. Embora gostasse bastante da miúda lamentava que fosse por causa daquele descuido que ele estivesse agora a sofrer o que sofria.
 
Gabriel!!! Chamava a sua dita cara metade: diz lá aqui ao Alfredo em que ano o D. Afonso Henriques descobriu o caminho marítimo para a Índia. «Estúpida, parvalhona, o D. Afonso Henriques nem sequer sabia nadar...».
 
Mas isto não dizia, é claro, desfazia o engano, colocava as coisas historicamente certas, juntava uma plateia razoável à sua volta, era aplaudido no final da sua intervenção e mais uma vez conseguia reter os palavrões que lhe dançavam freneticamente ultimamente em ambas as bochechas.
 
Encontrei o Gabriel depois de longos anos, fomos colegas de escola, na primária, onde ele era um cábula preguiçoso e o recordista da classe a levar reguadas. Contou-me assim por palavras dele a sua vida, desgraçada, como ele a nomeou.
 
Disse-me que teve um vipe, um dia, ou uma noite, não se lembrava bem e que no dia seguinte sabia demais. Disseram que foi milagre, e eu para mim fui-me dizendo : «realmente só um milagre faria deste gajo alguém que soubesse alguma coisa e para saber demais seriam necessários pelo menos uns dez ou vinte milagres».
 
Aconselhei-o a fazer um crosse todo o terreno em locais desertos todos os dias e a dizer um daqueles malditos e ao mesmo tempo desejados e contidos palavrões a cada passada. Acho que esta forma de desabafar, ele, o homem que sabia demais, não sabia.
 
E despedimo-nos com pancadas nas costas, obrigadinhos do Gabriel e ele afastastando-se de dedo indicador levantado num ok modernaço.
 
Daniel Teixeira
 
Série Humor Assim Assim

Verão

 
Verão
 
Havia uma chaminé, uma chaminé pequena, branca e também tisnada de um negro não muito escuro. Quase nem se notava, o negro. A chaminé parecia assentar nas telhas, e era mesmo assim como eu digo, assentava, simplesmente, como se tivesse sido ali plantada. Era como se fosse uma árvore de tronco claro num chão de terra castanha.
 
Por aquilo que eu via era uma casa baixa, ou talvez eu estivesse num ponto mais alto que o seu solo, não vi isso desde logo. Há casas baixas, eu sei que há, mas assim tão baixas mostrando-me o telhado e o enfiamento das telhas logo ali à minha altura, isso não. Teria de ser uma casa muito baixa, demasiado baixa para ter gente.
 
E tinha gente, tinha que ter. Havia um fumo ligeiro, esbranquiçado que saía do rendilhado da chaminé, assim - e fiz um gesto com as duas mãos - fazendo uma espiral que se diluía logo um metro ou dois depois em direcção ao azulado escuro do céu.
 
Talvez houvesse ali uma velhota, uma viúva, aquecendo-se à lareira - pensei. Mas nem estava assim tanto frio. Era capaz de não ser uma velhota aquecendo-se à lareira. Talvez estivesse cozinhando, fazendo uma sopa de couve com bocados de abóbora. E batata, uma sopa leva sempre batata.
 
Para ela chegava, um sopa chegava, se fosse mesmo uma velhota que lá estava cozinhando, mas não devia ser, pensei depois ao olhar melhor as paredes da casa. Estavam muito branquinhas, caiadas. E caiar as paredes de uma casa não é trabalho que possa ser feito por velhotas.
 
Talvez tivesse alguém que lhe caiasse a casa, um filho, um genro, alguém, também pensei. E podia não ser uma velhota cozinhando, talvez fosse uma pessoa de meia idade, era mais certo. Por ali não havia gente mesmo nova, isso eu sabia.
 
Os novos, os mesmo novos, tinham todos partido, abalado, tinham ido viver para outros lados, no estrangeiro ou na cidade, tanto fazia, tinham-se ido embora, para um lado ou outro. Os novos vão-se sempre embora, é muito raro ficarem, quase nunca acontece encontrar pessoas novas nas serras, naquelas serras.
 
Só no verão, lá pelo mês de Agosto ou mesmo no Natal. E é quando os velhotes, como aquela velhota que eu imaginava viver naquela casa vêem gente nova. Os netos, os filhos e filhas. E é bonito ver o corropio pelos caminhos, as correrias, os gritos.
 
