quinta-feira, 2 de maio de 2013

O doutor dos passarinhos - Conto de Daniel Teixeira

 
 
O doutor dos passarinhos
 
Conto de Daniel Teixeira
 
Ser médico (doutor) é uma profissão desejável quando se é criança. Talvez a maior parte dos inquiridos crianças queira ser médico quando for grande, isto a avaliar pelas respostas que se vêm normalmente quando se questionam crianças na televisão.
 
«O que é que queres ser quando fores grande!?» - Médico, ou médica, dependendo do género, mas o médico que eles idealizam (e ainda bem) é aquele médico que cura, aquele médico que repara convenientemente o ser humano, que mete o organismo todo na ordem, que imaginariamente na inocência infantil faz andar quem está entrevado, que salva as pessoas, ou seja, o médico milagreiro, o Sousa Martins das nossas inocências.
 
Ser um médico daqueles que não resolvem nada, que não têm contacto directo com as pessoas, que não fazem operações complicadas, que receitam comprimidos e nem sequer auscultam as pessoas, daqueles que atendem mal o pessoal de tão fartos estarem das frustrações das suas vidas , esses médicos não têm porta franqueada na imaginação infantil embora alguns já tenham por vezes alguma experiência negativa com a medicina sobretudo em vacinas (com enfermeiras) ou na extirpação de algum objecto estranho numa ferida em qualquer parte do corpo.
 
O acto médico, na imaginação das crianças, não dói, pois, é entusiasmante e até é engraçado quando o clínico deixa ouvir o aumentado pelo estetoscópio, deixa mexer no martelinho dos reflexos condicionados ou no esfignomanómetro. Benditas sejam as crianças por pensarem assim porque não admitem o aspecto falhado do médico, a impotência destes em face de certas situações, a necessidade de dar notícias tristes e por vezes de ter de viver com elas.
 
Por isso - eu enquanto fui doutor dos passarinhos - nunca dei uma notícia triste, nunca disse que o pardal que me tinham trazido tinha morrido, que outro, apesar dos meus esforços, tinha ficado de tal forma estropiado que as suas hipóteses de sobrevivência em meio livre eram remotas nem disse nunca que alguns já estavam mesmo mortos quando os trouxeram.
«Ainda respira, ainda respira!» - dizia eu perante os olhos muito grandes dos miúdos e das miúdas. «Não sentes o coração dele a bater?! - Porque bate levezinho, uma batida de passarinho, uma respiração de passarinho!» - na sua curta vida de passarinho acrescentava eu para mim.
 
E eram muitos os miúdos que me traziam pardais caídos dos ninhos, ou jogados pelos pais passarinhos depois de um cálculo errado sobre as suas potencialidades de voo, ou simplesmente porque tinha chegado a altura: nunca percebi muito bem como estas coisas se passam mas eu acho que os pais dos passarinhos têm um calendário e que não têm qualquer capacidade de avaliação das possibilidades de sobrevida dos filhos que empurram dos ninhos. São animais naquele plano mais inocente do seu estatuto, não raciocinam, não analisam, apenas contam os dias ou as semanas ou as luas.
 
Para as análises, para os raciocínios, já em situação traumática contudo, estava lá eu, o doutor dos passarinhos, como me chamavam. «Tratei» de perninhas partidas com talas de palito, fiz encaixes de asas a olho nu e apenas pelo princípio da simetria bilateral orgânica, dei comida moída a alguns infantes com uma seringa sem agulha (normalmente milho em pó) e tratei tudo aquilo que era tratável com os meus fracos meios caseiros.
 
E ganhei fama como doutor dos passarinhos porque o meu grau de sucesso era de cem por cento para os miúdos embora fosse a rasar a metade para mim. Lembro-me de um pássaro que ficou comigo vários dias, inchado sem eu saber desde logo porquê e que me olhava com uns olhos extremamente tristes, tão tristes que me lembravam os olhos do cherne do Alexandre O'Neill, os olhos tristes dos peixes todos, aquele nublado no cristalino que anuncia um adeus não dito, e pelo qual eu nada consegui fazer: não tinha ânus, vi depois, e fazer-lhe uma operação era quase impossível.
 
Disse-lhe, disse ao pássaro triste, que tinha de abri-lo naquela zona, que tinha de buscar com uma lupa aquilo que poderia ser a tripa que deitaria para fora, que deveria vazá-la com alguma pressão com duas mini espátulas de madeira, arriscando rebentar o tecido por não conhecer a sua resistência, e depois, se conseguisse tudo isso deveria colocá-la em aberto e esperar que as infecções não lhe tratassem da vida mais rápido do que eu poderia tratar-lhe da continuidade da vida.
 
Mas aqueles seus olhos tristes deram-me a coragem que precisava e estudei o caso, mas levei demasiado tempo a estudar a anatomia dos pássaros e aquilo que podia fazer porque entretanto ele acabou por morrer quando eu me preparava para fazer aquilo que tinha estudado.
 
Mas despediu-se de mim com aquele mesmo olhar triste, aquele olhar extremamente triste, deitando-se de costas por efeito da gravidade e deixando as suas duas perfeitas perninhas a tremelicar por segundos.
 
Foi, para mim, naquele curto tempo que esteve comigo um pássaro «consciente» de que nada eu poderia fazer mais por ele, tenho quase a certeza disso, eu tenho essa certeza. Ele foi bastante claro...
 
Para os miúdos, ele partiu mas não desta forma, da vida, mas sim da minha casa, da sacada de rés do chão onde os atendia, imitando eu com as mãos e os braços como o tinha posto a voar, dizendo-lhes que ele tinha voado até além, até ao pé daquele poste, que depois tinha voado mais um bocado e que se juntara ao bando que além estava, debicando migalhas. «Aquele mais gordo, aquele além!»
 
E os olhos dos miúdos respondiam-me com mais admiração ainda: eu era para eles sempre o tal idealizado doutor dos passarinhos, sempre sem falhas no meu percurso, aquilo que alguns deles queriam ser quando fossem grandes.
 
Por isso, estas coisas dos pássaros, ao nível a que eu trabalhava, ainda que por solicitação sazonal, tinha também como resultado o interesse desperto nas crianças pela salvação da vida selvagem citadina. E eu salvava pássaros e salvava-me a mim e às minhas recordações de infância no campo com fisga e ratoeiras.
 
Depois os miúdos foram crescendo e os que apareceram de novo dobraram uma esquina nas vidas e passaram a percorrer já outros caminhos. Os pássaros feridos trazidos foram rareando até acabarem. Desse tempo ficam as recordações e fica a minha convicção de que fiz sempre o meu melhor.
 
Mas fica também a certeza de que eu me sentiria ainda mais em dívida para com o mundo dos pássaros se aquele passarinho ao morrer não me tivesse «dito» que eu fosse esquecendo aquela parte da minha infância com fisgas e ratoeiras que ele naquele seu curto tempo de vida me ouviu tantas vezes repetir...

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