E é quando os velhotes deixam de ser velhotes durante aquele tempo. São velhos, na mesma, mas deixam de ser velhos. É assim como que um acordar de uma vida onde jazem. Acho que não vivem, mesmo, durante esse tempo todo, durante quase todo o ano, os velhotes naquela serra. Respiram e esperam.
 
Ah, mas aquela casa, aquela casa, parecia bem tratada, estava mesmo bem tratada. Até o telhado que eu via, longo, talvez cobrindo três ou quatro quartos e uma sala, tinha as telhas bem direitas, bem alinhadas.
 
Não eram novas, as telhas, tinham aquele castanho esbatido, amarelado quase e viam-se algumas manchinhas de verde do musgo, talvez. Devia ser musgo.
 
A porta, pintada de castanho vinho cerrava a casa do outro lado por onde passei. E havia ainda duas janelas, também cerradas. E afinal a casa não era assim tão baixa. Não era muito alta mas também não era baixa. À volta da porta havia um amarelo ocre, uma tira um pouco larga, talvez com quinze centímetros e em dois canteiros, um de cada lado da porta, haviam umas hastes mortiças que esperavam a floração.
 
Talvez em Agosto, e se eu por ali passasse nessa altura, devia ver flores, certamente que as haveria. A velhota, se fosse mesmo uma velhota ou uma senhora de meia idade, tinha combinado com a natureza fazer florir aquelas hastes, agora quase secas, no Verão.
 
Dariam um ar mais bonito à casa - devia ela pensar. O que teria ela plantado ali (?) - perguntei-me. Deviam florir muito, no Verão, aquelas plantas. Ainda bem. Seriam como ela, floririam no mesmo tempo.
 
As risadas dos netos, o corropio, os choros das quedas no chão pedregoso, as asneiras que as crianças fazem, o ralhar, as pequenas irritações, os miúdos que não chegam a horas para comer, as repreensões dos pais e das mães, a filha ou a nora que diz que a sopa se faz assim e não da maneira que sempre se soube, tudo isso faz parte, velhota, tudo isso faz parte.
 
Já quando me afastava fui olhando para trás e lá estava ainda o fumo branco correndo da chaminé, as telhas alinhadas, a porta fechada. Tudo estava na mesma e tudo ficaria na mesma.
 
Eu sabia...isso eu sabia. Só mudava no Verão.
 
«Deus te guarde, velhota!» - tive vontade de lhe gritar já eu ia bem longe.
Afinal não falta muito para chegar mais um Verão - murmurei.
 
 

Ana

 
Ana

Por vezes a gente lê ou ouve histórias e acha que as coisas se podem passar assim como se conta nas histórias. E por vezes também sabemos que as coisas não se passam assim e que não poderiam nunca passar-se assim, mas que é bom acreditar que as coisas se passam daquela forma que ouvimos ou lemos.

Acho que é bem melhor acreditar que as coisas se passam como as pessoas dizem ou escrevem nas suas histórias. Muito melhor, mesmo. Podemos dizer que era bom que se passasse assim, que as coisas fossem assim tal como nos dizem ou como lemos.

E podemos também dizer que ainda bem que as coisas não se passam assim como lemos ou ouvimos quando não gostamos. Mas as coisas, todas as coisas,  equilibram-se sempre, porque há sempre um equilíbrio.

Quando isso tem lugar, quando não gostamos daquilo que ouvimos ou lemos dizemos para nós mesmos que as coisas deveriam passar-se de uma outra forma, daquela forma que nós gostaríamos que se passassem.

E então ficamos a gostar da nossa ideia sobre a forma como as coisas se deveriam passar. E desta nossa ideia já gostamos e esquecemos que ouvimos ou lemos aquela coisa de que não gostámos. Assim é que as coisas se passam, sempre, acho eu.

Comigo acontece isso sempre e não me lembro de alguma vez não ter gostado de uma história. Acho que só agora, há pouco tempo, comecei a duvidar disso, de que gosto de uma história, contada ou imaginada, sempre.

Bem, o que eu digo é que por vezes não é da história que foi contada ou lida que eu gosto, mas sim da história que eu imaginei contrariando a outra história.

Por causa do equilíbrio, eu já disse isso, é preciso sempre estar em equilíbrio, é preciso nunca perder o nosso equilíbrio. Fomos feitos assim e temos de manter sempre a forma como fomos feitos.


Se não fosse assim perdíamo-nos, primeiro no nosso mundo e depois no mundo à nossa volta. E é isso que eu sempre disse à Ana.

Disse-lhe sempre isso, que precisamos de manter o nosso equilíbrio, que temos de acreditar no que lemos ou ouvimos ou naquilo que imaginamos a partir do que ouvimos ou lemos.
E que esse imaginado - disse-lhe sempre, e foram tantas as vezes que lhe disse- se deve conter dentro do equilíbrio de que tenho falado aqui, daquele equilíbrio que nos faz gravitar em redor de um eixo e que nos não deixa perder-nos em nós mesmos ou no mundo.  

Mas eu acho que a Ana nem sempre acreditava nesta verdade tão simples, tão óbvia, tão clara.

Acho que a Ana pensava que podia pensar por ela mesma aquilo que podia ser melhor ou pior para ela. E eu não estava e não estou de acordo, como será claro. Penso sempre e repeti-lhe sempre que ela deveria pensar aquilo que eu penso.

Não exactamente o mesmo, ela não deveria pensar precisamente tal como eu penso, é claro, mas a Ana devia seguir o método. O mesmo método que eu sigo sempre e desde sempre, acho eu.
Disse-lhe vezes sem conta que ela não deveria imaginar aquilo que não é imaginável. E tudo isto, repito aqui como repetia à Ana, para manter o equilíbrio, para não nos perdermos, para sabermos sempre o que somos.

Mas ela achou que podia ir além do imaginável.

Assim e infelizmente ela acabou por perder-se no mundo. Hoje nem me ouve sequer, não ouve os meus conselhos, não segue os caminhos que poderiam, talvez - isso não sei - trazê-la de volta, de volta ao imaginável, ao dito e ao escrito, ao real, ao fim e ao cabo.

Tenho bastante pena da Ana. Cheguei mesmo a gostar dela daquela forma, quer dizer, daquela forma que um homem gosta de uma mulher. Não me lembro bem mas acho que foi isso, gostei mesmo dela dessa forma.

A Ana nem sempre vem. Penso que seja para não ouvir aquilo que eu lhe digo sempre sobre a necessidade de equilibrio. Mas a maior parte das vezes acho que ela não consegue arranjar comida e então vem ver-me mesmo.

Ela sabe que eu lhe dou sempre comida, nunca faltei, nem uma vez. Mesmo quando estava mais irado com ela dei-lhe sempre comida e vou continuar sempre.

Mas já não gosto dela, isso é verdade, para mim ela representa aquela parte das histórias que se ouvem ou lêem de que eu não gosto. Infelizmente não consigo também ler nela a outra face da história tal como faço com as histórias de que não gosto.

Não consigo. E esta sensação estranha de impotência perante a vontade de alterar a história da sua vida perdida no mundo é um suplício para mim.

No fundo acho que ainda gosto um pouco dela, daquela forma que um homem gosta de uma mulher...talvez seja por isso, talvez venha daí esta vontade que não se concretiza de ter a outra face da sua história.

Talvez eu goste dela tal como ela hoje é.
 


 

A viúva

 
A viúva
 
Era bom que vocês se arranjassem, disse-me mais uma vez a minha irmã. Havia já tempo que ela vinha repetindo isso. Era bom mesmo que vocês se arranjassem os dois - dizia-me. Ela e tu por aí sozinhos, os dois bons moços, tu um bom rapaz, ela uma boa rapariga, tão nova e tu tão novo, fazia jeito aos dois - acrescentava a minha irmã quase em remate da conversa e antes de sair de minha casa e regressar à sua vida.
 
A minha irmã, no entender dela, tinha uma vida e eu não tinha uma vida. Ela era casada, tinha dois filhos, dois sobrinhos meus, bons miúdos, um marido que era um excelente rapaz, enfim, acho que ela se sentia bem mesmo que tivesse de trabalhar bastante. Porque ela trabalhava bastante, oito horas na fábrica e mais o que fazia antes de ir para a fábrica e depois de regressar da fábrica.
 
E aos fins de semana também trabalhava muito. Oferecera-se para tratar da minha roupa, vinha-me fazer a cama uma vez por semana, mudar os lençóis, «dar um jeito à casa», como ela dizia, porque uma mulher sempre sabe fazer as coisas melhor, acrescentava, sempre remexendo alguma coisa enquanto falava.
 
Ela tratou do marido sempre, mesmo com ele já de cama nunca lhe faltou nada, o João, o pobre do João, um dos meus melhores amigos que acabou por morrer muito cedo, de cancro. Coitado do João, era bom amigo sim senhor. Os dois fazíamos as aldeias todas, os bailaricos, as festas, as feiras e divertia-mo-nos a valer, dizia eu à minha irmã. Depois veio o cancro e o João acabou por morrer, acrescentava a minha irmã.
 
Mas o João para mim já não era o mesmo desde que se casou, não era por causa da mulher, era por causa da vida, daquilo que a minha irmã chamava vida, ser casado, ter filhos, que o João nunca teve, enfim, tinham ele e a mulher a sua vida, uma vida como a da minha irmã e do meu cunhado.
 
Mas eu tinha tido muita pena do João, coitado. Quando o vi regressar de Lisboa quase nem o conhecia. Estava muito magro, sem cabelo e sem bigode, o bigode que ele gostava tanto, que enrolava nas pontas num tique nervoso.
 
Lembro-me tão bem como se o estivesse a ver agora. Quando ele ia convidar as moças para dançar lá ia ele de dedos nas pontas do bigode e mesmo quando estava a dançar não largava o bigode. Muitas vezes lhe disse que as moças reparavam nisso, que ele devia deixar de fazer aquilo, mas ele não se continha e enrolava sempre o bigode, estava sempre a enrolar o bigode, mesmo quando já não o tinha, depois de voltar de Lisboa e até morrer.
 
Ele sempre achou que arribava, que não ia morrer, que tinha esperança, que bastava passar aquela crise e que ele voltava a ser como era. A mim disse-me que voltaria a ir aos bailes e festas comigo, que levava a mulher porque ela também gostava de bailar e ele nunca mais tinha ido a um baile desde que casara. Nem ele nem ela.
 
E a mulher ali ao lado a ouvir tudo e a dizer que sim, que sim senhor, que começavam a ir os dois aos bailes e que me levavam a mim também, que seria bonito, irmos os três aos bailes, e às festas e às feiras.
 
Quando ele morreu chorei tanto como se tivesse perdido um irmão, a minha irmã que me perdoe, mas ele era como se fosse meu irmão e depois de casar mesmo que ele tivesse a sua vida de casado a gente ainda era muito amigos, fomos sempre, só que deixámos de ser amigos como éramos antes.
 
Se ele arribasse, como dizia, tudo voltaria ao mesmo e seria bom mas ele não arribou, aquele cancro tinha-o marcado mesmo, estava ferrado nele e não o deixou arribar. E agora a minha irmã que queria que eu me arranjasse com a mulher do meu amigo João. Isso não se diz, devia eu dizer-lhe a ela mas nem era preciso eu dizer-lhe, ela sabia que isso me estava atravessado na alma, a minha irmã sabia isso tudo, ela conhecia-me bem.
 
Era um favor que fazias ao teu amigo lá no Céu onde ele está com certeza. Tomar conta da mulher dele, da mulher de quem ele gostou tanto. Eram unha com carne os dois que eu bem falava com ela e ela bem me dizia. Ela não precisa de nada, não senhor, trabalha na fábrica e o João deixou-lhe a reforma.
 
Nem precisam de casar para ela não perder a pensão. Ela precisa é de ter um homem em casa, uma mulher tão nova e sozinha não fica bem, podem começar com falatórios, sabes como é, não demora muito que comecem a falar.
 
E eu sempre sem querer fazer isso ao João, não queria arranjar-me com ela, não senhor, com a mulher dele, e não sabia como a minha irmã dizia que sabia o que ele pensava lá no Céu onde estava com certeza.
 
Foi quando apareceu o Manuel a rondar, andou a rondar a casa dela e um dia juntaram os trapinhos. Não era mau moço o Manuel, não era não, isso eu disse à minha irmã. Mas ela não ficou nada contente, a minha irmã. Para ela aquele lugar que o Manuel agora ocupava na casa do falecido João devia ter sido meu, sim senhor, tinha sido meu.
 
Vê lá bem aquela desavergonhada, disse-me então a minha irmã. Fui-lhe pedir satisfações e respondeu-me que tu nunca mais te resolvias e que ela precisava de andar com a sua vida.
 
Ainda nem passaram três meses que o João morreu e já tem um homem em casa. Se tivesses sido tu estava bem, agora o Manuel...
 
Daniel Teixeira